quinta-feira, 26 de maio de 2011

Outra vez os humildes ratinhos


A segunda seguidora misteriosa enviou-me por e-mail mais peças de faiança Ratinho da sua colecção, pedindo-me que as partilhasse convosco. É curioso, mas a medida que vou conhecendo mais estas peças e há uns dias visitei a casa de um casal de coleccionadores de ratinhos, sinto que penetro num mundo diferente do nosso, um mundo rural, há muito desaparecido, mas que nos finais do século XVIII e durante o século XIX, conservava ainda quase intacta uma herança decorativa antiquíssima, de tradição islâmica no entender de Joaquim de Vasconcelos. Ao visitar a colecção de ratinhos desse casal de coleccionadores apercebi-me que esse mundo produziu uma extraordinária variedade de motivos decorativos, mas ao mesmo tempo com uma unidade muito grande entre si, que não pode ser confundida com mais nenhuma loiça, a não ser talvez com os alguns briosos.



Parece que a segunda seguidora adivinhou estes pensamentos e mostrou mais algumas variedades de ratinhos. Um jarrinho e uma bacia de barba, decorada com o que eu julgo ser a flor do cardo. É uma peça muito profunda, o que a torna quase tão espectacular vista de trás, como pela frente.
O tardoz da bacia de barba

Por último, a nossa segunda seguidora, enviou-nos imagens de umas peças raras, uns covilhetes, que medem entre 8 e 13cm.

Os covilhetes

A nossa amiga apurou na obra Ratinhos Faiança Popular de Coimbra que a função destas peças seria meramente decorativa ou então serviriam para brinquedos, mas, não ficou muito convencida disso, dado que esta loiça barata era comprada por gente humilde. No Museu de Santa Clara a Velha, a nossa seguidora encontrou umas tacinhas com uma decoração semelhante e apresentando a inscrição DOCE, o que a fez pensar que poderiam ser usadas para servir um doce típico de Coimbra o manjar branco, ainda hoje servido em tacinhas de barro. Ainda segundo a nossa amiga, estes covilhetes poderiam ser usados para guardar fermento de pão.




Seria necessário, que uma obra sistemática sobre faiança ratinho saísse do prelo para nos ajudar a todos a satisfazer estas dúvidas e a entender melhor este fenómeno artístico dos humildes ratinhos.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Efebo

Durante muitos anos protelei a visita ao Louvre. As poucas vezes que tive oportunidade de visitar Paris apetecia-me mais andar nas ruas, apreciar l’air du temps, do que me fechar num gigantesco museu, no qual teria que passar um dia inteiro fechado, o que era muito, para quem dispunha de um curto período de 4 ou 5 dias para estar naquela cidade.

No entanto, sabia que tinha que o visitar. Embora não seja especialista, a escultura greco-romana sempre me causou arrepios de prazer e naquele museu estavam grande parte das obras-primas da arte clássica. E depois havia outro motivo para visitar o Louvre, a Yourcenar. Conforme conta nas suas memórias, durante a meninice o seu pai levava-a frequentemente ao Louvre. Passou horas esquecidas a admirar escultura antiga, a ouvir o seu pai discorrer sobre dela e obviamente isso determinou a sua obra futura, baseada na harmonia e no equilíbrio do estilo clássico e num profundo conhecimento da antiguidade greco-romana.

Por isso, há cinco ou seis anos, resolvi enfrentar o Louvre. O Manel foi para a pintura flamenga e holandesa e eu, à semelhança do que fiz no British Museum, segui para a secção de escultura greco-romana, decidido a não ver mais nada senão aquela colecção, nem que ao lado me aparecessem Leonardos da Vinci ou Fra Angelicos


Hermes. Cópia romana. Museu do Louvre

O núcleo de estatuária clássica é gigantesco. Impressiona. As estátuas mutiladas, os braços, pernas e cabeças acrescentados no período barroco, os restauros feitos no século XIX deixam-nos na dúvida se alguma fez chegaremos a conhecer as genuínas estátuas gregas, até porque a maioria do que vemos são cópias romanas dos originais helénicos. E enquanto via aquela colecção enorme e sofria horrores dos pés, percebi que o mais belo ensaio de Yourcenar, O tempo esse grande escultor, terá começado a esboçar-se nas salas daquele museu, talvez ainda quando fosse muito jovem. Nesse texto, apresenta a teoria que a criação de uma obra de arte não acaba no momento em que sai da oficina do artista. Ela continua em pleno processo de transformação, à mercê dos actos de vandalismo que sofre, das catástrofes, como os naufrágios ou incêndios que lhe acontecem, ou dos restauros bem-intencionados a que é sujeita. A beleza da Victoria de Samotrácia ou da Vénus de Milo são mérito do escultor, mas também do tempo, que as fragmentou, as alterou e lhes deu aquela forma incompleta que tanto apreciamos.
A Nike ou Vitória de Samotrácia. Museu do Louvre

Sai tão cansado e tão impressionado daquela visita, que me apeteceu trazer um pouco daquela beleza clássica comigo, para Lisboa. Apesar de séculos de cepticismo, continuamos com aquele espírito de crendice, dos antigos peregrinos cristãos, que precisavam de trazer um pedaço de osso, um fragmento de tecido, uma unha ou uma pedra, para sentir que transportavam para a casa a santidade do local ou a protecção do santo através daqueles objectos. Eu comprei a cópia de um fragmento de um jovem Efebo, muito belo.

O original é uma obra datada entre 447-432 a. C. e que a elegância do rosto, a firmeza do traçado no nariz, o desenho da boca e o modulado dos cabelos mostram a perfeição e o equilíbrio de um dos mais altos momentos da arte humana, o período clássico da arte helénica. É proveniente do friso norte do Partenon, e foi uma oferta do Rei Otão da Grécia ao Governo francês.

Um friso do Partenon no Museu britânico


Coloquei esta réplica aos pés da minha cama e à noite, quando a olho, recordo-me do episódio do roubo dos mármores do Partenon, por Lord Elgin, em 1801-1802, que os transportou com ele para Inglaterra e que já na época foi acusado de bárbaro por muitos dos seus conterrâneos, como foi o caso de Lord Byron, que escreveu.

Scaped from the ravage of the Turk and Goth,

Thy country sends a spoiler worse than both.

Outro fragmento do Partenon no Museu Britânico

O belo efebo lembra-me também Melina Mercouri, quando era jovem e tão perturbadoramente bela como esta estátua. Os lábios são idênticos, Tenho sempre na memória o filme Phedra, em que contracenou com Anthony Perkins numa tragédia terrível.


Melina em Phedra
Mais tarde, quando a sua beleza se desvaneceu, lembro-me da coragem de Melina, enquanto Ministra da Cultura, reclamando a devolução dos mármores do Partenon à Grécia. Não conseguiu nada, mas chamou a atenção da opinião pública mundial para o facto de que a maioria das colecções dos grandes museus franceses, ingleses ou alemães foram mais ou menos pilhadas, na época em que a frança, a Inglaterra ou a Alemanha dominavam o mundo.

A beleza helénica dos lábios de Melina

Antes de me deitar, os lábios sensuais do meu Efebo, iguais aos de Melina Mercouri, fazem-me pensar que a arte cristã, só mostrou a beleza, enquanto meio para demonstrar que ela era efémera e vã e nada mais existia para além da fé em Cristo e na Salvação. Pelo contrário, a arte helénica mostrou-nos a beleza humana, sem pecado ou arrependimento. A beleza é em si mesmo divina.

Os lábios do Efebo

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A ressurreição de Cristo por Teodoro António de Lima

Recentemente a Maria Andrade  apresentou um post sobre uma gravura do artista italiano Francesco Bartolozzi (1728-1815), que se radicou já de idade avançada em Portugal. Esse texto remetia para um catálogo de 2004, da Sociedade Martins Sarmento, intitulado Francesco Bartolozzi e os seus discípulos e ao visionar o documento, encontrei muitas estampas, que reconheci, como o Senhor Jesus da Consolação, da casa do meu amigo Manel, bem como uma série de cenas alusivas a vida de Cristo, extraídas de livros litúrgicos e que me pareceram algo familiares.

Estudo de Bartolozzi para Missal Romano. MNAA, 2478

Com efeito, há uns tempos o Manel e eu tínhamos comprado na Feira-da-Ladra, duas estampas com cenas da vida de Cristo, com um estilo muito próximo de Bartolozzi (Fazemos muitas vezes a manha de comprar duas peças para pedir uma redução no preço e depois pagamos a meias). Porém, essas duas gravuras embora fossem do mesmo estilo e mais ou menos contemporâneas das cenas religiosas gravadas por Bartolozzi para os missais romanos de 1808 e 1820, estavam assinadas por um tal T. A. Lima, de que nunca tinha ouvido falar.



Fiquei com o assunto na gaveta á espera de melhores dias, até ao momento em que me passou pela mão a obra de Luís Chaves, Subsídios para a história da gravura em Portugal, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1927 e descobri uma entrada para o tal T. A. Lima. Este Senhor chamava-se Teodoro António de Lima, ignora-se a data de nascimento, mas presumimos que terá sido nas duas ou três últimas décadas do Século XVIII, pois em 1836, pede a aposentação da Academia de Belas Artes para poder leccionar desenho no Colégio Militar. Foi aluno de João Figueiredo, gravador de Medalhas e segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira foi um dos melhores discípulos de Bartolozzi. Este Teodoro António de Lima terá feito frontispícios e estampas no Breviarium Romano, da Tipografia Régia de 1815 e para um missale romanum de 1820, onde também aparecem gravuras de Bartolozzi, apesar de este já ter falecido.
Estudo de Bartolozzi para a Ressureição de Cristo
Estava pois explicada a familiaridade, que senti entre a estampa que tinha em casa e as obras do gravador italiano reproduzidas no catálogo da Sociedade Martins Sarmento.

Alegoria à derrota dos franceses de Cirilo Volkmar Machado, gravada por T. A. Lima

Este Teodoro terá trabalhado com artistas importantes da época, como Cirilo Volkmar Machado, para o qual gravou uma alegoria à derrota dos franceses.

Porém, não estava inteiramente satisfeito e fiz mais umas pesquisas no Google e encontrei o trabalho de um senhor brasileiro, que investigou as estampas de livros litúrgicos, que serviram de modelo para a pintura de igrejas em Minas Gerais. Pedro Queiroz Leite descobriu três missais com datas de 1782, 1797 e 1860 apresentando uma gravura rigorosamente igual no frontispício. A primeira não está assinada, a segunda foi gravada por um tal Silva e a terceira de 1860, tem as iniciais usadas pelo nosso Teodoro António de Lima “T. A Lima”.


Missal de 1782

Missal de 1797


Missal de 1860
Esta coisa espantosa só mostra que na prática, estes gravadores usavam os desenhos dos missais e breviários, de umas edições para as outras, durante muitas décadas, acrescentando as suas iniciais e talvez retocando aqui e ali. Provavelmente estavam também sujeitos a respeitar o formato que o editor impressor já dispunha e os obrigava a seguir. Em todo o caso, tudo isto nos faz reflectir acerca da originalidade destas obras, conceito esse que não parecia particularmente importante no mundo da gravura neste final do século XVIII, princípios do XIX.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Mais estatuetas, urnas e pinhas de faiança portuguesa no Brasil: O Instituto Portucale de Cerâmica Luso-Brasileira

Continuam a chegar reacções dos leitores brasileiros aos conteúdos deste blog, que nunca deixam de me surpreender agradavelmente. Quando comecei a escrever o blog nunca pensei sequer que os brasileiros se interessassem por velharias e muito menos portuguesas. Até certa forma, estava convencido que existia uma opinião corrente entre os brasileiros mais instruídos, de que a herança cultural portuguesa era culpada pelas franjas de subdesenvolvimento daquele que é maior país da América Latina.


Mais uma alegoria da Fábrica de Santo António de Vale da Piedade. Col. Instituto Portucale
Contudo, os factos desmentiram rapidamente a minha convicção e pontualmente chegam comentários e contributos de amigos brasileiros sobre faiança portuguesa, que evidenciam a estima que a cultura lusitana tem no Brasil. O que até é natural, pois partilhamos a mesma língua, alguns séculos de história comum, uma forma de estar na vida caracterizada por uma certa doçura e ainda temos passado a vida a emigrar de lá para cá. Se há uns anos os portugueses rumavam para o Brasil na procura de fortuna, hoje Lisboa, Porto, Coimbra, Setúbal estão pejadas de brasileiros. Nos cafés, nos restaurantes e nos cabeleireiros todos os empregados são brasileiros, mas também os dentistas, que são óptimos profissionais e os publicitários são igualmente brasileiríssimos.

O guerreiro Portucale da colecção do Instituto Portucale é uma figura típica dos prédios do Porto

Bem, tudo esta reflexão sobre as relações luso-brasileiras vem a propósito de uma instituição cultural brasileira, que o Rodrigo, um nosso seguidor brasileiro, nos recomendou. É o Instituto Portucale,  http://www.institutoportucale.com.br/, que se dedica entre outras coisas ao estudo da faiança portuguesa e brasileira e possui uma colecção estupenda, de estatuetas, urnas, pinhas e balaústres em faiança portuguesa, que eu, a Maria Paula e a Maria Andrade temos fotografado aqui um pouco por todo o País. Esta colecção de cerca de 400 peças é na sua maioria proveniente de fábricas do Porto e Gaia, das quais salientamos, as Devezas, Sto. António de Vale da Piedade, Miragaia, Massarelos e Carvalhinho.


É pena que as fotografias sejam de baixa definição. Teria sido preferível, que os responsáveis pelo site tivessem optado por mostrar as peças uma à uma, em forma de catálogo on-line, com imagens das obras e ao lado as marcas de fabrico. Teria sido uma opção mais didáctica. Mas em todo o caso, O Instituto Portucale será de futuro um site muito útil para nós em Portugal identificarmos algumas das peças, que por cá existem, mas uma vez que estão no topo dos edifícios, é quase impossível descobrir-lhe as marcas

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Pia de água benta atribuída ao Brioso ou a imperfeição tornada obra de arte



Recebi na minha caixa de correio de e-mail a imagem de uma peça, que me encanta pela sua ingenuidade e candura. Confesso-vos que sinto um grande fraco por estas peças piedosas antigas, propensão essa que talvez a psicologia possa explicar mais satisfatoriamente do que eu, pois há muito que perdi a fé.

O e-mail foi-me enviado pela segunda seguidora misteriosa, que andava afastada do nosso convívio, mas que resolveu regressar em força mostrando peças da faiança coimbrã, que estamos apenas habituados a ver nos museus.


A peça em causa é uma pia de água benta, datada do segundo quartel do século XVIII, certamente feita em Coimbra e muito provavelmente saída da oficina de um dos Brioso, uma dinastia de ceramistas, como vimos no post de Fevereiro . Escrevo certamente e provavelmente, uma vez que as atribuições aos briosos e a outros ceramistas coimbrões não são de todo uma coisa matemática e científica, pois embora a existência desta família esteja bem documentada nos arquivos, as peças raramente são marcadas e é difícil estabelecer uma relação certa entre objectos e artistas. Em todo o caso há outras obras pertencentes ao Museu Nacional Machado de Castro, muito idênticas a esta, com os nºs de inventário, nºs 9828, 9827, que permitem por comparação datarmos esta obra e identificar o local de produção e a oficina.


Pia de água benta do Museu Nacional Machado de Astro, in. 9828

Segundo a obra a Cerâmica de Coimbra do século XVI-XX. Lisboa. Edições Inapa, 2007 a manufactura de pias de água benta em cerâmica vulgarizou-se em Portugal, primeiro na cidade de Lisboa, no final do século XVII e depois já no século XVIII, Coimbra torna-se o principal centro de produção destas peças. As pias de água benta foram feitas em grande quantidade, destinadas a pessoas sem muito dinheiro, que gostavam de nas suas casas ter a ilusão de possuírem uma espécie de pequena capela, para praticarem os seus exercícios devotos.


Reparem que a pia é uma réplica económica e em pequena escala de um altar de talha folheada a ouro.
Altar em talha dourada, que estas pias tentam reproduzir numa escala dimnuta

Julgo que as pessoas trariam a água benta das igrejas para as suas casas e deveriam faze-lo com muita frequência. Tenho uma peça destas em casa dos finais do XVIII, princípios do XIX, que está completamente encardida de tanta água benta e não me atrevo a lava-la muito, com receio que uma colagem já antiga se desfaça e fique com a pia feita em mil pedaços.

No período em que a pia da nossa seguidora foi fabricada, segunda metade do século XVIII, os temas mais comuns destas pias eram todos os aspectos relacionados com Cristo (Crucificação, Menino Jesus, símbolos da crucificação e alegorias eucarísticas), a Virgem Maria e Sto. António de Lisboa.
Pia do Museu Nacional Machado de Castro representando a Virgem Maria, inv 9827

Estas peças foram tão populares, que para satisfazer a enorme procura as oficinas de ceramistas executavam-nas em grande quantidade, usando os moldes até eles estarem gastos, obrigando os seus operários e aprendizes a fazerem uma pintura rápida e apressada das peças. O resultado é que todas estas peças apresentam um certo ar imperfeito. Há um desacerto da pintura. A tinta é umas vezes mais espessa, outras vezes mais líquida e mais clara. O moldado perdeu definição. Cada uma delas apresenta sempre um ou mais pormenores distintos da anterior. Na verdade, essas imperfeições tornam estas peças, que foram feitas em série, em obras únicas, conforme referiu muito bem Paulo Henriques no texto do catálogo Formas de Devoção. Lisboa: IPM, 1999.




Detalhe: as Chagas de cristo


O fabrico das pias de água benta continuou pelo século XIX fora, mas desta vez em todos centros cerâmicos, de Norte a Sul do País e prolongou-se até aos dias de hoje. Contudo, na minha opinião pessoal, as pias de água benta coimbrãs do século XVIII representam um momento da cerâmica portuguesa em que a ingenuidade quase alcança o estatuto de obra-prima.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Anjinhos barrocos que espreitam na minha casa ou uma forma de tapar rachas

a sala onde os anjos espreitam os meus passos
Estudar as colecções dos museus nacionais é sempre um caminho seguro para qualquer artista plástico desenvolver a sua obra. É o que faz a Cristina Pina, aquela ceramista simpática, que tem um atelier ali na Rua de S. Vicente, muito pertinho da feira-da-Ladra. Faz faiança e azulejos baseando-se na tradição portuguesa e usando técnicas artesanais e os resultados são encantadores. As peças são todas diferentes umas das outras, a superfície é craquelé, os azuis variam e só lhes falta estarem gatadas para parecerem autênticas peças do Século XVII ou XVIII.
Canudo feito pela Cristina Pina

Há uns dois anos comprei-lhe este canudo ou manga de farmácia, cujo anjinho foi inspirado na decoração de um prato do Museu Nacional de Arte Antiga, da segunda metade do século XVII, inv 7446 Cer.


Prato do Museu Nacional de Arte Antiga no qual a Cristina Pina se inspirou
Gostei tanto de ter este querubim a espreitar os meus passos, que tive uma ideia para resolver um dos problemas da minha casa.



O meu apartamento é muito pequeno. E a sala é também o meu quarto. Com as suas franjas vermelhas, o sofá que é uma interpretação livre do estilo Napoleão III, transforma-se numa cama, retirando-lhe as costas. Na prática é um sommier, com um disfarce de sofá, que o meu amigo Manel ajudou na sua concretização. Mas, quando para me deitar, tirava as costas do sofá viam-se umas rachas na parede e o estuque a estalar, mazelas típicas de casas com quase duzentos anos.

O sofá depois de se lhe retirar as costas é uma cama
Resolvi então encastoar um azulejo da Cristina Pina, com o mesmo anjo barroco da manga de farmácia e do prato do Museu Nacional de Arte Antiga na zona da parede rachada e o resultado foi a criação de um ponto de interesse, que distrai as pessoas das mazelas do estuque.


O azulejo inspirado no prato do MNAA

Os meus filhos, que nas manhãs de Inverno gostam de ir um pouco para a minha cama antes do pequeno-almoço, simpatizaram com o anjinho, que disfarçou o mau estado da parede.

domingo, 8 de maio de 2011

Ratinhos na Feira de Estremoz


Ao contrário da Feira-da-ladra, os ratinhos abundam na Feira de velharias de Estremoz, o que é natural, pois era no Alentejo que os beirões apelidados ratinhos trocavam as suas faianças por roupas e outros produtos. Tenho visto peças desta faiança lindíssimas, mas estamos em tempos de contenção e tenho saído da feira alentejana de mãos a abanar (é mentira, comprei umas pecinhas de cantão popular, mas ficava bem escrever aqui, que não comprei nada).

Um detalhe do ratinho. Uma pintura rápida que tanto parece ser contemporânea como de um passado longínquo qualquer
No passado Sábado, vi este prato a chamar por mim por um preço tentador. Negociei com o casal de ciganos. Ela quis abater-me dez euros, ele não. Houve ali um desentendimento conjugal, durante quase um minuto, que ainda me inquietou e só se resolveu quando o marido percebeu, que eu me ia embora se não houvesse o abatimento. Acabei com o prato dentro da mochila, por uma quantia muito aceitável. As antiguidades e velharias estão decididamente a baixar de preço



O meu Ratinho não é tão espectacular como as peças da nossa seguidora misteriosa. Mas apresenta tal como a bacia degolada daquela nossa amiga uma espiral no centro, motivo decorativo antiquíssimo, usado pelos homens desde sempre e que me fascina. É comum nos monumentos megalíticos, na arte antiga chinesa é um símbolo do sol e em termos filosóficos representa a dialéctica. Aparece na natureza, por exemplo nos caracóis e em algumas conchas.

É daqueles motivos decorativos, que mesmo sem sabermos nada de história, iconografia ou simbologia, somos capazes de o transcrever do nosso cérebro, passando-o ao papel ou pintando-o numa cerâmica.

A espiral é um motivo decorativo comum nos ratinhos, conforme se pode ver nos pratos já aqui apresentados, pertencentes ao Manel e à primeira seguidora misteriosa. Opinião que é confirmada pelo que escreveu João Pedro Monteiro no catálogo António Capucho homem através da colecção, p. 163

Pela minha parte, estou encantado porque a partir de hoje tenho um prato na minha cozinha, com essa decoração velha como o mundo.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Pedras com barcos de Lisboa

Pedra na R. Presidente Arriaga
Este blog não será exactamente um programa de discos pedidos, mas por vezes pedem-me para escrever sobre coisas que eu próprio acho tão interessantes, que não lhes resisto.

O Carlos Pereira, que é um dos seguidores deste blog, aficionado de faiança ratinho e coleccionador de objectos relacionados com o café, pediu-me há muito tempo para escrever sobre aquelas pedras com barcos, que se encontram afixadas nos prédios da velha Lisboa, nas zonas ribeirinhas em particular. Sempre gostei dessas lápides com caravelas e sempre me despertaram a curiosidade, mas nunca aprofundei o assunto e andava também com azar, porque a última vez que tinha passado por uma, ali em Santa Apolónia, fiquei sem bateria na máquina.
Outra pedra com um barco na Rua do Presidente Arriaga. A toalha que estraga a foto é de um daqueles cabeleireiros de bairro, com um nome impossível, qualquer coisa como salão Gaby ou Rosette 

Mas, quem vive e trabalha no Centro de Lisboa, está rodeado de coisas fascinantes por todo o lado, que nos surpreendem a toda a hora e com efeito, hoje, sem me mexer muito do meu caminho habitual, consegui numa só assentada fotografar 4 dessas pedras com naus. Uma no jardim do Museu Nacional de Arte Antiga e outras três na Rua do Presidente Arriaga, que é a continuação da Rua das Janelas Verdes.

Pedra no jardim do Museu Nacional de Arte Aantiga
Procurei saber mais alguma coisa sobre estas pedras e o seu significado. Li algures no Google, que por vezes são designadas caravelas foreiras e significavam, que alguém na casa onde estavam colocadas, tinha uma obrigação de qualquer natureza com o Senado de Lisboa. Enfim, quem afirma isto, interpreta estas caravelas como se representassem a nau de S. Vicente, que faz parte desde há muito da heráldica municipal de Lisboa.

Mas, como se achasse esta explicação um pouco vaga, vasculhei o Dicionário de História de Lisboa, 1994 e lá consegui dar com a entrada, intitulada Pedras esculpidas com embarcações, assinada por Nuno Valdez dos Santos. O autor afirma que estas pedras são um mistério, ninguém descobriu ainda exactamente para que serviam, nem conseguiu descortinar nelas, qualquer mensagem de poder hierárquico, significado religioso, forma de propaganda ou símbolo de uma associação religiosa.

Outra pedra com um barco na Rua do PresidenteArriaga

Na prática, existem é constantes nestas pedras. Apresentam todas dimensões entre 30 x 30 cm ou 35x50 cm, estão inevitavelmente viradas em direcção ao rio Tejo e representam barcas, naus da época dos descobrimentos, naus de linha e até fragatas. Normalmente tem as velas desfraldadas, portinholas com as peças de artilharia abertas e navegam em mares calmos. Todas parecem representar navios de guerra e raramente estão datadas, mas as que o estão, foram feitas entre 1720 e 1860.

Talvez a única coisa que se possa afirmar com segurança é que certamente se relacionam com a intensa actividade marítima de Lisboa.

O mistério à volta delas continua a ser grande, tão grande como o encanto e a surpresa, que constituem quando damos com elas nos velhos prédios de Lisboa

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Faianças Ratinho cheias de poesia

Esta semana, a nossa primeira seguidora misteriosa (onde andará a segunda?), resolveu presentear-nos com um paliativo para a crise, composto com uma série de pratos ratinhos invulgares.

Como sabem as formas dos Ratinhos são pouco diversificadas. A maioria das faianças manufacturadas por estes artificies coimbrões são grandes pratos e as palanganas. Peças como o púcaro para servir vinho, que já apresentámos anteriormente, ou uma bacia de barba como esta que a nossa seguidora nos mostra hoje são muito mais raras e por isso tem um interesse acrescido.

Tardoz da bacia de barba

Mas a seguidora misteriosa não ficou por aqui em nos surpreender com boas peças. Enviou-me também por e-mail a fotografia de outro prato, que escapa à tradicional divisão por temas dos ratinhos em zoomórficos, vegetalistas e geométricos e humanos, pois é uma paisagem de arquitectura.


Este motivo decorativo que ficou conhecido por País, é muito vulgar nas outras faianças portuguesas, mas  nunca o tinha viso num prato com as características de Ratinho.


Last but not least, a nossa seguidora enviou-nos um terceiro Ratinho, que me parece dos mais antigos, talvez seja mesmo dos finais do Século XVIII, muito embora as obras de carácter ingénuo nos pareçam ser mais antigas do que aquilo que realmente são, como Ernesto de Sousa escrevia.


Este prato com um passarinho no centro é muitíssimo semelhante a um azulejo de figura avulsa, tal como outro prato, que a segunda seguidora misteriosa apresentou anteriormente.


Nestes tempos em que tudo o que nos rodeia é desagradável, talvez o passarinho represente as coisas melhores de Portugal, a sua cultura e a sua arte, que produziram coisas tão geniais como uma azulejaria verdadeiramente única.

Painel de azulejos com figura avulsa no centro