sábado, 31 de julho de 2021

Um candeeiro a óleo em opalina

candeeiro a óleo em opalina

Comprei este velho candeeiro a óleo em opalina. Não é porque precise de iluminação em casa, pois na minha assoalhada e meia, apliques, lustres e candeeiros de mesa devem ser quase uma dúzia. Além disso, tenho ainda três candeeiros de azeite, um castiçal, uma lucerna e um candeeiro a petróleo. Claro, podia justificar esta compra, pensando nas eventuais faltas de luz, mas cortes de energia eléctrica acontecem à media, três em três anos e pouco mais duram que uns vinte minutos e nesses momentos uso velas...

Na minha casa abundam candeeiros.

Na verdade, comprei este candeeiro porque adoro os estilos franceses e sempre ambicionei ter uma opalina, esse vidro de aspecto leitoso. Claro, como não tenho dinheiro para comprar peças francesas do século XVIII, compro coisas do século XIX imitando os grandes estilos do passado, o Luís XIV, o Luís XV e o Luís XVI e neste candeeiro é claramente visível a inspiração das porcelanas de Sèvres do século XVIII. Está até pintado no chamado rose Pompadour, esse tom de rosa criado em Sèvres, no ano de 1757, em homenagem a Madame de Pompadour, amante do Rei Luís XV e grande patrocinadora da manufactura.

O rose Pompadour


No entanto este candeeiro não apresenta qualquer marca, nem no queimador, nem no vidro opalino e o que aqui escreverei de seguida são meras suposições. Ao procurar informar-me sobre os candeeiros do século XIX, bem como sobre as opalinas e consegui perceber que havia menos três tipos diferentes de fabricantes ou ofícios, que concorriam para o fabrico de um candeeiro deste tipo.

Queimador do tipo modérateur
Queimador do tipo modérateur

Em primeiro lugar havia o fabricante do queimador. O deste candeeiro parece-me sem dúvida do tipo modérateur, um sistema inventado em Franca, que permitia regular com precisão a intensidade da chama. Foi concebido para funcionar a óleo vegetal. O petróleo só começa a ser usado depois de 1870. Mas não tive coragem para desmontar o queimador, para apurar a sua marca, pois tive medo de partir a opalina, que apresenta alguns fios de cabelos aqui e ali. Em todo o caso apresenta todas as características dos modérateurs franceses fabricados nos meados do século XIX, o que me leva crer que este candeeiro seja francês.

Os candeeiros a óleo com o queimador tipo modérateur. Foto de Les lampes à huile, de B. Mahot, Ed. Ch. Massin


Depois em segundo lugar existiam os fabricantes de vidro ou porcelana, que produziam o corpo do candeeiro, onde se encaixava o queimador. Neste caso, corpo é em opalina, um vidro em cuja composição entrava óxido de estanho e cinzas de ossos, o que lhe conferia um aspecto leitoso e cuja aparência não andava longe da opala. Talvez por essa razão em português, este material é conhecido por vidro coalhado. As opalinas já eram fabricadas em Veneza desde o século XVI, normalmente brancas, mas no século XIX em França, avanços técnicos permitiram o aparecimento de novas cores. Nesse período os principais fabricantes de opalinas em França foram Baccarat, Saint Louis e ainda Choisy-le-Roy e Belleville.

Por último, existiam oficinas de decoradores ou pintores de opalinas, que trabalhavam com os principais fabricantes de vidros. O mais célebre deles todos foi Jean-François Robert (1778–ca. 1855), que começou por ser pintor em Sèvres, mas a partir de 1843 estabeleceu-se por conta própria, nas vizinhanças da fábrica, trabalhando sobretudo para Baccarat e Saint Louis. Concebeu uma técnica nova, as peças pintadas a pincel iam novamente ao forno de mufla, de forma, a que as cores e as aplicações a ouro vitrificam-se, incorporando-se na superfície do objecto de forma mais perene. Essas decorações florais da opalina tiveram sucesso e rapidamente foram imitadas por outras oficinas de pintores.


Pinturas sobre opalina do atelier de Jean-François Robert. Foto retirada de Christine Vincendeau, Les Opalines, Paris: Amateur, 1998


Num catálogo de vendas on line encontrei uma caixa de jóias em opalina de Baccarat, cuja decoração é atribuída ao atelier Jean-François Robert, e o vendedor para fundamentar essa atribuição reproduz a página 124 da obra de Christine Vincendeau, Les Opalines, Paris: Amateur, 1998. E de facto, percebemos que na oficina de Jean-François Robert a inspiração em Sèvres era óbvia e que este candeeiro tem o mesmo ar de família das peças ali reproduzidas. Também a partir desta reprodução percebi que a peça em opalina usada para montar este candeeiro foi uma garrafa ou frasco.

Uma garrafa ou frasco serviu para montar o candeeiro. O reservatório de combustível está escondido no recipiente

Embora eu seja um leigo nesta área das opalinas e candeeiros, fiquei com a ideia que a distribuição do produto final, o candeeiro, cabia ao produtor de vidros.

Em suma, este candeeiro terá sido produzido em França em meados do século XIX, ou talvez uma ou duas décadas depois. O queimador do tipo modérateur é típico dessa época e a opalina saiu de uma de umas dessas grandes fábricas francesas, Baccarat ou Saint Louis. A decoração ao gosto de Sèvres talvez tenha sido pintada na oficina de Jean-François Robert ou por um dos seus muito imitadores depois de 1855.




Alguma bibliografia e links consultados:

Le XIXe siècle français / dir. Stéphane Faniel. - Paris : Librairie Hachette, 1957. - 231 p. : il. ; 32 cm. - (Connaissance des arts ; 2)

L'opaline française au XIXe siècle / Yolande Amic. - Paris : Librairie Gründ, 1952.





sábado, 17 de julho de 2021

Ainda o círculo de Liberal Sampaio: um amigo de Montalegre: Paulino Antunes Guerreiro

Paulino Antunes Guerreiro

Como já aqui referi muitas vezes, recebi como prenda da prima Ana Paula dois álbuns de fotografia carte de visite. O antigo terá sido formado pelo meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935) e o segundo pelo seu filho, José Maria Ferreira Montalvão.

Regresso hoje a esse tema, escolhendo um senhor que consta do primeiro álbum, Paulino Antunes Guerreiro e do qual até há pouco tempo não tinha conseguido apurar quase nada sobre a sua vida ou as relações, que manteve com o meu trisavô. Mas, estas fotografias antigas são um desafio fascinaste e tento sempre por todas vias montar uma história para elas a partir de dados, que colho aqui e acolá.

Photographie française Celestin Benard, no Porto, Rua de Santa Catarina, nº 247

O retrato de Paulino Antunes Guerreiro foi feito pela Photographie française Celestin Benard, no Porto, que tinha o seu estúdio no 247, na Rua de Santa Catarina no Porto. Este dado permitiu-me datar de algum modo a fotografia. Será posterior a 1872, pois nesse ano o Celestin Benard mudou o seu estúdio do nº do 128 para o nº 247, e anterior a 1890, data em que este fotógrafo terá cessado sua a actividade. A título de curiosidade este Celestin Benard era de origem francesa e irmão de Elie Benard o fundador da célebre pastelaria Benard em Lisboa.

Uma vez que este retrato consta do álbum de Liberal Sampaio e na época a fotografia era ainda uma coisa cara, que se oferecia apenas as pessoas pelas quais se tinha estima e respeito, pude desde logo tomar como ponto assente que este Paulino Antunes Guerreiro fez parte do círculo de relações do meu trisavô, entre 1872 e 1890.
Liberal Sampaio

Como maior parte das personagens, que constam deste álbum de fotografias, são transmontanas, pesquisei pelo nome do senhor no Arquivos Distrital de Vila Real e consegui perceber que este Paulino Antunes Guerreiro desenvolveu a sua actividade profissional no Cartório Notarial de Montalegre entre 1854-1863 e de 1866 a 1894 e ainda em Vila Pouca de Aguiar, entre 1862 e 1865.

Sendo o meu trisavô José Rodrigues Liberal Sampaio, natural da aldeia de Sarraquinhos, do Concelho de Montalegre é perfeitamente plausível que se tivessem conhecido e privado naquela vila transmontana e tivessem trocado fotografias um com o outro.

Mas não fiquei por aqui e continuei nas minhas pesquisas pela net fora até que encontrei um estudo de genealogia de uma família de Montalegre, Tentativa de dedução genealógica da família Caldas / Diogo Paiva e Pona, onde este Paulino Antunes Guerreiro é mencionado duas vezes.

A primeira em 29 de Dezembro de 1867, no baptizado de Virgínia de Jesus Rodrigues Canedo, nascida em Montalegre em 28 de Dezembro desse ano, em que os padrinhos foram Paulino Antunes Guerreiro, Escrivão de Direito em Montalegre e D. Josefa Xavier Teixeira

A segunda em 1905, em que uma tal Virgínia Alves, casou com um Acácio Alfredo Antunes Guerreiro, então de 43 anos, nascido em Montalegre em 1862, filho de Paulino Antunes Guerreiro e de Josefa Xavier.

Destas simples menções, confirmei que o Paulino Antunes Guerreiro fez grande parte da sua vida em Montalegre, concelho de onde era natural meu trisavô e que casou com Josefa Xavier Teixeira, certamente uma senhora de condição, pois no registo de baptizado da tal Virgínia, é designada por Dona. Tiveram um filho, o Acácio Alfredo Antunes nascido em 1862, que deixou descendência.

E por aqui fiquei nas minhas pesquisas, até que uma dia uma amiga Celina Bastos me indicou que o Diário do Governo, o antepassado do Diário da República, se encontra praticamente todo digitalizado e on-line na página https://digigov.cepese.pt. Fiz uma pesquisa no motor de busca e obtive uma lista, que é praticamente um currículo do Senhor e que acrescenta alguns dados novos às pesquisas realizadas no Arquivo Distrital de Vila Real. Além de Montalegre e Vila Pouca e Aguiar foi também e escrivão e tabelião do Juízo de Direito em Torre de Dona Chama entre 1855 e 1861, mas sobretudo, o mais importante é que consegui descobrir o ano da morte do senhor, bem como a existência de um segundo filho.


Paulino Antunes Guerreiro terá morrido em 1904. Imagem de https://digigov.cepese.pt

Com efeito, a 29 de Novembro de 1904 é publicado um edital, em que o filho Acácio Alfredo Antunes anuncia publicamente morte de Paulino Antunes Guerreiro e de sua mulher Josefa Xavier Teixeira de Magalhães citando a mulher do co-herdeiro Aníbal Aquiles Guerreiro, D. Maria Carolina Fornazini Guerreiro, ausente em parte incerta em África, para deduzir os seus direitos, querendo, no referido inventario, com a pena de revelia.

Bem sei que o meu objectivo era identificar a relação de José Rodrigues Liberal Sampaio com o Paulino Antunes Guerreiro, mas entusiasmei-me com o assunto e parti para o registos paroquiais de Montalegre, que se encontravam em grande parte disponíveis on-line no site a Arquivo Distrital de Vila Real, para tentar apurar mais alguma coisa desta família.

Comecei por procurar o assento de nascimento do filho, Acácio Alfredo Antunes, que sabia que ter nascido em 1862. Vasculhei todo o livro desse ano e não encontrei o registo de baptismo do nosso Acácio. Fiquei chocado com a quantidade de filhos naturais e expostos nesta paróquia. Já tinha lido sobre o assunto, num estudo acerca de outra aldeia transmontana, Santalha, em que os filhos ilegítimos chegavam a ser 40 por cento do total dos baptismos, mas ver desfilar à minha frente todos aquele bebés abandonados na roda dos expostos, chocou a minha sensibilidade moderna. Pensando, que a referência ao ano de nascimento do Acácio Alfredo estivesse incorrecta, passei a ver o livro de 1861 e lá encontrei mais e mais crianças, filhas naturais ou expostas, até que no dia 27 de Janeiro achei o assento de baptismo do outro irmão, o Aníbal Aquiles, nascido a 25 do mesmo mês e que é registado como filho natural. Pelos vistos a Josefa Xavier Teixeira de Magalhães e o escrivão de direito Paulino Antunes Guerreiro prevaricaram e tiveram uma criança fora do casamento. No assento de baptismo, indica-se Josefa Xavier Teixeira de Magalhães, solteira, era filha de Francisco Xavier Teixeira de Magalhães, escrivão de direito e de Maria Alves da Nóbrega. Os padrinhos foram o bacharel Manuel Alvares Martins de Moura, advogado e Comba Ermelinda da Conceição.

O assento de baptismo de Aníbal Aquiles

Pelos apelidos e pelas profissões, percebe-se que esta é obviamente uma família com posses, instruída, o que nos prova que não eram só as pobres jornaleiras, quem tinham filhos naturais.

Pressentindo que existia aqui alguma paixão contrariada à maneira dos romances de Camilo Castelo Branco, passei para os registos de casamento, para descobrir exactamente o que se passara entre a Dona Josefa Xavier e o escrivão de direito, Paulino Antunes Guerreiro. Ao contrário dos livros registos de baptismo, que são enormes, onde proliferam filhos naturais e bebés expostos na roda, os assentos de casamentos de Montalegre são poucos e em menos de uma hora vi quase duas décadas. Impressionou-me ver os casamentos dos filhos expostos, em que padre regista, Pedro Exposto casa com Maria Gonçalves, como se exposto fosse um apelido. Acabei por descobrir o casamento dos dois a 31 de Outubro de 1861, 10 meses passados do nascimento do pequeno Aníbal Aquiles.

O assento de casamento de Josefa Teixeira de Magalhães e Paulino Antunes Guerreiro 

O assento dá informações detalhas sobre o Paulino. Era filho de Bernardino Antunes Guerreiro e Domingas Alves Ferreira, neto paterno de Manuel Antunes e Josefa Dias de Melo e materno e José Alves e Maria Dias. Quanto à Dona Josefa era filha de Francisco Xavier Teixeira de Magalhães, de Maria Alves da Nóbrega, neta paterna de Francisco Xavier Teixeira de Magalhães e Jerónima de Macedo e materna de António Alvares da Nóbrega e de Teresa Maria. Quase toda esta gente era natural de Montalegre. No assento, percebe-se que houve qualquer confusão com os arquivos e pároco transcreve os assentos de nascimento dos nubentes. A Josefa Xavier nasceu a 4 de Abril de 1834 e o Paulino a 7 de Fevereiro de 1830. Casam relativamente tarde, ela com 27 e ele com 31. Quando a Josefa se deixou seduzir pelo Paulino já não era uma garota e contava com 26 anos.

Fica no ar a pergunta, porque é não estavam casados aquando do nascimento do primeiro filho, o Aquiles, em Janeiro de 1861. Através do assento de casamento ficamos com a ideia que os apelidos da família da noiva eram mais sonantes que os família do Paulino. Será que a família Teixeira de Magalhães acharia que o Paulino não estava à altura da Josefa. Mas é estranho, pois o pai, o Francisco Xavier Teixeira de Magalhães era tal como o Paulino, escrivão de direito e conviveram os dois no cartório notarial de Montalegre, antes e depois do casamento, conforme se pode ver pelos registos do Arquivo distrital de Vila Real. Tinham os dois a mesma profissão. Enfim, as pessoas que poderiam responder a estas interrogações, deixaram este mundo há mais de 100 anos.

Em todo o caso o Aníbal Aquiles usará os apelidos do pai, mesmo sendo filho natural.

Sabendo o ano do nascimento, posso atribuir uma data mais segura para retrato do Paulino. Na fotografia aparenta ter entre 40 e 50 anos, portanto a fotografia terá sido tirada por volta de 1875, um ano a mais ou um ano a menos.

Paulino Antunes Guerreiro
Paulino Antunes Guerreiro (1830-1904)

Bem sei que me desviei do meu propósito de encontrar a relação entre o Paulino Antunes Guerreiro (1830-1904), escrivão de direito em Montalegre e o meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio, que trocaram fotografias por volta de 1875 e perdi-me na reconstituição do percurso familiar do primeiro. Mas é fascinante consultar estes registos paroquiais, que revelam hábitos tão diferentes dos nossos, em que era prática corrente expor crianças na roda, abundavam filhos fora do casamento e os matrimónios eram contrariados.

Bibliografia:

Diário do Governo https://digigov.cepese.pt.

Ruralismo e família em Vinhais: estudo de caso sobre a paróquia de Santalha (1886-1909) / Berta Gonçalves Morais. Porto, 2003

Tentativa de dedução genealógica da família Caldas / Diogo Paiva e Pona

Fontes Arquivísticas:

Arquivo Distrital de Vila Real: Livro de casamentos de 1861

Arquivo Distrital de Vila Real: Livro de baptismos de 1861

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Heloísa no Monte Paracleto: um relógio francês da primeira metade do século XIX



Como já aqui contei, o meu amigo é um comprador apaixonado de relógios de pêndulo, esses mecanismos que antigamente existiam em todas as casas ricas ou burguesas. Já no século XX, mesmo aqueles que viviam remediadamente ambicionavam ter um e poupavam os seus tostões para adquirir um relógio da Boa Reguladora.

Este relógio que o Manuel comprou na Feira de Estremoz foi concebido para estar no topo de uma chaminé ou de uma cómoda. Desde logo nos pareceu que seria uma coisa do século XIX e obviamente francesa, já que nesse período a França dominava o mercado da produção de relógios de luxo de parede ou chaminé. E este é realmente um relógio luxuoso, todo feito em bronze, num magnífico dourado.



Contudo não apresentava qualquer marca e o próprio significado da dama elegantemente vestida, que se agarrava a uma cruz não era claro. Poderia eventualmente ser uma Maria Madalena arrependida, mas no século XIX os fabricantes de relógios franceses e o público, que os comprava, evitavam os temas declaradamente religiosos. Se pesquisarmos no google por pendule francaise XIX siécle vamos a ter a toda uma série de páginas de antiquários e leilões e os relógios à venda são inevitavelmente decorados com temas da mitologia greco-romana, alegorias igualmente de inspiração clássica ou então cenas galantes ao gosto de Watteau. Lembrei-me que poderia ser uma alegoria de uma das virtudes teologais, mais exactamente a fé, que costuma ser representada por uma senhora como a cruz. E com efeito encontrei um ou outro relógio com representações das virtudes cardeais ou alguma das sete virtudes, mas normalmente a dama, que simboliza a fé não aparece representada em trajes de corte e falta-lhe o livro, representando a Bíblia.

Relógio à venda na https://www.piguet.com/en/lots/1071806


Embora não entenda nada da parte mecânica dos relógios, como objectos decorativos encantam-me e por essa razão lancei-me à procura nos sites de venda on-line de um relógio que representasse uma dama abraçada a uma cruz e de facto encontrei modelos quase idênticos. O primeiro no leiloeiro Piguet, Hôtel des Ventes, de Genebra, marcado no mostrador como sendo de Claude Barthele , de Grenoble, mas esta marca, poderá reportar-se ao esmaltador, ou mais provavelmente à ourivesaria, que o comercializou. Segundo este leiloeiro, o movimento do relógio, ou melhor o mecanismo foi feito em Paris, no Grange et Bétout à Paris, e apresenta também a seguinte inscrição Medaille d'or Pons 1827. No entanto, é mais provável que o Grange et Bétout tenha sido o ebanista, que executou os embutidos da base em madeira e o Pons, deve referir-se certamente ao reputado relojoeiro Honoré Pons, 1773–51, que chegou a receber a legião de honra em 1819 bem vários outros prémios pelo seu trabalho. O referido leiloeiro não esclarece quem representa a dama agarrada à cruz e data do relógio do período da restauração (1814-1830)

Enfim, começava a acreditar que o relógio do Manel seria do prestigiado Relojoeiro Honoré Pons e continuei à minha procura na net e encontrei mais outro relógio semelhante no e-bay, mas sem qualquer marca e também sem nenhuma identificação acerca da dama piedosa.

Madame de Sevigné, relógio de Monteil, Toulouse


Achei então que já tinha esgotado a informação disponível na internet e passei à procura de informações mais sérias e consistentes nos livros e na encontrei a obra La pendule française : des origines a nos jours / Tardy ; H. Levasseur. - Paris : Tardy, 1969 na biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga, que me esclareceu mais alguns aspectos sobre este relógio. Na página 454, do segundo volume desta obra, encontrei outro relógio semelhante a este, com o mecanismo assinado pelo relojoeiro Encely de Toulouse, datado do período da Monarquia de Julho, o chamado estilo Luís Filipe (1830 a 1848) mas desta vez a jovem elegante e piedosa, que se agarra à cruz é identificada como Heloísa, no Monte Paracleto. Além dos temas da antiguidade clássica a partir de mais ou menos 1830, a relojoaria francesa assimilou os valores do movimento romântico, introduzindo assuntos históricos inspirados na idade média e na literatura. Apareceram então relógios neogóticos, representações em vulto da escritora Madame de Sevigné, da Rainha da Escócia, Maria Stuart, das figuras do romance Paulo e Virgínia e ainda desta Heloísa, que com o seu amado Abelardo viveram no século XII um dos romances mais famosos da história. 

Heloísa no Monte Paracleto, assinado por Encely,  Toulouse

Não consegui exactamente perceber que momento da vida de Heloísa este relógio representa, mas encontrei uma estampa num libreto de uma ópera de Donizetti, que não anda muito longe desta cena em bronze.



Sabendo então, que este relógio representava o desespero da pobre Heloísa fiz mais uma busca pela internet e encontrei outro relógio semelhante à venda no Canadá, nas Antiquités Bolduc, mas desta vez com o mecanismo assinado pelos Japy Freres, uma das grandes casas de relojoaria francesa.

Relógio de Japy Freres à venda nas Antiquités Bolduc


Em suma, é quase impossível atribuir este relógio do Manel a este ou aquele fabricante. Nesta época, algures no segundo quartel do século XIX, para montar um relógio concorriam vários mestres ou fábricas. Em primeiro lugar o fabricante do mecanismo que executava o relógio propriamente dito e em segundo o fabricante da caixa do relógio. Se esta fosse de cerâmica poderia ser uma encomenda a Sèvres ou um fabricante de porcelana da cidade de Paris. Se o relógio estivesse numa estrutura em madeira, o autor desta seria uma oficina de ebanistas, que realizaria embutidos preciosos. Finalmente, se fosse em bronze, encomendava-se as esculturas a uma metalurgia, que a partir de um molde, fundiria a peça e faria os acabamentos à mão, mediante o uso de um cinzel. Creio que relógios inteiramente feitos numa fábrica só irão fazer a sua aparição na segunda metade do XIX. Ainda assim, recordo-me de há pouco tempo visitar uma das lojas de ferragens mais antigas de Lisboa, a Casa Achilles, na Rua de São Marçal e tinham ainda à venda estruturas de relógios neobarrocos, numa liga qualquer de latão, prontos para serem vendidos a qualquer relojoeiro ou ourives, que nele quisesse instalar um mecanismo.

Em suma, o mais natural, é que no segundo quartel do século XIX tenha havido uma metalurgia qualquer em França, que executava com grande qualidade estas esculturas em bronze, que eram depois vendidas para vários relojoeiros, como os Japy Freres, o Encely de Toulouse, Honoré Pons ou ainda outros e o público burguês abastado, apreciaria ter nas suas cómodas ou chaminés estas representações de um momento dos amores de Heloisa e Abelardo.



Alguma bibliografia e links consultados:

La pendule française : des origines a nos jours / Tardy ; H. Levasseur. - Paris : Tardy, 1969