O caderninho onde o meu trisavô escreveu umas notas sobre o início da sua vida. |
O meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935) deixou um caderninho de notas onde pretendia talvez escrever os seus dados biográficos, mas infelizmente não passou da primeira página, ficando-se pela infância. Este documento não está datado, embora imagine que o tenha escrito talvez já velhice, naquele momento da vida em que os homens sentem necessidade de deixar por escrito aos seus descendentes quem foram e donde vieram.
Liberal Sampaio começa por dizer onde e quando nasceu, a 29 de Julho de 1846, do matrimónio de António Rodrigues Sampaio e Maria Gonçalves Liberal, naturais aquele de Soutelo de Chaves e esta do Antigo de Arcos, freguesia de Sarraquinhos, da comarca de Montalegre. Mas neste documento, o meu trisavô não perde tempo com grandes antecedentes familiares e o que aqui salienta é a sua educação. Aos sete anos passou a frequentar a aula nocturna de um curioso, que ao completar nove anos, me deu preparado para ir a Vilar de Perdizes habilitar-me na instrução primária com o Professor régio Bento Pires Esteves, o melhor e quase único do Concelho.
Embora não haja estatísticas sistemáticas para esta época, calcula-se que em meados do século XIX, a taxa de analfabetismo andava pelos 80 por cento do total da população portuguesa, variando consoante as regiões, urbanas ou rurais e as palavras do meu antepassado são um testemunho eloquente de que nas distantes e isoladas serras do Barroso esta percentagem seria mais alta. Aprendeu as primeiras letras a frequentar a aula nocturna de um curioso e aos nove anos estava a fazer a instrução primária com o Professor Bento Pires Esteves, quase único do Concelho.
Para completar a sua instrução básica, o meu antepassado teve que se deslocar aos nove anos da sua aldeia natal para Vilar de Perdizes. Não sei onde ficou alojado, talvez em casa de parentes, deste período apenas encontrei uma referência ao seu mestre, Bento Pires Esteves, que foi padre, pois no arquivo Distrital de Braga, existe um processo, datado de 1831, a inquirição de genere de Bento Pires Esteves (1), filho de Domingos Pires Esteves e de Genebra Vaz, natural de Vilar de Perdizes, actual Concelho de Montalegre.
Depois disto, sei o meu trisavô foi para o Seminário de Braga, mas também desconheço o ano em que aqui entrou. Presumo que tenha sido ordenado padre, com 18 ou 20 anos, altura em decorre o processo de inquirição de genere, 1864-1866, que o meu amigo Humberto Ferreira me facultou uma copia do original do Arquivo Distrital de Braga (2).
A Inquirição de genere era um processo da Igreja, que consistia num inquérito na paróquia do candidato a padre, para averiguar da sua limpeza de sangue, saber se cumpria os preceitos da Igreja ou se não tinha cometido crimes de lesa-majestade divina e humana.
Este documento permitiu-me conhecer um pouco o meio social dos pais de Liberal Sampaio, que foram nomeados como lavradores. Nesta época, os pobres eram jornaleiros, os ricos, proprietários e os lavradores estavam no meio da escala social. Igualmente, através destes dados, foi possível recuar a genealogia desse lado familiar até aos meus sextos avôs.
A inquirição de génere era ainda composta por uma parte descritiva do património do jovem. Era suposto que um padre tivesse meios para se sustentar, sem depender de esmolas. Na prática, os pais de Liberal Sampaio fizeram uma escritura doando ao filho um conjunto de terrenos e seus rendimentos para garantir o seu sustento futuro. Curiosamente o tabelião que fez esta escritura, foi Paulino Antunes Guerreiro, que virá ser um amigo próximo do meu trisavô de que já apresentei aqui o retrato carte-de-visite.
Paulino Antunes Guerreiro lavrou a escritura |
Em suma, Liberal Sampaio concluiu o seminário e foi ordenado padre em 1866, com vinte anos. Segundo as noticias, que apareceram nos jornais flavienses, já depois da sua morte foi um aluno brilhante no seminário, mas não tenho forma como comprovar essas elevadas classificações, pois os arquivos da Igreja não estão disponíveis. Na obra História abreviada do Seminário Conciliar de Braga e das Escolas Eclesiásticas precedentes : Séc. VI-XX / Mons. Cónego José Augusto Ferreira. - Braga : Mitra Bracarense, 1937, o meu antepassado é mencionado no capítulo da galeria dos antigos alunos, p. 476, nos homens que se distinguiram pelas suas letras.
Entre 1866 e 1873, entre os 20 e os 27 anos não sei nada sobre Liberal Sampaio. Presumo que fosse pároco, certamente no Norte, algures no distrito de Vila Real, mas nunca entrei nenhuma menção ao que fez nesse período.
Em 18 de Maio de 1873, Liberal Sampaio lavrou o seu primeiro assento de baptismo em Outeiro Seco e a partir daí, fixou-se naquela aldeia do Concelho de Chaves, a qual ligará os seus destinos para sempre. Por volta dessa altura começou a sua carreira jornalística, colaborando no periódico, a Palavra, jornal religioso, com sede no Porto.
Liberal Sampaio na década de 70 do século XIX |
É também nesse ano de 1873, em 23 de Setembro, por alvará régio do Rei de D. Luís, mercê das suas habilitações oratórias, adquiridas com o estudo aturado de ciência e letras eclesiásticas, Liberal Sampaio foi nomeado pregador da Capela Real (3). Por essa ocasião a Rainha D. Maria Pia ofereceu ao meu antepassado um anel de ouro, com uma grande pedra preciosa azul, que a minha avó mostrava com muito orgulho aos netos, quando nos começamos a interessar por história. Ultimamente tenho pensado nessa mercê e na oferta do anel e creio que é muito plausível acreditar que os reis, ou pelo menos a D. Maria Pia terão assistido a uma das suas prédicas, de outra forma não o teriam comtemplado com essas honrarias. Mas quando e em que circunstâncias? O mais provável seria que numa visita ao Norte, ao Porto, Braga, Vila Real, Vidago, Chaves ou Pedras Salgadas por volta de 1872 ou mesmo em 1873 o casal real tivesse ouvido impressionado um dos seus sermões, mas não encontrei registo de nenhuma visita real ao Norte por esses anos. A oferta do anel combina com o que se conta da personalidade generosa de D. Maria Pia, que era mãos largas com quem gostava. Uma antiga conservadora do Palácio Nacional da Ajuda contou-me que certo dia apareceu-lhe um Senhor mostrando-lhes uma pulseira de ouro dada pela referida Rainha ao seu avô. Este último era um adido de D. Maria Pia e um dia, esta, estranhando a sua ausência do serviço por alguns dias, interrogou-o sobre o motivo, ao que aquele lhe disse respondeu, que se tinha casado. Então, a Rainha tirou a pulseira que tinha na mão e deu-a como prenda de casamento, para a jovem esposa usa-la.
Em suma, em 1873, Liberal Sampaio já é um pregador famoso, que deveria impressionar os fiéis pela sua cultura, pela voz poderosa e pelas suas considerações morais e durante muitos anos fará dessa actividade um ganha-pão sendo chamado um pouco para todo lado, para dizer sermões nas festas religiosas.
Em 1874, Liberal Sampaio aproximou-se da família Montalvão. Numa das suas cartas a Maria do Espírito do Santo, referiu que assistiu a mãe desta na sua morte e com efeito é ele quem lavra o assento de óbito de Emília Morais Sarmento em 10 de Abril desse ano. Dois anos depois, já escrevia cartas afectuosas e cheias de conselhos à minha trisavó, mas sempre tratando-a por senhora. O resto da história já aqui a contei várias vezes. Dessa relação nasceram dois filhos, o José Maria, meu bisavô, 1878 e o João Maria, em 1884,que morreu ainda bebé.
Maria do Espírito do Santo Ferreira Montalvão e os dois filhos que teve de Liberal Sampaio. |
A partir desta data do nascimento do meu bisavô, em 19 de Maio de 1878, as coisas complicam-se novamente e perco o novamente o rasto de Liberal Sampaio enquanto sacerdote. Deixou de assinar os registos paroquiais, embora sejam lavrados com a sua letra e em 1879 passam a ser escritos e assinados pelo encomendado, António Mendes Dias. Embora na altura não fosse nada de especial um padre ter um bastardozinho, creio que o facto de ter feito um filho a uma fidalga de uma família muito conhecida deve criado bastante escândalo e o meu antepassado parece ter sido interditado de assinar e lavrar os registos paroquiais. Talvez tenha tido ordens suspensas.
De Maio de 1878 ao Outono de 1886, ano em partiu para Coimbra para estudar Direito e Teologia tenho no espólio três cartas dirigidas a minha bisavô datadas entre Agosto e Setembro de 1881 e escritas de Vila Pouca de Aguiar. A 11 de Novembro de 1884 nasce o segundo filho da sua relação com Maria do Espírito Santo, o João que viria a falecer no dia 25 de Setembro de 1887
Contudo do ponto de vista intelectual, neste período entre o nascimento do primeiro filho, que talvez tenha resultado na sua suspensão temporária como pároco e a ida para a Universidade de Coimbra, Liberal Sampaio esteve muito activo e publicou 42 artigos sobre política, religião e história na imprensa periódica, nomeadamente na Palavra, na Aurora do Tâmega e no Comércio de Vila Real.
Dois textos publicados (4 e 5) após a sua morte referem que antes de partir para Coimbra, Liberal Sampaio formou uma escola de em Outeiro Seco, onde ministrava latim, português, história e filosofia. A minha avô Mimi num texto publicado nos Jogos Florais de Montalegre (6) precisou, que esse externato funcionou entre 1878 e 1886 e indica nomes de alguns dos seus discípulos, como João Lopes Carneiro de Moura e Filipe Barros de Moura, Videira de Melo, o futuro Coronel Agostinho Pires de Morais, de Sanjurge e ainda João Gonçalves Liberal e Bento Gonçalves Liberal, sobrinhos do meu antepassado Já pesquisei em vários arquivos, nomeadamente na Torre do Tombo, no Distrital de Vila Real, no do Ministério da Educação, bem como no Diário do Governo On-line e nunca encontrei referência a esta escola ou colégio. Talvez não tivesse uma existência oficial e funcionasse junto da paróquia e os seus arquivos ainda por lá andem.
Esta escola, que formou em Outeiro Seco ajuda a esboçar o seu perfil. O menino, que aprendeu as primeiras letras com um curioso na aldeia perdida de Antigo de Arcos, freguesia de Sarraquinhos, tentava agora na aldeia de Outeiro Seco proporcionar às crianças e jovens um acesso mais fácil à instrução, partilhando a sua sólida cultura. Em todo o caso, é curioso observar que esta escola começou a funcional depois de Liberal Sampaio ter deixado de assinar os registos paroquiais, em 1878.
No Outono, de 1886, com 40 anos de idade o meu trisavô partiu para Coimbra matriculando-se simultaneamente em Direito e Teologia e nessa época a viagem entre Chaves e aquela cidade universitária era ainda uma aventura, com uma parte significativa ao dorso de um cavalo ou dentro de uma diligência. Contudo, Liberal Sampaio não foi sozinho. Levou o filho consigo e o pequeno José Maria, meu bisavô, fez toda a sua instrução, desde a elementar até à licenciatura naquela cidade. O meu antepassado quis proporcionar ao filho toda a educação a que teve um difícil acesso na infância e com efeito em Coimbra, estavam os melhores colégios, os mais prestigiados professores e a única Universidade do País. Apesar do José Maria ser um filho natural, que tratava o pai por padrinho, o meu trisavô teve-o sempre consigo, primeiro numa casa da Rua do Aguiar, 72 e depois na Travessa da Rua do Norte, nº 76 e desse período há uma extensa correspondência com a minha trisavó, a Maria do Espírito Santo, sobre os progressos ou desaires escolares do pequeno, as suas doenças, a roupa que lhe fazia falta, umas peúgas, uns sapatos ou ainda das suas gracinhas. São cartas deliciosas, Liberal Sampaio tinha uma caligrafia excelente, escrevia muito bem, ao correr da pena e através delas pode-se concluir que foi um pai muito presente.
Entre 1886 e 1891, o período sua licenciatura, continuou a colaborar na imprensa, na Ordem, a Palavra, Aurora do Tâmega e Concelho de Chaves escrevendo um total de 21 artigos. Apesar do tempo dedicado ao estudo, manteve a sua actividade como pregador, que juntamente com os rendimentos das suas terras era o seu principal ganha-pão. Aqui em Coimbra, além das terras do Norte, onde sempre era convidado paras suas prédicas, pregava também os seus sermões na zona centro e ainda dizia missa no Solar dos Lemos.
Carta de Liberal Sampaio ao pai. 18 de Julho de 1891. |
Em Julho de 1891 terminou a licenciatura nos dois cursos e numa carta à dirigida ao seu pai, de 18 de Julho de 1891 escreveu o seguinte. Fiz hoje, sábado, acto de Direito, em que tudo correu bem. Estou portanto, graças a Deus e Nossa Senhora, que tanto me tem protegido, formado em Teologia e Direito, dois títulos de nobreza e habilitação, que poucos alcançam e ninguém em tão pouco tempo como eu.
Filho de lavradores, Liberal Sampaio teve a noção bem precisa do caminho, que percorreu desde as aulas nocturnas dadas por um curioso em Antigo de Arcos, Sarraquinhos, até obter dois títulos de nobreza e habilitação na única Universidade do País. É interessante, que na mesma data, também escreveu à minha trisavó, anunciando a sua dupla licenciatura, mas o texto é mais lacónico. Talvez a Maria do Espírito Santo Montalvão, uma fidalga nascida em berço de ouro não entendesse tao bem como o pai de Liberal, esta ascensão cultural e social.
Este texto é uma tentativa de sistematização do que conheço do meu trisavô, entre 1849 e 1891, mas à medida que o ia escrevendo fui-me apercebendo, que é mais uma lista de lacunas, de falhas, que tenho que trabalhar e preencher para melhor entender este antepassado, cuja progressão no plano educacional e cultural foi notável numa época, em que a taxa elevada de analfabetismo condenava logo na infância veleidades de mobilidade social da maioria das pessoas.
Liberal Sampaio no momento da sua licenciatura |
Alguma bibliografia e fontes consultadas:
(1) Inquirição de genere de Bento Pires Esteves
PT/UM-ADB/DIO/MAB/006/32101
(2) Inquirição de genere de Jose Rodrigues Liberal Sampaio
PT/UM-ADB/DIO/MAB/006/04766
(3) José Rodrigues Liberal Sampaio
Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Luís I, liv. 24, f. 208v
PT/TT/RGM/J/0024/190096
(4)Dr. Liberal Sampaio,
in
Comércio de Chaves, , 28 de Novembro de 1935
( 5)Insignes varões flavienses. Dr. José Rodrigues Liberal Sampaio
In
Voz de Chaves, 26 de Fevereiro de 1961
(6) Dr. Padre José RodriguesLiberal Sampaio / Maria do Espírito Santo Ferreira Alves Montalvão Cunha
in
I Jogos florais de Montalegre. - Montalegre: Câmara Municipal de Montalegre, 1981. - 47-53 p-
História abreviada do Seminário Conciliar de Braga e das Escolas Eclesiásticas precedentes : Séc. VI-XX / Mons. Cónego José Augusto Ferreira. - Braga : Mitra Bracarense, 1937