sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Canivet com moldura bordada a prata e a ouro ou votos de boas festas


Como já aqui escrevi muitas vezes não sou muito dado a assinalar no blog comemorações, efemérides, celebrações e quadras festivas. Recordo-me sempre das redacções da antiga instrução primária com o tema imposto, onde tinha que puxar pela cabeça para escrever 20 linhas, afirmando que gostava muito do Natal, de receber prendas, comer rabanadas, do menino Jesus e sei lá que mais. Depois vinham sempre as reguadas e os insultos por causa dos erros de ortografia, porque naqueles inícios dos anos 70, em Portugal, nos finais da ditadura, acreditava-se piamente nas vantagens educativas dos castigos físicos, de modo que fiquei com um asco a escrever sobre estações do ano, quadras festivas e outras coisas do género.

No entanto, não consegui resistir mostrar aqui no blog um canivet ricamente emoldurado, com bordados a prata e ouro, que o meu amigo Manel adquiriu recentemente. Achei que todo esplendor do bordado a ouro era uma forma simpática de desejar as boas festas a todos os que por aqui passam.

Como já aqui expliquei anteriormente, canivet, é um termo francês que quer dizer canivete e que alude ao instrumento de trabalho, com que eram feitas as imagens dos santinhos, um estilete pontiagudo e aguçado, com o qual se picotava um pedaço de papel, pergaminho, velino ou tecido, de modo a formar o efeito de uma renda. A imagem do santinho era desenhada e aguarelada. Estes trabalhos normalmente datam dos século XVII ou XVIII e eram feitos por monjas, que os vendiam para fora, como forma de garantirem proventos extraordinários para os seus conventos. Nunca estão assinados e as informações que se encontram na internet sobre os canivets atribuem estes trabalhos a conventos situados em França, em Itália ou no mundo germânico, designação que abarcará certamente os Países Baixos. No entanto estes canivets aparecem bastante cá em Portugal e não sei se foram importados de França da Alemanha, Flandres ou Itália ou se foram obra das mãos das nossas freiras, em cujos conventos existiu também uma tradição de trabalhos preciosos de papel recortado, que persistiu até há bem pouco tempo. O que é certo é que os exemplares que encontrei nas terras lusitanas tem sempre a legenda em latim e nunca em português, como era vulgar nas estampas devotas impressas por cá, nesse mesmo período.

O canivet que hoje aqui apresento, é um bom exemplo, de que estas pequenas maravilhas da habilidade manual poderão não ser portuguesas. A legenda da imagem é S. Elisavetha. Claro, sei que é Elisavetha é Isabel, mas não consigo identificar a língua em que está escrita. Actualmente Elisavetha é uma forma do nome Isabel apenas usada na Bulgária e na Macedónia, o que me parece fora de cogitação. Inclino-me mais para que Elisavetha seja uma forma arcaica do alemão, flamengo ou francês para Elisabetha. Em todo o caso, esta ortografia não é portuguêsa certamente.
O canivet do Manel será feito em velino
Quanto à Santa Isabel em causa é outro problema. A figura representada é uma rainha, que dá esmola a um pobre e tanto poderá representar a nossa Rainha Santa, Isabel de Aragão, ou a sua tia-avó, que também foi rainha, Isabel da Hungria ou da Turíngia. A iconografia das duas é em tudo semelhante e ambas fizeram milagres com rosas. Ainda recentemente no Museu do Prado, rectificaram a identificação de um quadro de Zurbarán, que se acreditava ser a Santa Isabel da Hungria e afinal representa a nossa Rainha Santa. Enfim, uma das duas santas, será de certeza, até porque há rosas decorando o canivet.

No entanto, como a imagem do Canivet será talvez estrangeira é mais certo, que represente Santa Isabel da Hungria (1207–1231), que provavelmente nasceu em Brastislava e talvez com mais propriedade pudesse ser designada por Isabel da República Eslovaca, o que não ficava nada bem. Na verdade, a actual República Eslovaca esteve sempre na órbita do Reino da Hungria, até 1918, altura em que os eslovacos se juntaram aos checos, para formarem a Checoslováquia. Ainda hoje na Eslováquia, finalmente independente, vivem quase meio milhão de húngaros, que formam uma minoria organizada.

Se a Santa Isabel representada na imagem será a da Hungria, já o trabalho da moldura, uma estrutura montada sobre um cartão e revestida de seda, bordada a missangas de ouro e prata é mais caracteristicamente português, certamente um trabalho freirático.

Em suma, acerca deste canivet, com uma moldura luxuosamente bordada, sabe-se pouco. Talvez seja estrangeiro, representará a Rainha Santa ou mais provavelmente Santa Isabel da Hungria, mas o trabalho da moldura é mais reconhecidamente português. Apesar de todas essas incertezas é uma peça admirável, que serve como um belo cartão, desejando-vos a todos umas boas festas.
 
 
Alguns links:
 
 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Os pequenos livros de missa



Como toda a gente sabe o meu gosto pela arte sacra oferecem-me por vezes uma beatice qualquer, um crucifixo, uma estampa devota ou um pequeno missal, como este que vos apresento hoje, dado pela minha amiga e colega Fernanda Bento.

Estes missais luxuosamente encadernados a osso, marfim, madrepérola, marroquim, ou a baquelite eram objectos muito comuns ao longo do século XIX e mesmo no início do XX. Eram normalmente prendas que se ofereciam por ocasião de uma primeira comunhão ou de qualquer outro sacramento. A maioria dos exemplares que chegaram até nós foi impressa em Paris, que na altura era um centro editorial à escala mundial, onde se editavam todo o género de livros, desde os de arte, passando pelos literários e científicos, até aos piedosos e que eram vendidos nas quatro partes do mundo.


Hoje, estes livrinhos luxuosos perderam a sua utilidade e razão de ser, não só porque as pessoas estão cada vez mais descristianizadas, mas sobretudo porque no passado as missas decorriam em latim e estas obras traduziam para português o ritual da Missa.

Anuncio da Gazeta de Lisboa, no 250, Sábado, 22 de Outubro do ano 1814 a um missal coordenado pelo Prior de abrantes


Encontrei na Gazeta de Lisboa, um dos periódicos mais antigos portugueses, um anuncio datado de 1814, a um destes livros de missa, que tal como o meu exemplar também foi coordenado pelo Prior de Abrantes, onde se explica muito a sua função de tradução do ritual católico do latim para as chamadas línguas vulgares. Assim, no número 250, Sábado 22 de Outubro do ano 1814, anunciava-se na Gazeta de Lisboa que o Missal do Prior de Abrantes traz também em portuguez todas as orações comuns que o Sacerdote diz na Missa e todas as Epistolas, Evangelhos, Sequencias, e Prefacios de todas as missas do anno, mesmo para as solemnidades particulares da Igreja de Portugal em todos os bispados do Reino, e oragos das freguesias de Lisboa, Missas de defuntos, etc.
Pequeno Livro da missa e da confissão e outras devoções com edição feita sobre a do prior de Abrantes


Este livrinho, intitulado Pequeno Livro da missa e da confissão e outras devoções com edição feita sobre a do prior de Abrantes, impresso em Paris por Laplace, Sanchez, não apresenta qualquer data, como era vulgar nestes missais e não me perguntem porquê. Como bibliotecário, interrogo-me sempre irritado porque é que houve tantos editores que ao longo dos séculos não dataram os seus livros. Contudo fiz uma pesquisa no catálogo da Bibliotèque Nationale de France, pelo nome do editor e dos 306 resultados, que obtive, pude apurar que o Laplace, Sanchez esteve activo entre 1869 e 1895. Portanto posso presumir com alguma segurança que este pequeno livro de missa foi editado em Paris, entre 1869 e 1895.

Quanto ao Prior de Abrantes, não consegui descobrir nada sobre este Senhor, nem na Biblioteca Nacional de França nem na portuguesa. Pelo anúncio da Gazeta de Lisboa, de 1815, onde já se menciona a sua existência, deve ser sido uma personagem cuja vida deve ter decorrido muito antes dos anos em que foi editado meu livro. 

Ainda sobre este livros de missa, há a referir que as encadernações eram executadas por profissionais diferentes dos editores e impressores, os encadernadores e que as grandes tiragens destes livros de Missa desenvolveram imenso a arte da encadernação, colocando-a ao alcance de um largo grupo de pessoas, fora do meio bibliófilo.


Em suma este livro de missa com uma encadernação em baquelite, representando S. José e o Menino Jesus, impresso em Paris, entre 1869 e 1895 é o testemunho de uma época em que as missas decorriam em latim e havia a necessidade de publicar estes livrinhos com a tradução do ritual católico, para que os crentes pudessem acompanhar e compreender a missa.
 
Algumas informações sobre missais:

http://www.bibliothequedusaulchoir.org/French/catalogues/Labarre/Labarre_Communion.pdf

http://www.bibliothequedusaulchoir.org/French/catalogues/Labarre/Labarre_Missels.pdf