segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Árvore da vida: um prato em faiança portuguesa

Já há alguns anos que tenho este grande prato de faiança comigo, com cerca 35 cm. de diâmetro, que sempre me intrigou pela sua decoração, representando uma espécie de arbusto ou árvore em flor, de uma forma muito simplificada, mas ao mesmo tempo muito conseguida do ponto de vista decorativo. Esta tendência que se nota neste prato para a abstracção de um motivo da natureza, fez-me recordar desde logo a arte islâmica. Aliás, sempre o achei que tinha um certo ar da cerâmica de Iznik.   
 
Azulejos de Iznik da Fundação Calouste Gulbenkian
Contudo é um prato de típico da cerâmica portuguesa, com uma faiança sem grande qualidade, provavelmente do século XIX e talvez fabricado região do Porto, pois foi adquirido no Norte. No reverso não apresenta marca nenhuma e apresenta os típicos gatos destes objectos que já tiveram muito uso. 


 
 Mas a decoração continuava a intrigar-me. Recordava-me uma representação gráfica que um dia tinha visto num desses programas da BBC sobre a evolução das formas de vida na terra, em que todo começa na água com seres de uma só célula, que dão origem a outros seres, que passam para a terra, representados por ramos crescendo em direcção a todos lados. Uns ramos morrem, outros continuam, outros ainda bifurcam-se, constituindo assim um emaranhado, que representa as espécies extintas e aquelas que continuaram e deram origem a novos seres e novos animais, plantas ou hominídeos. Mas, claro, nunca levei os sentimentos, que este prato me despertou muito a sério. A nossa imaginação não tem limites e a realidade não é aquilo que nos desejaríamos que fosse.  
Colcha com bordado de Castelo Branco. do Museu Nacional de Arte Antiga, inv.3465 tec
Contudo há uns tempos, passou-me pela mão o catálogo Colchas de Castelo Branco : Percursos por terra e mar - [Castelo Branco] : IMC/Museu de Francisco Tavares Proença Junior : ADRACES-Associação para o Desenvolvimento da Raia Centro-Sul, 2008 e ao folheá-lo encontrei uma colcha do Museu Nacional de Arte Antiga, representando uma romãzeira, que me lembrou, não sei porquê, o meu prato. Fui ler a entrada descritiva e descobri, que aquela colcha representa a árvore da vida, um símbolo muito antigo, comum a várias religiões, inclusive ao Cristianismo. Porque as suas raízes se mergulham na terra e os seus ramos se elevam no céu, a árvore é universalmente considerada como um símbolo das relações que se estabelecem entre o céu e a terra.

Portanto, a decoração do meu prato mais não é do que a representação de uma árvore da vida, só que adaptada ao formato circular de um prato. O crescimento dos ramos que procuram a luminosidade dos céus desenvolve-se num movimento em espiral feito a partir do centro, em direcção aos bordos daquela peça de loiça.

Claro podemo-nos perguntar, em meados do século XIX, conheceriam os ceramistas fracamente instruídos de uma qualquer oficina de Gaia ou do Porto, o significado da árvore da Vida?

Talvez não soubessem explicar com palavras de gente erudita o significado da árvore da vida. Mas já teriam visto colchas de Castelo Branco e frontais de altar azulejos com esse motivo, ou ainda árvores de Jesse, nas igrejas que frequentariam, que certamente os impressionaram. Os padres também não deixariam decerto de evocar este simbolismo da árvore nas suas sermoneias. Por conseguinte, julgo que era natural, que quando estes ceramistas pegassem no pincel, esta imagem da árvore a desenvolver-se em direcção ao céu lhes surgisse como qualquer coisa poderosa, que desejassem reproduzir num prato. E a verdade é que ainda hoje, passados uns bons cento e cinquenta anos este prato mantêm intacto o seu fascínio simbólico.

 

domingo, 17 de novembro de 2013

Um bordado dos finais do século XIX feito em Chaves

O bordado mede 53 x 54 cm. No final, apresenta a legenda Amor Felial, as abreviaturas de Sagrado Coração de Maria e o local de execução, Chaves
Há pouco tempo, a Maria Andrade apresentou no seu blog, um mostruário de bordados em ponto de cruz e achei que era de todo o interesse apresentar aqui, uma variante desse tipo de trabalho, que esteve muito em voga entre as meninas de família, nos séculos XVIII e XIX e julgo que ainda no início do século XX, por toda a Europa e nas Américas.
O bordado foi feito pela minha bisavó
Estes mostruários são conhecidos pelo termo inglês, samplers, que vem do francês exemplaire. Na sua origem, no século XVI, foram repositórios de motivos decorativos, representando animais, frutos, flores ou letras ou ainda de diferentes tipos de pontos. Como na época, não existiam revistas de modas e bordados, onde as senhoras se pudessem inspirar para fazer novos trabalhos, precisavam de um pano onde pudessem registar todo o tipo de pontos e decorações, que iam aprendendo com as amigas, de modo a utiliza-los em futuros lavores. Estes primitivos samplers eram normalmente longas tiras de tecido, integralmente preenchidas com padrões bordados, pois os tecidos eram caros e convinha não desperdiçar. Eram peças muito valorizadas e passavam de mães para filhas e eram pois uma espécie de livro de exemplos de bordados.

Com a generalização da imprensa, os livros e revistas de bordados começaram a ser mais acessíveis a todas as senhoras e no século XIX, os samplers já eram mais um exercício de virtuosismo de meninas de boas famílias, que aprendiam simultaneamente a bordar e as letras do alfabeto.
Claro mantinham ainda a função de repositório de pontos, como se pode ver no exemplar feito pela minha Bisavô, que apresenta vários tipos de caligrafia, que certamente foram usados como modelos para marcar lençóis, toalhas de mesa e sacas de guardanapos. Como muitos ainda saberão, no passado era vulgar as meninas bordarem as suas iniciais nas peças do enxoval que iam confecionando antes de casarem. Assim as suas peças não se misturavam com as das suas irmãs casadoiras, além de que, como existia o hábito de mandar lavar a roupa fora, no rio, às lavadeiras, não haveria trocas com a roupa de outras clientes e nem se perdiam as preciosas sacas de guardanapo ou fronhas..
O bordado está datado, 1891
Esta peça que hoje apresento tem um valor acrescido. Conhecemos o nome do seu autor, que foi a minha bisavó paterna, Ana Maria da Conceição de Morais Alves (1881-1974), está datada de 1891 e indica ainda o local da sua realização, a cidade de Chaves. A minha bisavô terá feito este bordado em ponto de cruz, com 9 ou 10 anos, mostrando assim os seus dotes de menina bem comportada

Nas últimas linhas, lê-se ainda "Amor Felial", e as abreviaturas de "Sagrado Coração de Maria". Este bordado é muito semelhante aqueles que se encontram nos samplers dos países anglo-saxónicos, onde além dos abecedários, existe sempre um dito de natureza moral moral ou religiosa.


Este trabalho está emoldurado, pendurado na sala de jantar de casa do meu pai e sempre que lá como em casa, sinto um pouco a presença da menina que o bordou há 122 anos atrás. 
Fontes:
O grande livro das antiguidades. Rebo International, 2002

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Hay un angel en Guadalupe


Estive o fim-de-semana passado, na Estremadura Espanhola, já na fronteira com Castela, numa terra perdida nas montanhas, onde no Século XIV, houve uma aparição da Virgem, que deu lugar a uma das mais importantes devoções marianas de toda a hispanidade, a Virgem de Guadalupe. À volta deste culto construiu-se um mosteiro dos Jerónimos e uma povoação para acolher milhares de peregrinos vindos de Espanha e Portugal e mais tarde da América Latina. Claro, este centro de peregrinação não é tão antigo e nem nunca foi tão importante como Santiago de Compostela, que atraiu romeiros desde os confins da Europa. A Virgen de la Gudalupe permaneceu sempre um fenómeno exclusivamente ibero-americano.


No entanto, sendo uma vila pequena, Guadalupe apresenta um casco histórico muito interessante e o mosteiro tem uma colecção muito rica, de paramentária, bordados oferecidos à Virgem, iluminuras, telas de Rubens, El Greco e sobretudo de Zurbaran, que é um dos meus pintores preferidos. A chatice é que a visita ao mosteiro é guiada, andámos todos a toque de caixa atrás do guia e para vislumbrar as obras foi necessário afastar à cotovelada uma trintena de excursionistas beatas da terceira idade. Quando chegámos à sacristia e estava eu ainda indeciso sobre para qual dos quadros do Zurbaran olhar, já a guia tocava no apito para zarparmos para outra sala. O Manuel disse-me logo que era preferível eu ver os quadros na net.

As tentações de S. Jerónimo de Zurbaran é um dos muitos tesouros que o Mosteiro de Guadalupe guarda

No entanto, o Mosteiro é muito bonito. É daquelas obras de arquitectura que foi sendo acrescentada ao longo de séculos, de forma quase orgânica, mas que manteve uma unidade estilística, quase por acaso, talvez a partir das cores do tijolo e da pedra com que foi sendo construído.

O estilo Mudéjar
Fascinaram-me particularmente as janelas mudéjares do lado poente do edifício. Para os menos familiarizados com a história da arte, mudéjar designa a população islamizada, que ficou em Espanha e em Portugal depois da reconquista cristã. Muitos desses mouros ou mouriscos eram artificies ligados à construção civil, especialistas entre outras coisas no uso do tijolo burro. Os novos senhores cristãos apreciaram a arte destes operários, que levantaram edifícios maravilhosos como o Alhambra em Granada e contrataram estes alvanéis para construir igrejas e mosteiros cristãos, segundo as plantas e modelos vigentes da arquitectura europeia, mas em tijolo e com decorações de evidente sabor mourisco. O resultado desta síntese entre a arte dos trabalhadores mouriscos e a arquitectura cristã é o estilo mudéjar, de que estas janelas de Guadalupe são um óptimo exemplo. Aqui em Portugal, temos uma igreja mudéjar, que quase minguem conhece, Castro de Avelãs, em Bragança e onde se pode admirar a arte de trabalhar o tijolo dos alvanéis mouriscos num edifício tipicamente românico.


À volta do mosteiro cresceu uma povoação, que está bem preservada, em que quase todas as casas tem galerias, destinadas a abrigar os peregrinos das chuvas e permitir o pequeno comércio debaixo dessas arcadas.


Estrategicamente há fontes em pedra por toda a vila, para saciar a sede dos peregrinos e das suas montadas, que chegavam extenuados a Guadalupe depois de terem percorrido um longo caminho através das várias regiões das Espanhas. Uma delas, talvez a mais simples, a fonte del angel encantou-me particularmente pela sua simplicidade.

A fonte del Angel
Por uma estranha associação de ideias e sensações, não consegui deixar de trautear a aquela música do Miguel Bosé, hay un angel en tu mirada, quando olhava para aquele anjo em granito, encimado por uma Cruz.

No he podido escapar
De ese aquí, de ese allá
Me deje dominar... Poco a poco...poco
(…)
Me sentí castigar
Te dije si... si...
Por tu forma de amar...
Tan salvaje...
Hay un ángel en tu mirada
Inquietante tabú


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A elegância do Vieux Paris

O meu amigo Manel não tem o hábito de comemorar os anos. Quase sempre deixo passar a data e este ano não foi excepção. Lembrei-me dessa falha quando estava na Feira de Estremoz ao ver a chávena que vos trago hoje, absolutamente perdida no meio da maior caqueirada. Sabem como é, aquelas bancas, que vendem tudo a um euro ou cinco euros? 

Percebi que o Feirante não fazia a menor ideia do que estava a vender, ao pedir-me cinco euros, por esta chávena e pires, em bom estado de conservação, que me pareceram desde logo porcelana de Paris e do início do século XIX, até porque a chávena não tinha asa, que normalmente é um bom indicador de que a peça é antiga.


Ofereci assim a chávena ao Manel, que ficou todo contente e a colocou junto a uma outra chávena, da mesma época, decorada segundo um desenho de Adam Buck, sobre a qual já aqui escrevi. 

Como disse no início, por uma espécie de intuição, presumi que esta chávena fosse porcelana de Paris, mas claro, não tinha a certeza, pois a peça não está marcada como era frequente entre os fabricantes sediados na capital francesa, entre 1770-1850.

Para saber mais sobre esta chávena, parti então para o google armado de uma santa paciência e fiz várias pesquisas combinando os termos bol et soucoupe, porcelaine vieux Paris e ainda Teabowl and Saucer com Paris Porcelain.

Chávena e Pires. Porcelana de Clignancourt. ca. 1790. Victoria & Albert Museum

Obtive os primeiros resultados no Victoria And Albert Museum, ao encontrar uma chávena da Manufactura de Clignancourt, datada de cerca de 1790, com uma decoração com algumas semelhanças à peça que ofereci ao Manel e pintada nos característicos dourados da porcelana de Paris.

Continuei as minhas pesquisas, mas sem resultados conclusivos, pois entre 1770-1850, Paris é o centro das artes, da moda, da literatura e da cultura e todos os fabricantes de porcelana europeus, de Lisboa a St. Petersburgo copiaram os modelos manufacturados na cidade da luz. De modo que encontrei uma ou outra coisa da Fábrica de Porcelanas de Nyon na Suiça, com muitas semelhanças com esta chávena e ainda descobri que na Bélgica, a porcelaine Vieux Bruxelles, muito procurada pelos antiquários, inspirou-se na porcelana de Paris.

Passei depois à pesquisa bibliográfica e encontrei um livro estupendo, Porcelaine de Paris / Régine de Plinval de Guillebon : 1770-1850 . - Fribourg : Office du Livre, [cop. 1972], que me forneceu mais algumas pistas e explicações. 
Porcena de Paris. Fleury. Museu Nacional de Arte Antiga

Encontrei reproduzidas nestes livro duas fotografias de duas chávenas, uma no Museu Nacional de Arte Antiga e outra no British Museum com decorações idênticas às da peça do Manel, que me levaram a ter quase a certeza que a chávena do meu amigo é porcelana francesa. A primeira foi fabricada por Flamen-Fleury e a segunda por Potter.

Chávena e Pires por Potter & Blancheron , ca. 1794. British Museum
Em todas estas chávenas, incluindo a do Manel, se encontra uma característica muito própria de muitas das produções da porcelana Vieux Paris. Enquanto nas formas a porcelana de Paris imita muitas vezes a ourivesaria, nas decorações a fonte de inspiração é a arte dos tecidos. E de facto, se olharmos bem para a chávena do Manel, a decoração poderia ser um muito bem o estampado ou a passamanaria de um vestido estilo império. Talvez por isso, a chávena do Manel ficou tão bem ao lado da chávena decorada com um desenho do Adam Buck, representando uma Senhora com um Vestido Estilo Império.