sexta-feira, 11 de maio de 2012

A Anunciação


As imagens dos santos católicos atraíram-me primeiro que as da Virgem Maria. Talvez nos santos eu tivesse encontrado de uma forma mais evidente os resquícios de um antigo paganismo, de um ancestral panteão de deuses, baptizados pelo cristianismo. Mas, com o tempo comecei a coleccionar imagens da virgem, Senhoras da Luz, Senhoras do Carmo, da Piedade e por aí fora.
Há uma semana comprei num antiquário em Borba uma Anunciação. Trata-se de uma estampa muito pequena, colorida e com uma legenda que julgo ser em língua italiana, com os dizeres S. S. Nunziata. A vendedora garantiu-me que o suporte é pergaminho, mas apesar de a folha ser muito dura, confesso que me lembro de ver poucos livros do séc. XVII ou XVIII com as páginas todas em pergaminho. Como toda a gente sabe, muita destas estampas são arrancadas de livros. Mas, fica a dúvida se esta anunciação será em papel ou pergaminho. Em todo o caso, a estampa é seguramente do século XVIII.

Um dos temas mais frequentes em toda a pintura cristã, a Anunciação representa o momento em que o Anjo Gabriel anuncia a Maria que terá um filho de Deus, a encarnação, e em que esta responde Fiat, isto é, faça-se, ou melhor faça-se a encarnação do corpo de deus no meu ventre. É umas das poucas frases que Maria diz longo de todo o Novo Testamento. Aliás as suas aparições ao longo das narrativas dos evangelhos são muito escassas. Também ninguém sabe qual foi o seu rosto, apesar de algumas igrejas afirmarem que possuem retratos pintados por S. Lucas, mas essas obras, submetidas a exames contemporâneos revelaram sempre serem muitíssimo posteriores ao período em que a virgem Maria terá vivido.

Em suma, Maria quase não falou no Novo Testamento, é referida escassas vezes nos Evangelhos e ninguém sabe se era loira, morena ou ruiva. E no entanto, é a figura mais representada em toda a arte ocidental, domina quase por completo o culto católico, a tal ponto, que Louis Réau, se interroga se o Cristianismo não de deveria designar com mais propriedade por Marianismo.

Enfim, não vou explicar num blog, em 4 linhas como tudo isto foi possível e como este fenómeno se processou em vinte séculos de existência do Cristianismo, mas Louis Reaud, na Iconographie de l’art chrétien, acredita que a Virgem Maria herdou as funções de todas as deusas destronadas pela nova religião monoteísta. Substituiu a egípcia Isis, a síria Astarté e ainda Artemísia, Deméter e Atena e muitas outras deusas mães de culto local cujo nome se perdeu na noite dos tempos.

8 comentários:

  1. Sabe, Luis porque é que eu acho que estas imagens de Maria, assim em gravura, não nos atraem tanto? É que se referem a episódios bíblicos por demais conhecidos e não nos suscitam curiosidade. Já as senhoras disto e daquilo têm mais interesse porque se referem a locais de devoção e têm um certo enquadramento histórico menos conhecido.
    Com os santos passa-se algo ainda mais interessante: aparecem nomes que ignorávamos, às vezes com atributos estranhos que apontam para a sua história de vida, para uma lenda, e isso é muito mais desafiante e obriga à pesquisa... em que o Luís se tem revelado perito!
    De qualquer forma, acho esta sua Anunciação surpreendente como gravura do séc. XVIII, se a compararmos com os nossos registos de santos da mesma época. É que vê-se ali um movimento nas figuras que raramente encontramos nas portuguesas, quase sempre em posições muito rígidas.
    Sendo trabalho italiano não admira que encontremos aqui uma outra qualidade plástica.
    E se é em pergaminho, o que para mim também é novidade, aumenta-lhe o valor!
    Obrigada pela partilha.
    Beijos

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  2. Maria Andrade

    Sei de antemão que há temas menos populares que outros. Esta estampa que é mais pequena que uma mão tem por base um desenho que revela um pouco do brilho das obras de arte italinas.

    Há uns anos dediquei-me com alguma atenção à iconografia mariana e agora retomei as minhas leituras sobre o assunto e esta bela estampa foi um pretexto para este tema recorrente.

    Obrigado pela sua pachorra para ler estes "arrozados" todos lol

    Beijos

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  3. Ai, essa hipótese que tens de aceder ao Louis Réau quando queres ... fico cheio de inveja!
    Quanto ao movimento que as figuras apresentam, em contraste com o aparente hieratismo da composição dos registos produzidos por terras portuguesas, terá mais a ver com a liberdade que a arte italiana teria.
    Itália foi o berço dos movimentos artísticos deste período, com os papas a atuarem como motores iluminados para o desenvolvimento e promoção da obra de criadores que estavam na vanguarda da arte.
    Estas imagens pias deveriam seguir-lhe as pisadas, ainda que de longe, enquanto na Península Ibérica a arte estava arreigada a tradições e cultos antigos. Esta tradição mais hierática espalha-se por todo o século XVIII e XIX, e pouco se altera, pois nem o público alvo, nem os pastores da igreja o pretendiam ... demasiada modernidade faz distrair o crente do mais importante, que é a fé e os imutáveis dogmas a que está associada, e, mais perigoso ainda, pode colocar ideias de maior liberdade na cabeça das "ovelhas".
    A gravura pode mesmo ser em pergaminho, pois a textura aponta para um material mais duro, mas, como não tenho por hábito manusear este material, vai-se lá saber ...
    A coloração faz dela uma gravura muito apelativa, e ao preço por que a compraste, foi quase dada
    Manel

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  4. A obra do Louis Réau é fantástica e aos poucos estou a recomeçar a sua consulta, um capítulo aqui outro acolá. É tão importante para se perceber a iconografia cristã que domina toda a arte europeia até ao final do Século XVIII.

    Talvez a perfeição desta estampa não seja muito vísivel aqui no blog, porque o original é muito pequeno e em menos de 10 x 5 cm o autor/ gravador realizou uma obra de qualidade, onde é evidente a mestria italiana.

    Os autores/ gravadores dos registos portugueses prendem-se mais a receitas. Julgo até que a sua arte revelou-se melhor nas cercaduras barrocas, que envolvem os santinhos, as virgens ou os Cristos.

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  5. Olá Luís,

    Estes tais registos são uma maravilha ! Já algum tempo que tento ter algumas peças destas, depois sempre surge uma certa dúvida: como expor ou conserva-los. Parece-me que emoldurados perdem beleza ! Tenho algumas peças que o papel esta mesmo tão fino, que vemos por ele. Pensei que seriam excelente para os registos (verónicas??), mas penso que algumas peças acabariam por ser coladas e não sei, estes (relicários ou registos ou verónicas) parecem que começam a ficar bonitos depois de terem 1 século e já os com veludos, cetins e florzinhas bem queimados da exposição à luz.
    Um abraço

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  6. Caríssimo José Oliveira

    Começava a achar que ninguém se encantava com esta Anunciação, quando apareceste tu e deixaste-me muito contente.

    Encaixilhar é complicado. Nem sempre se arranja uma moldura ou passe partout bonitos e que combinem com a natureza e o estilo da imagem. Compro muitas molduras velhas ns feiras de velharias que depois reaproveito, para emoldurar estes registos. Por vezes o resultado é estpendo, outras vezes acerto ao lado.

    Para esta usei uma moldura dourada, comprada por um ou dois euros, que retoquei com um dourado velho e usei uma folha de papel antigo como passepartout, onde colei a estampa com auxílio de duas tirinhas de fita cola, daquelas que colam de um lado e outro.

    Vou tentar tirar uma fotografia ao conjunto, até para se perceber como é pequena esta estampa.

    Abraços e obrigado pelo teu comentário

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    1. Olá Luís Boa noite,

      Muito Obrigado !

      Notei que colocastes a foto das Molduras. Realmente o efeito é muito bonito. Tenho várias molduras espalhadas pela casa a espera de serem recuperadas.

      É incrível como por vezes, não valorizamos o que temos. Até algum tempo, somente valoriza as estampas, onde a marca d'agua era muito pronunciada, num papel com uma gramagem pesada, e que estivesse imaculado, sem marcas de humidade / luz, (rsss...coisa de gente inexperiente.

      O seu blog realmente nos chama a atenção para detalhes que vamos deixando de lado no nosso dia a dia, raramente eu parava e pesquisava sobre os gravadores.

      Hoje já sou mais atencioso e cuidadoso, até apetece dizer:

      Ai os meus "ricos santinhos".

      Obrigado por esta generosa partilha de informação.

      Um grande Abraço

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  7. Caro José Oliveira

    Um antiga mancha de humidade, o papel amarelecido e uma moldura com falhas no dourado são marcas do tempo que emprestam uma poesia especial às peças. Como dizia a Yourcenar, "o tempo, esse grande escultor"

    um abraço e obrigado

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