quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Doze anos de velharias do Luís



O blog velharias do Luís completa hoje doze anos. Nem sei como o mantenho há tanto tempo. Creio que necessito deste exercício espiritual de escrever, fazer alguma investigação sobre velharias ou história familiar. De outra forma a minha vida seria bem mais triste, marcada por um quotidiano banal entre a casa e o emprego.

Estes aniversários são também um momento de reflexão sobre o que me leva a encher um apartamento minúsculo com tanta gravura, pratos, porcelanas, candeeiros, espelhos, fotografias, bibelots e outras traquitanas. Não sou um coleccionador no sentido clássico do termo, que escolhe uma época ou uma área temática, por exemplo pintura de retrato e se especializa nesse campo. Eu compro um pouco de tudo e de quase todas as épocas, desde que não seja arte contemporânea e o principal critério parece ser a dimensão, isto é, desde que seja pequeno e antigo e caiba na minha casa.

Mais do que um coleccionador, sou um criador de ambiente. Preciso de ter um espaço decorado à minha medida, de acordo com a minha personalidade, o meu gosto e o interesse pela história.

Mas esta acumulação de velharias é igualmente uma tentativa de recriar na minha assoalhada e meia antigas casas antigas de família, que marcaram a minha vida, como se quisesse reviver todos os dias aqueles sítios e as pessoas que lá viveram e morreram. Da casa da minha avó em Chaves, copiei um certo ar de paço episcopal com móveis do século XVII, ao gosto desse século ou em estilo D. João V, cobertos de damasco vermelho. Depois fui mais longe nesse gosto eclesiástico e enchi tudo com santos, santinhos e outras beatices. As memórias já um pouco esbatidas do interior do Solar de família Montalvão em Outeiro Seco, inspiram-me para mandar fazer um tecto de masseira, que confere ao meu apartamento o ambiente de uma residência fidalga, mas à escala de uma casa de bonecas. 



Nesse solar, existia uma colecção de gravuras antigas representando os reis de Portugal e da qual herdei apenas três retratos. Aos poucos fui comprando mais gravuras dessa temática, como que tentando reconstituir essa colecção, de que nem sequer me lembro de ver na casa. Só conhecia a sua existência através das conversas da minha avó Mimi e do meu pai. Também do recheio dessa casa recebi uma dúzia de porcelanas da Vista Alegre do século XIX, decoradas com florinhas e filetes dourados. Claro, depois disso, comprei mais uma vintena de chávenas, pratos, leiteiras e açucareiros dessa época e estilo.



Da casa de da família em Vinhais, na qual passei sempre férias de Verão, reconstitui um canto da sala de estar onde existe um comprido armário cheio de fotografias de família de todas as gerações. Aliás, sempre que nascia uma criança nova na família, toda a gente se apressava a mandar uma fotografia do rebento à Tia Lalai, para que a tia a colocasse naquela galeria. O meu gosto pela faiança Cantão popular começou também nesta casa, onde na sala de jantar está pendurada uma travessa deste motivo decorativo.



Ao longo destes anos andei a completar, reconstituir ou recriar ambientes das casas de família, mas neste momento ultrapassei em muito os modelos originais e a minha casa tornou-se qualquer coisa de único, que só podia ser do Luís Montalvão.

As memórias das casas antigas e dos que lá viveram e deixaram esta vida continuam aqui neste apartamento, como se eu tentasse capturar esse tempo, que passou irremediavelmente. É um ambiente reconfortante, um refúgio, mas algumas vezes doloroso, quando me recorda que a morte está sempre presente. Mas esse convívio entre o passado e o presente é a essência da própria vida.

sábado, 25 de setembro de 2021

Sto. Epifânio de Salamina: uma estampa do século XVII

Santo Epifânio de Salamina

Para quem gosta de coisas antigas, mas tem um orçamento reduzido, comprar gravuras é uma boa opção. Nos mercados de velharias ninguém lhes ligada nada e adquirem-se gravuras do século XVIII ou até mais antigas por preços irrecusáveis e se tivermos sorte, até estão bem emolduradas.

Muitas gravuras que se encontram à venda foram arrancadas de livros, pois alguns alfarrabistas ou vendedores de velharias fazem mais dinheiro vendendo as estampas à unidade do que pelo livro inteiro. Descobrir de que livro foi retirada esta ou aquela estampa é para mim uma charada, que me dá um enorme prazer resolver.

Esta estampa que o meu amigo Manel comprou representando, Santo Epifânio de Salamina não escapa a essa excepção e foi também tirada de um livro. O lado direito da estampa está até um bocadinho rasgado, pois quem fez esse trabalho, há cinquenta ou 60 anos nem sequer se preocupou em ir buscar uma tesoura ou um bisturi. Rasgou a página e pronto.
A estampa foi rasgada de um livro num momento qualquer desconhecido 

Para tentar descobrir de que livro saiu esta página, com a representação deste bispo Epifânio (ca. 315-403), fotografei a gravura e carreguei a imagem no Google images, pressionei a tela enter e o motor de busca foi buscar todas as imagens iguais existentes na internet. Encontrei duas ou três imagens iguais, mas num daqueles repositórios, que comercializam fotografias de obras de arte e que não fornecem quaisquer dados sobre os autores, as datas ou locais de impressão ou edição. Presumo, que só quando se compra imagem através do cartão de crédito é que esses repositórios indicam mais alguns dados.

Mas como não gosto de me deixar vencer por vendilhões na internet continuei as minhas buscas e na página facebook de uma senhora, que anunciava uma conferência sobre Sto. Epifânio de Salamina, encontrei uma gravura igual inserida ainda no livro original. Contudo a Senhora não identificava o título do livro. Copiei a imagem, ampliai-a e consegui perceber de que se tratava da obra completa, ou a Opera omnia de Epifânio de Salamina, uma edição em dois volumes feita na cidade de Leipzig, por Jeremiae Schrey, & Heinrich. Joh. Meieri, em 1682. Pesquisei então na internet e encontrei integralmente digitalizada esta obra na Biblioteca Nacional de Roma, que foi publicada em grego e latim. Contudo, não tinha esta estampa incluída. Achei isto muito estranho e voltei a fazer mais pesquisas quer pelo título transliterado do grego Tou en agiois patos ēmōn Epiphaniou episkopou Konstanteias quer pelo título latino até que encontrei um exemplar à venda desta edição de 1682 numa leiloeira de Estocolmo e este tinha a estampa logo antes da folha de rosto. Fiquei então com a ideia de o exemplar à venda em Estocolmo estaria completo e o da Biblioteca Nacional de Roma truncado, o que acontece algumas vezes. 

O exemplar à venda numa leiloeira de Estocolmo. Edição de 1682

Na minha experiência como bibliotecário, já apanhei edições antigas do século XVIII ou XVII em que lhes falta um caderno, o frontispício, ou mesmo uma ou outra gravura. Esta minha impressão foi confirmada, quando mais adiante encontrei outro exemplar digitalizado a partir do livro da Biblioteca Pública de Lyon em França e que incluía a estampa do nosso Santo Epifânio.

Paralelamente a estas pesquisas bibliográficas, fui também lendo alguma coisa sobre este Santo Epifânio, um teólogo do século IV, bem como sobre o padre Jesuíta, Denis Pétau ou Dionysius Petavius (1583-1652), que compilou as obra do referido Santo Epifânio, que tinham vindo a ser publicadas aqui e ali ao longo do século XVI. Apercebi-me então que esta edição de Leipzig da Opera omnia de Epifânio de Salamina preparada por Denis Pétau tinha sido publicada pela primeira vez em 1622, em Paris, pelos impressores Michaelis Sonnii, Claudii Morelli, et Sebastiani Cramoisy e claro, como sou curioso fiz uma nova pesquisa para consultar também esta obra e para surpresa minha continha a mesma estampa. 

Distribuição das páginas na edição de Paris de 1622. No verso da estampa está impresso um título. imagens da cópia digital da Biblioteca Nacional de França

Fiquei então com a ideia de que gravura do meu Amigo Manel tanto podia ser da edição de Paris de 1622, como da Leipzig de 1682. Mas comparando on-line melhor as duas edições, percebi que na estampa da obra publicada em Paris tem um título a negro do outro lado da folha. Na obra impressa em Leipzig a gravura não apresenta quaisquer letras impressas no verso, tal como a estampa do meu amigo. Portanto a gravura de Santo Epifânio do Manel foi retirada da edição de 1682.

A distribuição das páginas no exemplar da Bibliothèque municipale de Lyon, da edição de 1682. No verso da estampa não há caracteres impressos

Enfim tudo isto aos nossos olhos contemporâneos parece obscuro e bizantino, mas este Sto. Epifânio de Salamina foi um teólogo conceituado no século IV da nossa era, que escreveu sobretudo sobre as heresias numa época em que o cristianismo ainda se estava a definir, se discutia o dogma da Santíssima Trindade e a divindade de Cristo e os textos dos evangelhos, que faziam fé ainda não tinham sido inteiramente definidos. No espaço do antigo Império Romano proliferavam então diferentes interpretações do Cristianismo e muitas vezes estas discussões terminaram em verdadeiras guerras civis. Nos séculos XVI e XVII, com a reforma e a proliferação de das igrejas protestantes na Europa, a obra de Sto. Epifânio de Salamina ganhou um acrescido interesse entre os teólogos católicos e o padre Denis Pétau, um estudioso de autores gregos cristãos decidiu então publicar a sua obra completa, da qual esta estampa fez um dia parte.
Santo Epifânio de Salamina, 1682


domingo, 12 de setembro de 2021

Nossa Senhora em espuma de mar


Encanto-me com as pequenas imagens religiosas francesas de finais do século XIX, normalmente encaixilhadas numa moldura oval e com o vidro abaulado ou bombé, como se fiz em francês. Eram imagens que se traziam dos centros de peregrinação em França como Lourdes ou La Salette ou que se vendiam em casas de artigos religiosos. Ao contrário do que se pensa, a França não exportou só para o mundo revoluções, jacobinismo, movimentos artísticos arrojados e ideias de liberdade ou de libertinagem. Durante o século XIX, uma boa parte da França continuava profundamente católica e abundavam naquele país casas de artigos religiosos, que exportavam os seus santinhos, pagelas e livros piedosos para o todo o mundo apostólico e romano.

Há muitas imagens destas à venda na net e há sempre uma certa confusão sobre o material em que são realizadas. Normalmente são vendidas como sendo espuma de mar, em francês, écume de mer e em alemão, meerschaum, termo também usado pelos ingleses. Esta espuma de mar é um mineral branco, uma sepiolita, que faz parte do grupo das argilas. É um material fácil de trabalhar e adequado à escultura. Contudo, alguns sites de venda on line, como o americano rubylane, indicam que o material é a Terre à pipe ou terre de pipe, o nome antigo de uma argila plástica ou de um caulino, todos eles propícios à realização de trabalhos minuciosos de escultura. Outros ainda são vendidos como gesso. Estes últimos são relativamente fáceis de identificar pois são sempre mais branquinhos que os outros. Agora saber se são feitos em sepiolita, terre de pipe ou caulino é demasiado complicado para mim que não entendo nada de mineralogia, mas fiquei com a ideia que estes três minerais são relativamente próximos uns dos outros.

Esta nossa Senhora é de dimensões reduzidas

Esta nossa Senhora em espuma de mar ou terre de pipe de dimensões reduzidas é um trabalho muito minucioso e tem uma cor vagamente amarelada, que faz até lembrar o marfim. A minha peça não está no seu contexto original, perdeu a sua moldura original oval, com o vidro bombé



No verso tem dois espigões o que me levou a pensar que estaria encaixada numa estrutura côncava também em espuma de mar e que lhe serviria de cenário, com uma nuvens representadas, uns raios de luz divinos e uns anjinhos. Porém encontrei num desses sites de partilha de imagens, https://www.picuki.com/media/1736802531030081519, uma nossa senhora igual, que pertence a uma senhora ou senhor australiano, que se encontra em Brisbane. De facto, a minha imagem, nunca teve nenhum cenário e falta-lhe apenas a moldura oval e o vidro abaulado.

Este seria o aspecto original da minha Nossa Senhora. Foto de https://www.picuki.com/media/1736802531030081519


Quanto à iconografia não consegui perceber, a que devoção mariana ou a que santuário mariano em França, esta peça se reporta. Contudo quando mostrei esta foto a um amigo, o Daniel, ele identificou-a imediatamente como tendo sedo inspirada directamente na Imaculada de Soult, também conhecida por Imaculada Conceição dos Veneráveis, uma pintura do espanhol Murillo, datada de cerca de 1678. 
Imaculada de Soult, de Murillo. Museu do Prado. Foto Wikipédia

Esta pintura tem uma história muito curiosa, pois foi concebida originalmente para o Hospital de los Venerables, em Sevilha, mas em 1813 durante as invasões francesas, foi roubada e levada para França, pelo Marechal Soult, esse senhor que também fez umas belas patifarias por Portugal. Depois da morte do Marechal em 1851, os herdeiros venderam à pintura ao Museu do Louvre em 1852 por uma verdadeira fortuna. A Imaculada Conceição dos Veneráveis esteve exposta no Louvre até 1941, ano em que o Marechal Petain, a devolveu a Espanha, juntamente com a célebre Dama de Elche.

Em suma durante a segunda metade do século XIX, esta pintura do Murillo este exposta no Louvre e algum fabricante de artigos religiosos de Paris viu-a, encantou-se com ela e teve a ideia de a reproduzir em espuma de mar e vende-la como uma imaculada qualquer venerada nalgum santuário francês. Enfim, esta é a minha teoria, que não sei se será exactamente verdadeira.

O material tem uma cor amarelada, que em alguns ângulos de luz parece quase marfim 

Agora faltava apenas descobrir uma moldura oval e alguma casa que ainda faça vidros abaulados, para devolver a esta pequena escultura o seu aspecto original.

Alguns links consultados: