sábado, 26 de março de 2016

Caixinhas francesas de latão dourado e vidro biselado para guardar o ar do tempo

 
Comprei recentemente duas caixinhas de latão dourado e vidro biselado. Confesso que sempre admirei este tipo de peças de vitrina, que não servem para nada, mas ao mesmo tempo parecem destinadas a guardar pequenos tesouros, como um caracol loiro de cabelo, uma conchinha, ou um qualquer objecto que tenha testemunhado um Verão mais feliz. Contudo, como normalmente estas peças são caras, fui adiando a sua compra, até que, recentemente perdi a cabeça e comprei logo duas de seguida.

Procurei investigar alguma coisa sobre estas peças e de facto os resultados, não desmentiram as minhas impressões iniciais. Estas caixinhas foram fabricadas em França durante o século XIX e até ao início da Iª Guerra Mundial e normalmente destinavam-se aos turistas, que as compravam como souvenirs. Os americanos adoravam-nas e muitas destas caixinhas eram decoradas no interior com uma reprodução fotográfica colorida de uma cidade francesa, como Paris, claro está, mas também Lião, Marselha, Nice ou Lourdes. Mas não só americanos, as deviam comprar, os restantes turistas europeus certamente também se se entusiasmariam com estas caixinhas, que deviam dar óptimos presentes, económicos e fáceis de transportar. Aliás, cá em Portugal são fáceis de encontrar no mercado de velharias e coisas em segunda mão. 

Caixinha com vista de Paris. Estes objectos foram fabricados em França e destinados a serem vendidos como souvenirs

Os americanos costumam designar estas caixinhas por Ormulu Jewelry boxes, um termo que se refere a uma antiga técnica de dourar o bronze com mercúrio. Porém, no tempo em que as minhas caixinhas foram fabricadas, entre os finais do séc XIX e o início do séc. XX, o material escolhido preferencialmente para estes souvenirs de la douce France era o latão dourado através de um processo de galvanoplastia. O vidro que adornava estas caixinhas era de belíssima, qualidade e muitas vezes apresentava-se gravado com flores e outras decorações. Por dentro, estas pequenas caixas costumavam ser vendidas com uma alfomafinha capitonnée em seda ou veludo.



Em França, estes objectos são conhecidas pelos termos coffret a bijoux Napoléon III en laiton et verre bizeauté. 

Caixinha para guardar o relógio. Imagem retirada da internet, em site de vendas
Como referi no ínicio, a utilidade destas caixinhas é quase nula. Nelas guardavam-se dois ou três anéis, um par de brincos e pouco mais. Por vezes, eram também destinadas a guardar durante a noite os relógios de pendurar que as senhoras usavam. Mas também era uma época em que não se pensava na utilidade dos objectos e as casas estavam atafulhadas de bibelots, rendas, cortinados opulentos, mesas e e mesinhas e sofás cheios de passamanaria. Eu próprio também não sei o que irei guardar nestas caixinhas. Talvez peça a alguém que vá a França, que as leve, para as encher com L'air du temps. 

terça-feira, 8 de março de 2016

Azulejos da Sé de Beja: um jogo de cartas divino


Há quem ache a arte sacra aborrecida e macabra, uma coisa vinda de um tempo obscuro, quando o ser humano encontrava as explicações para os fenómenos da natureza em Deus e procurava ardentemente a protecção dos santos e da Virgem contra a morte, que espreitava em cada esquina, muito mais que no mundo de hoje, onde a esperança de vida é altíssima.

Naturalmente que entendo este ponto de vista. Também recebi uma educação religiosa, com catequese, aulas de moral e religião no Liceu, com missas obrigatórias ao Domingo e confesso que também me senti oprimido por aquele esquema de recompensas, castigos, remorsos e absolvições e no qual cedo pressenti uma pontinha de hipocrisia.

No entanto, há que reconhecer que uma boa parte das obras da arte ocidental são de temática cristã e que por vezes apesar da seriedade do tema, acabam por ser muitíssimo divertidas, como por exemplo este painel de azulejos da Sé de Beja, que mostra uma santa entretida num animado jogo de cartas com o Menino Jesus. Confesso que fiquei logo encantado com esta representação tão insólita e procurei aqui e ali algumas informações, para saber quem era esta Santa apreciadora dos jogos de azar, ainda que tidos com uma pessoa tão insuspeita, como o Menino Jesus.

Conforme li no site monumentos.pt o interior da Sé de Beja foi interiormente todo refeito nos anos 30 e 40 do século XX, aquando da adaptação da antiga igreja paroquial de Santiago a Catedral. A maioria da azulejaria desta igreja proveio de conventos, igrejas e palácios lisboetas. Segundo o mesmo site vieram do Convento das Mónicas 11 mil azulejos com cenas da vida de Cristo e Nossa Senhora e ainda 12 mil azulejos vindos de Lisboa sem especificar a sua proveniência. Em suma, este painel de azulejos com esta santa em animada jogatana com menino Jesus não se encontrava originalmente na Sé de Beja e o site monumentos.pt nem sequer o menciona.
Santa Rosa de Lima. A imagem clássica com a coroa de rosas, por Carlo Dolci
Resolvi continuar as minhas buscas através da iconografia e procurei santas que usassem coroas de rosas e o mesmo hábito, que enverga a figura do painel. Embora haja umas quantas santas que sejam representadas com coroas de rosas, por causa do hábito de dominicana, acabei por me convencer que é mais provável tratar-se de Santa Rosa de Lima (1586-1617), uma mística peruana, constantemente visitada pela Virgem Maria e pelo Menino Jesus. Até porque realmente encontrei uma tela do século XVIII, no Museu de Osma, em Lima, mostrando Rosa de Lima jogando dados com Jesus.

Mas porque razão se mostra uma santa da Igreja Católica, uma virgem mística em práticas tão profanas, como um jogos de cartas ou dados?

Encontrei a resposta num texto muito bom, intitulado Rosa limensis, de Ramón Mujica Puntilla e que está acessível na net em http://books.openedition.org/cemca/2317 e cuja explicação passarei a descrever de forma resumida.
 Santa Teresa de Ávila. Gravura de I. Palomino. Em Obras de Santa Teresa, t. 11, Madrid, 1752.

No renascimento e no início do período barroco, generaliza-se o conceito que Deus é um caçador divino, que fere a alma, para mante-la cativa. Por influência da literatura e da também da imaginária pagã, esse caçador divino é identificado com Eros ou o Cupido, com as suas setas que produzem feridas de amor. Temos assim Meninos Jesus rechonchudos e brincalhões, que realizam deliciosos jogos de diversão ou de azar com vários significados morais. Estes Meninos Jesus disparam setas, fazem bolas de sabão, correm atrás de um arco ou jogam as cartas. São metáforas com um conteúdo nítidamente pagão e que apesar da sua natureza lúdica, serão incorporados nos repertórios visionários de Santa Teresa de Ávila ou de Santa Rosa de Lima.
Santo António de Lisboa jogando cartas com o Menino Jesus. Santuário de Quinta Angustia de Cacabelos, província de Leão
Neste caso e a interpretação é minha, este jogo de cartas, tem um significado moral. Santa Rosa de Lima, perde a partida em favor do Menino Jesus, entregando-lhe a sua vida no mundo, mas ganha o amor divino em troca. Aliás, em Espanha, no santuário de Quinta Angustia de Cacabelos, província de Leão há um painel em madeira com uma representação de significado moral próximo, em que Santo António de Lisboa ou de Pádua joga às cartas com o Menino Jesus. Enquanto o Menino Jesus recebe do santo um quarto de copas, símbolo do mundano, entrega ao santo um cinco de Ouros, símbolo de renúncia aos bens terrenos.

Este painel de azulejos só prova que a arte sacra, sobretudo a do período barroco é por vezes muitíssimo divertida.