terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Um bibelot fora de moda


Por vezes os impulsos que nos levam a encher as nossas casas com objectos definitivamente fora de moda ou até mesmo Kitsch são estranhos. Talvez a frieza do mobiliário contemporâneo e o racionalismo da decoração minimalista se adaptem mal a quem tem uma certa visão romântica do mundo e gosta de se rodear de história. No fundo, quem colecciona velharias ou antiguidades está a inventar um passado para si, a encher a casa de objectos cheios de memórias, que pertenceram a outras pessoas e a apropriar-se delas.

Aliás é curioso, que o comércio de antiguidades como o conhecemos hoje teve origem em França, nos finais do II Império (1852-1870), quando os grandes milionários burgueses começaram a comprar cómodas, pinturas, bronzes, tapeçarias e esculturas dos séculos XVI, XVII e XVIII para tornar as suas casas semelhantes às dos velhos aristocratas. Estes grandes financeiros burgueses ao copiarem a decoração das casas nobres, cheias de antiguidades, herdadas de geração em geração, pretendiam confundir-se com a sociedade aristocrática.

Claro, esta jarrinha não tem nada de aristocrática. É um bibelot burguês possivelmente do início do século XX, mas que tem o charme de uma velha casa de família do passado. Nem sequer está marcada, pois na altura que foi produzida, algures na Alemanha, Áustria ou Boémia, os seus fabricantes tentariam que esta jarra passa-se por ser uma peça de Meissen, ou da prestigiada Royal Dux, com as suas jarras e figurinhas em estilo arte nova. Aliás, ainda tive esperança que esta jarra, com a sua decoração assimétrica, copiando as formas vegetais, fosse da Royal Dux. Mas as peças dessa antiga fábrica checa tem uma qualidade muito superior estão sempre marcadas. 

A decoração da jarrinha, composta por um putti, uvas e parras representa uma dança dionisíaca, tema já usado na antiguidade e é muito comum na faiança, majólica, porcelana, biscuit e até na ourivesaria. Na pesquisa por imagens da internet vi dúzias e dúzias de jarras, jarrinhas e jarrões decorados com meninos gordos e travessos pendurados na asa, no bojo e no bico e com muitas parras e uvas à mistura.

Em suma, todas as minhas pesquisas para identificar o fabricante desta jarra foram inúteis. Posso apenas presumir que foi fabricada algures na Alemanha, Áustria ou na Boémia nos últimos anos do séc. XIX ou inícios do século XX. É uma peça Kitsch, sem grande valor, pois parte da asa está partida, mas tem o charme dos objectos irremediavelmente fora de moda.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

“Le Feu: Vulcain”: uma pequena gravura com três séculos

Por um preço muito simpático comprei recentemente esta estampa com 300 anos. Não preciso dela para nada e nem sei onde a hei-de colocar, pois as paredes da minha casa estão integralmente cheias. Mas, para os amantes das velharias e antiguidades o prazer da descoberta não tem preço.
 
Quando cheguei a casa com a gravura, lancei-me sobre a internet e fiz algumas pesquisas combinando o nome do título da gravura Le Feu: Vulcain com os nomes do gravador e do pintor Jeaurat e Vleughels e descobri um exemplar desta estampa na Welcome Library de Londres.

Pude então identificar correctamente esta gravura, que representa o deus romano Vulcano e foi gravada em 1716 por Edme Jeaurat (1688-1738), a partir de uma obra do pintor Nicolas Vleughels (1668-1737), na cidade de Paris, onde o gravador Edme Jeaurat tinha a sua oficina.

Apresenta um epigrama, alusivo ao tema, da autoria de Noël Bosquillon, um poeta e tradutor de latim, com alguma notoriedade nos finais do século XVII, inícios do XVIII e hoje completamente esquecido e cujo texto abaixo transcrevo:

Vulcan n'est pas long-temps paisible;
L'enclume va gemir sous son puissant marteau:
On reconnoist le feu, cet element terrible,
A celuy qui de Vleugle échaufa le pinceau
 
 

Com os dados obtidos nessa biblioteca, cuja imagem está disponível on-line continuei a minha busca até chegar ao catálogo da Biblioteca Nacional de França onde consegui perceber que esta gravura fazia parte de um conjunto de quatro, em que cada uma delas representava um dos elementos básicos da constituição da matéria, o fogo, a água, o ar e a terra. Todas estas gravuras foram executadas pela parceria Jeaurat e Vleughels, contam um epigrama de Noël Bosquillon e nelas os 4 elementos são representados por um deus da mitologia clássica, Vulcano para o fogo, Juno para o ar, Amphitrite para a água e Cíbele para a terra.
L'eau :Amphitrite / Edme Jeaurat ; N. Vleughels
 
 
L'air :Junon / Edme Jeaurat ; N. Vleughels

Parti então à procura de imagens das outras estampas, que formavam conjunto com este meu Vulcano, pois já agora queria reconstitui-lo, ainda que virtualmente e de facto consegui encontrar na net imagens de L’eau: Amphitrite e de L’air: Junon, a primeira à venda no e-bay e a segunda num inventário cultural dos bens da Lombardia. Quanto a Cíbele ou Ceres, esquadrinhei toda a internet, mas não encontrei nada. No entanto, ao vasculhar os catálogos dos museus e das bibliotecas, descobri que este Edme Jeaurat dedicou-se muito a produzir conjuntos de estampas com este tipo de alegorias, como por exemplo, aos cinco sentidos, às quatro estações, às paixões humanas, tomando sempre como referência cenas da mitologia clássica.
 
L'ETE / Edme Jeaurat ; N. Vleughels. Edme Jeaurat dedicou-se muito a produzir conjuntos de estampas alegóricas, como por exemplo, aos cinco sentidos, às quatro estações, às paixões humanas.
 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

La Fuite à dessein, gravura segundo Fragonard

Numa banca de uma feira de velharias, encantei-me com esta pequena gravura colorida, impecavelmente emoldurada e sem hesitações comprei-a e trouxe-a para casa. O meu amigo Manel fez o favor de se desencaixilhar a estampa, mas infelizmente não apresentava qualquer marca de gravador, o que significava que teria que identificar aquele pedacinho de papel a partir de milhares de imagens disponíveis na internet.


Desde logo fiquei com a ideia, que esta gravura representando uma jovem com um vestido esvoaçante seria uma dessas estampas coloridas inglesas, dos finais do XVIII ou inícios do século XIX ou até talvez uma obra de Bartolozzi, pois na mesma banca vendiam-se umas quantas gravuras daquele artista italiano, que trabalhou em Londres e em Lisboa. Abri então a internet e fiz umas quantas pesquisas com os termos combinados Bartolozzi e colour engraving, que não deram resultados. Lembrei-me também que poderia ser uma gravura feita a partir de uma das obras de Angelika Kauffmann, que pintava muitas vezes umas jovens envergando uns vestidos de tecidos leves e suavemente drapeados, mas as buscas no Google foram igualmente decepcionantes.


Apliquei então uma técnica nova e no menu pesquisa por imagens do google, carreguei uma fotografia que fiz da estampa e ordenei ao motor de busca que encontrasse imagens idênticas. Acrescentei à pesquisa alguns termos significativos, como colour engraving e antiques, young woman e zás, surgiu-me uma imagem a preto e branco da estampa da colecção do The Metropolitan Museum of Art. O mistério estava resolvido, a minha estampa tinha sido feita a partir de uma obra do célebre artista francês, Jean Honoré Fragonard (1732–1806), o pintor de cenas galantes e libertinas.
La Fuite à Dessein. Jean Honoré Fragonard (1732–1806). The Metropolitan Museum of Art
O título da obra é La Fuite à Dessein, o que em português quer dizer, fuga com propósito, isto é, a jovem rapariga foge de um pretendente, que aparece representando no canto inferior direito da gravura. No entanto, ela não está nada aflita. Pelo contrário, parece deliciada com a situação e foge em direcção a um sítio qualquer afastado e protegido, onde se poderá entregar sem reservas ao rapaz.

A rapariga é perseguida por um pretendente

É uma obra típica de Fragonard, que trabalhava sobretudo para uma clientela privilegiada, pintando quadros de pequenos formatos destinados a decorar os interiores de residências aristocráticas. O traço fogoso, as cores vivas e luminosas das suas telas celebraram com poesia a juventude e a natureza. Fragonard foi pintor de numerosas cenas galantes, moda iniciada por Watteau, que apresentam os divertimentos da nobreza, no meio de uma luxuriante natureza, onde a coberto do jogo, o desejo exprime-se sem entraves

La Fuite à Dessein. Jean Honoré Fragonard. Harvard Art Museums/Fogg Museum

O quadro que serviu de modelo à estampa encontra-se nos Estados Unidos, no Harvard Art Museums/Fogg Museum e foi pintado originalmente para a Marquesa de Turpin de Crissé.

As obras de Fragonard estão impregnadas de uma grande sensualidade e mesmo de um certo erotismo


Contudo ao contrário da gravura da colecção do The Metropolitan Museum of Art, que está assinada por Charles François Adrien Macret (1751–1789) e Jacques Couché (1750-1800?) e datada no ano de 1783, a minha estampa não tem qualquer assinatura de gravador ou impressor. Será talvez uma cópia posterior dessa estampa, talvez já do século XIX, até porque as gravuras feitas a partir das obras de Fragonard, impregnadas de uma grande sensualidade e mesmo de um certo erotismo, conheceram um grande sucesso junto do público.

Esta pequena estampa representa um tempo em que o espírito libertino das luzes pairava sobre a França.