|
As salas contíguas do corpo nobre do solar dos Montalvões organizam-se segundo a compartimentação do Leal Conselheiro de D. Duarte |
O Solar dos Montalvões de Outeiro Seco é o resultado de várias construções, erguidas ao longo de pelo menos 2 centenas de anos e feitas à medida das necessidades de crescimento da família, do seu desafogo económico e da sua própria fé.
No meu
post de 25 de Novembro de 2010, consegui com a ajuda do Humberto, esboçar uma primeira cronologia das várias fases de construção do solar, baseando-me em dados fiáveis, o processo de edificação da capela existente do arquivo Distrital de Braga e as inscrições epigráficas.
Assim, antes de 1738, no tempo o capitão de cavalos José Alvares Ferreira, os corpos Norte, Nascente e Sul já estariam construídos. Antes de 1761, já estava concluída a fachada nobre a Poente. A capela é erguida entre 1762 e 1784. Pelo meio, em 1782, construiu-se a escada do pátio interior. Finalmente, a construção do último corpo, que liga a capela à cozinha, é feita depois de 1784. Este último núcleo fecha o pátio.
Ao longo deste esforço construtivo de várias gerações de Ferreiras e depois Ferreiras Montalvões, dos quais eu descendo, nota-se que foi seguido o velho modelo já milenar de erguer a casa em torno de um pátio central, tal como os romanos e os árabes o faziam. No fundo, as pessoas estavam a repetir velhas fórmulas arquitecturais, que passavam de geração em geração, sem que os mestres de obra que as aplicavam os proprietários que as ordenavam soubessem de onde provinha este modelo antiquíssimo da casa feita em torno de um pátio.
|
Um aspecto do tecto da divisão que veio a ser a biblioteca e que correspondia na compartimentação do Leal conselheiro, à Sala ou Aula |
Respeitou-se a tendência da casa fechada em torno de si própria, autónoma, quer economicamente, quer até em termos legislativos, pois no portão, que dava acesso ao pátio, existia uma aldraba e antigamente quem pegasse nela, estava de imediato ao abrigo da justiça real. O solar e a propriedade constituiriam provavelmente aquilo que se designava no Antigo regime por Honra, isto é, um domínio em que as funções administrativas, judiciais e financeiras estavam nas mãos de um Senhor.
Relativamente à forma como as divisões se organizavam, a história é mais complicada de reconstituir. Eu só conheci por dentro a casa no século XX, com a divisão tradicional da nossa época, um espaço de sala de jantar, a sala de visitas, a biblioteca, a cozinha, quartos, quartos para os criados, lojas. Etc.
|
Um pormenor dos tectos em estuque, da Sala de visitas, que correspondia à antecâmara do Leal Conselheiro |
Mas, sei através de manuais de história, que esta organização dos espaços foi bem diferente no passado. A sala de jantar por exemplo é uma divisão recente. Num passado mais remoto, qualquer divisão servia para servir refeições, bastava para isso armar um estrado de madeira. Até meados do século XIX, em muitas das casas portuguesas nobres sobrevivia a sala do estrado, onde as senhoras e as criadas de dentro se sentavam no chão, a costurar, a bordar, a ler ou a conversar.
Ora numa casa construída em várias fases ao longo de presumivelmente dois séculos, as funções das divisões foram mudando necessariamente ao longo dos tempos. No entanto, a divisão interior da casa, seguiu fórmulas construtivas muito comuns na arquitectura portuguesa senhorial. Descobri isso por mero acaso, quando conheci outra casa na região, o
Solar de Vilartão, do nosso amigo Joaquim Malvar e ao visitar os aposentos nobres da casa, uma sucessão de salas contiguas, encontrei ali qualquer coisa de familiar que me recordou o andar nobre do Solar dos Montalvões e a velha casa, também em Outeiro Seco, de
Miguel Álvares Ferreira Montalvão, o meu tio trisavó, que morreu louco.
|
O fogão da Sala de visitas |
O Joaquim Malvar teve a gentileza de me explicar que as 4 salas contiguas, comunicando entre si sem corredor faziam parte de um modelo antiquíssimo e fez até o favor de me indicar obra onde colheu essa informação, que esta semana comprei na feira do livro. Trata-se de Cozinhas, espaço e arquitectura, de Ana Marques Pereira, editada em lisboa, pela Inapa, em 2006. Procurando traçar a história das cozinhas nas casas senhoriais portuguesas, a autora acaba por dar informações úteis sobre a divisão geral dos espaços.
|
Planta do corpo nobre do Solar dos Montalvões. A compartimentação corresponde á do Leal Conselheiro, de D. Duarte |
O modelo de compartimentação de uma residência senhorial foi descrito pela primeira vez por D. Duarte no Leal conselheiro. Existiriam 4 zonas que se iam tornado progressivamente mais intimas:
- Primeiro surgia a sala ou aula, destinada a receber as pessoas e fora e que se situava mais próxima da entrada;
- Seguia-se a câmara de paramentos, ou antecâmara, destinada aos moradores e alguns nobres de maior intimidade;
- Em terceiro, estavam as zonas de maior intimidade, a câmara de dormir, em que os maiores e os mais chegados da casa deveriam ter entrada;
- Por último, encontrava-se a transcâmara ou zona de vestir e do oratório, onde os moradores se retiravam para ler rezar ou meditar.
|
A sala do Museu, a câmara do morgado, que comunicava com a transcâmara, a capela, espaço de oração |
Este esquema em quatro salas corresponde como uma luva aos salões nobre do solar dos Montalvões, conforme se pode ver pela imagem da planta. A primeira sala, onde se situou mais tarde a biblioteca, era a sala ou aula; a sala de visitas seria a antecâmara, o museu correspondia ao quarto do morgado e finalmente a capela correspondia obviamente a transcâmara.
Não creio que os Álvares Ferreira e os Ferreira Montalvão conhecessem o Leal Conselheiro de D. Duarte, nem seria certamente conhecido do mestre-de-obras que contrataram, mas o modelo estava presente nas suas mentes, ainda que de forma inconsciente, tal como hoje em dia sabemos, que para escrever um texto, temos que obedecer ao modelo, introdução, desenvolvimento e conclusão, ainda que já não saibamos quem pela primeira vez enunciou este esquema teórico.
|
A Câmara comunicava com o coro da Capela. |
As fotografias são do Manel.