Hoje escrevo sobre um assunto ao qual pouca atenção tenho dado, pratas. Tenho em casa uma ou outra salva e ainda a terça parte de um faqueiro de 12 pessoas, coisas que a minha avó recebeu por ocasião do seu casamento em 1930. Há 29 anos, os meus irmãos e eu fizemos o disparate de dividir esse faqueiro pelos três, de modo que, cada um de nós só pode oferecer um jantar para 4 pessoas. Hoje sei que nunca se devem estragar conjuntos, pois peças avulsas perdem valor monetário e até o interesse artístico. Mas como dizia um velho professor meu da faculdade, a experiência, quando se a têm, já não serve para nada.
Como passo a vida restolhar trastes nas feiras de velharias, decidi completar esse faqueiro, mas com peças diferentes e há uns tempos trouxe para casa três facas de carne e ainda quatro talheres de sobremesa, uma colher e três garfos. Todos eles tão pretos, oxidados e sujos, que mais pareciam mais ferro que outra coisa. Mas gostei da sua decoração neoclássica muito elegante e apresentavam a chamada marca da bicha, que já tinha ouvido dizer, distinguir a prata mais antiga.
A chamada marca da bicha |
O primeiro trabalho foi limpar a prata e tentar retirar a ferrugem das lâminas, embora não tenha conseguido realizar esta última tarefa com êxito. Depois comecei a tentar ler na net alguma coisa sobre pratas antigas portuguesas e num artigo de Gonçalo de Vasconcelos e Sousa, aprendi que a referida bicha não é nenhuma marca que identifique um ourives ou tão pouco um ensaiador. A bicha é o vestígio do método, que ensaiador tinha para examinar a qualidade e autenticidade da prata, em que retirava com um buril um fiozinho do metal deixando uma marca em forma de ziguezague.
Em todo o caso, esta técnica de verificação da qualidade da prata terminou na década de 80 do século XIX, com a criação das contrastarias e portanto estes talheres são anteriores a 1882.
Antes da década de 80 do século XIX, os ensaiadores tinham uma ligação municipal e as marcas que usavam nas peças para certificar a sua qualidade consistiam na primeira letra da cidade onde estavam, que normalmente eram centros de trabalho da prata ou do ouro, isto é, Lisboa, o Porto, Braga, Guimarães, mas também Coimbra ou Évora. Ao mesmo tempo, o ourives assinava também os talheres, salvas ou bules de chá com as iniciais do seu nome. Agarrei e numa lupa e num dicionário especializado, o Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras: século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos e cheio de boa vontade e optimismo lancei-me ao trabalho de decifrar as minúsculas e misteriosas sinalefas, incisas nestes talheres.
Um p maiúsculo encimado por uma coroa, marca que foi usada pelo ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz entre 1810 e 1839 |
Mas ao optimismo inicial sucedeu o desespero, os sinaizinhos são minúsculos, desgastados pelo tempo e ao fim de uns quantos dias de trabalho consegui apenas identificar a marca de uma das facas, um p maiúsculo encimado por uma coroa, que foi usada pelo ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz entre 1810 e 1839 e num ou outro talher um g maiúsculo, identificador dos ensaiadores de Guimarães. Em todo o caso, já foi suficiente para perceber, que estes talheres foram produzidos no primeiro quartel do século XIX no Porto e em Guimarães.
Como esbarrei na leitura das marcas, a Celina Bastos recomendou-me a leitura das obras de Manuela Alcântara Santos e com efeito, depois de consultar o livro Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX dessa autora e comecei a deslindar aos pouco os segredos destas peças.
Imagem retirada de Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX |
A decoração destes talheres consiste numa uma oval enquadrada por uma série de caneluras incisas, que crescem e decrescem simetricamente, com uma folha a marcar o eixo central do motivo é muito característica dos ourives do Porto e Guimarães. Na primeira cidade foi usada num intervalo entre 1792 e 1810 e na segunda, numa cronologia menos precisa, mas anterior a 1820. Também nesta época, um faqueiro era apenas constituído por facas, colheres e garfos de mesa. As colheres de chá já eram consideradas à parte. Os garfos e as colheres de sopa eram mais pequenos, que os de hoje dia e afinal, o que pensava serem talheres de sobremesa são realmente garfos de mesa e uma colher de sopa. Os faqueiros muito completos e complicados, com colher para compota, colheres de café, sobremesa, espátula para peixe ou bolo, concha para espalhar açúcar em pó, garfos de bolo e sabe Deus que mais, só fizeram a sua aparição já mais nos finais do século XIX.
Imagem retirada de Mestres Ourives de Guimarães : Séculos XVIII e XIX = Masters Silversmiths of Guimarães : 18th and 19th centuries / Manuela de Alcântara Santos |
Ao contrário do Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras, que contem as marcas desenhadas, as obras de Manuela Alcântara Santos apresentam a vantagem de reproduzir em fotografias muito ampliadas as referidas marcas a partir daí consegui as descodificar as sinalefas dos meus talheres e encontra-las no Inventário de Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. Passarei então enumerar as marcas, com os números do inventário dos acima referidos autores
Faca A
Apresenta um g maiúsculo coroado. Marca nº G-17.a do ensaiador em Guimarães, José António Fernandes, ca. 1820-1834.
Iniciais DF, marca nº G.47-A de ourives do Ourives de Guimarães não identificado, conhecida com as marcas de ensaiador F. 17 e G17.a (1820-1834).
Faca B
Apresenta a letra P coroada, que parece ser a marca P. 28.0 ou P. 28.0 do ensaiador do Porto, Alexandre Pinto da Cruz, usada entre 1810-1829.
Iniciais APA, marca P.153, de ourives do Porto atribuível a António Pinto de Almeida citado entre 1783-1865. Conhecidas com as marcas de ensaiador P25, P-28.
Faca C
A marca é sem dúvida um g de maiúsculo, de Guimarães, mas está tão desgastada, que não consigo perceber se tem coroa.
Apresentas as siglas IR., marca G.81.0 de ourives não identificado de Guimarães, associada à marca de ensaiador G.16.0a
A colher e garfos, apresentam tal como a última faca, sigla IR, a marca de ourives G.81.0 não identificado de Guimarães. Contudo, tenho dificuldade em identificar a marca do ensaiador. É certamente, um G, encimado por uma coroa, que tanto poderá ser o G.15 ou G.16, isto é, do ensaiador Manuel Joaquim de Freitas, usada entre1792-1801 ou de José Baptista dos Reis, em uso entre 1801-1820.
Em suma, os três garfos, a colher e uma das facas terão saído da mesma oficina de ourives em Guimarães e autenticadas pelo mesmo ensaiador, a segunda faca de um ourives e de um ensaiador diferentes, embora também nessa cidade e finalmente, a última foi feita no Porto. Aliás, olhando para uma fotografia das três facas, percebemos que são ligeiramente diferentes, a da marca IR tem a oval rodeada por um único filete, a da marca DF, três filetes e a da marca do Porto, de António Pinto de Almeida, apresenta apenas dois e não tem a folhinha.
As três facas são diferentes entre si, quer nas lâminas, quer nos filetes que decoram o motivo oval |
Estas diferenças todas no mesmo conjunto têm a ver com razões muito práticas. A prata era cara e as famílias não compravam os talheres de uma única vez, num ano adquiriam um conjunto de seis de cada, passados cinco ou seis anos, a família crescia e encomendavam-se mais uns quantos, depois haveria sempre um ou outro talher roubado, que era preciso substituir e pelo meio da história, morria alguém e faziam-se partilhas e era necessário comprar mais. Por outro lado, neste início do século XIX, nas vilas e cidades do interior, os talheres eram vendidos nas feiras, frequentadas pelos ourives de Guimarães ou do Porto e desde que fossem iguais, numa vez comprava-se os talheres ao feirante vimaranense e noutra ocasião ao ourives da Invicta.
Em suma, estes talheres foram fabricados em Guimarães e um deles no Porto, no primeiro quartel do século XIX e serão a sobras de um conjunto maior, que em tempos, brilhou na mesa de alguma família fidalga ou da burguesia abastada. Em minha casa, dei-lhes uma nova vida, colocando-os a uso e sobretudo obrigaram-me a estudar um pouco as pratas portuguesas.
Bibliografia:
Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018
Talheres de prata de Guimarães : séculos XVIII e XIX / Manuela de Alcântara Santos ; apresent. Gonçalo de Vasconcelos e Sousa. - 1a ed. - Porto : Universidade Católica Editora, 2012.
Mestres Ourives de Guimarães : Séculos XVIII e XIX = Masters Silversmiths of Guimarães : 18th and 19th centuries / Manuela de Alcântara Santos. - Porto : Campo das Letras, 2007
Ourivesaria portuguesa: breves apontamentos históricos sobre os ofícios, marcas e matérias relacionadas, essencialmente até à criação das contrastarias (1882) / Gonçalo de Vasconcelos e Sousa.