quarta-feira, 24 de julho de 2019

Restos de um serviço de porcelana da Vista Alegre (1852-1869)

Desde que herdei da minha avó paterna uma meia dúzia de peças da Vista Alegre, fiquei fascinado com as delicadas decorações florais tão típicas da produção daquela casa ao longo do século XIX e não parei então de as coleccionar. Claro, como a minha casa é muito pequena, não posso comprar serviços inteiros. Limito-me a adquirir um bule aqui, uma chávena acolá depois uns anos mais tarde um prato de bolo, o que talvez seja uma tolice, pois um dia que precise de vender, um serviço inteiro terá muito mais valor comercial, do que uma dúzia e meia de peças desirmanadas. Mas como sou um mero coleccionador sentimental, acabo por ser um bocadinho errático nas minhas escolhas. 
Há pouco tempo comprei por um preço irrecusável um prato raso da Vista Alegre, com uma decoração floral e uns motivos dourados muito bonitos e quando cheguei a casa, descobri que já tinha uma chávena e uma leiteirinha do mesmo padrão. Estas duas últimas peças não estão marcadas e quando escrevi sobre elas em Outubro e Setembro de 2011, embora me parecessem da Vista Alegre, não deixei de colocar a hipótese de serem porcelana francesa, já que a fábrica de Ílhavo seguiu muito de perto das modas da porcelana feita na cidade de Paris.
Marca 14 da Vista Alegre (1852-1869)
Mas, com a compra deste prato, que está marcado tirei as dúvidas e as três peças que hoje apresento em conjunto são indiscutivelmente da Vista Alegre. O prato ostenta a marca nº 14, feita a punção usada entre 1852-1869 e assim sendo a chávena, a leiteira e o prato raso são até mais antigas do que pensava em 2011. Na época, tinha o palpite que fossem do 4º período da Vista Alegre, 1870-1880 e afinal foram produzidas entre 1852-1869.
Lista de marcas da Vista Alegre https://vistaalegre.com/catalog/evolucaomarca.pdf
 
Este resto de um antigo serviço de Chá não tem grande valor comercial, mas quem poderá resistir ao charme da sua delicada decoração floral?
 
 
  

segunda-feira, 15 de julho de 2019

O Menino Jesus do Convento das Flamengas


Comprei mais este registo, representando um Menino Jesus, vestidinho como se fosse um cortesão, a que não faltam sequer uns sapatinhos de fivela, uma camisa debruada com rendas e uma peruca. Estava muito mal emoldurado, numa dessas caixas de vidro, ornamentada com umas fitas de ouro compradas nas lojas dos chineses e ainda umas escamas de um peixe, provavelmente de uma espécie geneticamente modificada. Enfim, era uma daquelas coisas modernas e infelizes a imitar os registos feitos nos conventos. Resolvi retirar esta estampa antiga daquele horror, mas acabei por rasga-la e lá foi o meu amigo Manel, que com a sua paciência, a conseguiu colar.


Como já escrevi aqui no blog, durante os séculos XVII e XVIII nos conventos femininos portugueses a devoção ao Menino Jesus, manifestou-se de formas que hoje nos parecem muito curiosas. No muito tempo que tinham livre, as irmãs dedicavam-se a confeccionar enxovais completos ao Menino Jesus, onde não faltava nada, desde trajes de caça, roupa de cama, roupa interior, trajes de corte, chapéus, sapatos e meias, conforme nos dá conta Flávio Gonçalves na sua obra O vestuário mundano de algumas imagens do Menino Jesus, Porto, 1967. Mas as religiosas se não limitavam ao guarda-roupa, escreviam poemas ao Menino Jesus, encenavam peças de teatro para Ele e ainda encomendavam-lhe cadeiras e camas em miniatura, que são réplicas fiéis do mobiliário então em voga. É o caso, deste menino Jesus, das Religiosas Flamengas do Convento de Alcântara, em Lisboa, que se encontra sentado num cadeirão de braços muito ao gosto do século XVIII.

Cadeiras de imagem da col. do Museu Nacional de Arte Antiga


O Museu Nacional de Arte Antiga expõe na secção de mobiliário algumas dessas cadeiras e leitos de imagens, que além de serem uma verdadeira graça, testemunham a intensa devoção ao Menino Jesus experimentada por essas mulheres que viviam em reclusão. Claro, aos nossos olhos modernos, tudo isto nos parece coisa própria de mulheres celibatárias, que procuravam satisfazer um desejo recalcado de maternidade, mas a sua fé era genuína e o Menino Jesus era como que um cupido brincalhão, que cravava no coração dessas freiras o dardo do amor divino.

Leitos de imagem da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga


Esta estampa dos finais século XVIII reproduz uma imagem que existiu em tempos no Convento de Nossa Senhora da Quietação, em Alcântara, conhecido vulgarmente pelas flamengas, pois tinha sido fundado no século XVI, no tempo de  Filipe II, para acolher religiosas fugidas das perseguições luteranas na Holanda e na Flandres e terá sido objecto de um intenso culto não só parte das monjas clarissas, que viviam nessa casa de religiosas, mas também da população em geral, de outro modo não se teria mandado imprimir esta estampa.

Menino Jezus das Religiosas Flamengas d'Alcântara. Carvalho Fecit. Em caza de M. D. A Junior, na rua dos Calafates, nº 116

Este registo foi gravado por Teotónio José de Carvalho, que fazia muitas destas gravurazinhas baratas (só eu tenho umas quatro gravadas por ele)  e vendia-se em casa de um tal M. D. A Junior, na rua dos Calafates, nº 16. Estas iniciais correspondem ao nome Manuel d'Ambrosii Júnior, que no Inventário da colecção de registos de santos de Ernesto Soares é mencionado 13 vezes, o que nos dá ideia da popularidade das suas edições. Tinha a sua casa na rua dos Calafates, nº 116, em Lisboa, que corresponde à actual Rua Diário de Notícias, no Bairro Alto. O Bairro Alto foi durante mais de dois séculos uma zona onde tradicionalmente os livreiros e impressores tinham os seus estabelecimentos.
O Convento das Flamengas. Foto http://www.monumentos.gov.pt/

Quanto ao paradeiro actual deste Menino Jesus e do seu precioso enxoval, não descobri nada. Após a extinção das ordens religiosas, com a morte da última freira, em 1887, as alfaias e os objectos de cultos deste convento dispersaram-se. Uns fazem parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, mas entre eles não se conta o Menino Jesus nem a sua cadeira, e outros bens voltaram à igreja do mosteiro em 1889, sendo entregues à Real Irmandade da Nossa Senhora da Quietação. Será que este Menino Jesus pertencerá ainda à referida Irmandade ou foi vendido em hasta pública no século XIX e da sua existência luxuosa, com trajes de corte tão ricos, restou apenas esta estampa como testemunha?





Alguma bibliografia e links consultados:



Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955.


O vestuário mundano de algumas imagens do Menino Jesus / Flávio Gonçalves , Porto, 1967


http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=5940