quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O círculo de Liberal Sampaio: José Gonçalves Lage

José Gonçalves Lage

Periodicamente pego no velho de álbum de fotografia em formato carte-de-visite do meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935) e retomo a minha tentativa de identificação daqueles personagens, cuja memória o tempo foi apagando quase todos os contornos das suas vidas. Faço postagens no fórum de genealogia, o geneall, pesquiso nos arquivos distritais e no arquivo da Universidade de Coimbra, mas apenas apanho retalhos da vida daquelas pessoas fotografadas no último quartel do século XIX. Ainda assim, opto por publicar no blog estas fotografias e o pouco que descobri delas, porque é uma forma de sistematizar as informações colhidas aqui e acolá e sei que no futuro alguém fará uma pesquisa no Google e escrever-me-á indicando-me mais um dado sobre um dos retratados.

O meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio

Uma dessas personalidades é o Padre José Gonçalves Lage, que por volta de 1880 ou até antes ofereceu uma fotografia ao meu trisavô, com a seguinte dedicatória Ao seu presadissimo amigo como testemunho de sincera e acrysolada amizade, offerece José Gonçalves Lage. Destas palavras podemos inferir que os dois homens foram amigos e talvez próximos. Ambos eram naturais de Sarraquinhos, freguesia do Concelho de Montalegre. Tinham idades próximas. O José Gonçalves Lage nasceu em 1840 e o meu bisavô em 1846. Talvez fossem vagamente aparentados, pois a avó materna do meu antepassado tinha também por apelido Lage, mas isso poderá não quer dizer nada pois normalmente numa aldeia, numa vila ou até mesmo cidade há sempre apelidos muito comuns e característicos da terra. Ambos frequentaram o seminário de Braga e ordenaram-se padres. Partilhavam também o mesmo gosto pela história e pela cultura. Portanto, tinham em comum o suficiente para cimentar uma acrisolada amizade, pelo menos na época em que esta fotografia foi tirada, por volta de 1875-1880. Segundo o Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses Padre José Gonçalves Lage teria nascido em 10.3.1840 e nesta fotografia aparenta ter entre 35 e 40 anos, portanto a fotografia foi presumivelmente executada por volta desses anos.

A dedicatória a Liberal Sampaio

Não há muitos elementos sobre a vida deste padre, apesar de ser autor de pelo menos 23 obras, a maioria manuais escolares, pelos quais aprenderam milhares de alunos. O Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses refere que o Padre José Gonçalves Lage nasceu em 10.3.1840 em Sarraquinhos, mas não consegui encontrar o seu registo de baptismo, nem tão pouco apurar se existia algum parentesco entre ele e o meu trisavô. Segundo o Dicionário de Inocêncio, inscreveu-se no Liceu de Braga em 1856, tendo sido um aluno brilhante. Mais tarde terá ido para o seminário da mesma cidade e no Arquivo Distrital de Braga existe uma referência à Inquirição de genere deste homem, datada de 1859. Este documento era um processo necessário para a ordenação dos párocos. Consistia numa inquirição de testemunhas para comprovar a filiação, reputação, bom nome ou limpeza de sangue, não fosse o candidato ter sangue judeu a correr-lhe pelas veias. O referido documento indica, que era filho de Bento Gonçalves Lage e Ana Gonçalves Pelho e permite-me inferir, que terá tomado ordens nesse ano, em 1859 ou o mais tardar em 1860. 

Depois em 1876, este homem volta a aparecer nos registos oficiais. No Arquivo Distrital de Vila Real há um requerimento de passaporte feito em seu nome, em 8 de Fevereiro de 1870, para viajar até ao Brasil. Enfim, não sei o que foi fazer aquelas terras longínquas do outro lado do mar, se foi visitar um parente ou se foi numa missão pastoral. Em todo o caso em 1877 está outra vez em Portugal, pois matricula-se na Universidade de Coimbra, primeiro em Teologia e depois Direito e frequenta essa universidade até 1879, sem terminar nenhum dos cursos. Segundo ainda Inocêncio um incidente da fortuna fê-lo interromper o curso. 

Que episódio terá sido esse? Ao investigar a produção literária deste homem descobri que talvez este incidente da fortuna tenha sido a polémica com o livreiro de Coimbra José Diogo Pires, em que este acusa o Padre José Gonçalves Lage de plágio da obras de António Borges de Cardoso de Figueiredo, das quais o livreiro era detentor dos direitos autorais. Esta polémica dará origem a uma série de libelos publicados entre 1883 e 1884, de que a Universidade Toronto guarda cópia digitalizada. A questão iniciada em 1879 terá dado escândalo em Coimbra e o assunto acabou no Tribunal da Relação do Porto. Passados 130 anos deste incidente infortunado é difícil saber qual das partes tinha razão. Os dois textos assinado pelo Padre José Gonçalves Lage são escritos num tom civilizado e polido, referindo que adaptou a obra de Cardoso de Figueiredo, para a tornar inteligível aos seus explicandos e que ela era em si uma compilação dos autores franceses e clássicos. Pelo contrário, o livreiro José Diogo Pires foi grosseiro, cobriu o padre de impropérios, como gatuno, safardana, lorpa de serraquinhos acusando-o de extorsão dos bens de uma senhora, que alugou o quarto ao referido padre e ainda de falsificar habilitações aos candidatos ao seminário no tempo, que estava em Braga. Refere  a sua face rapada e modo seráfico dos predestinados para intermediários entre Deus e o homem neste vale de lágrimas em que vivemos. O caso acabou no tribunal da Relação do Porto, mas não sei exactamente o desfecho. Não deve ter sido muito grave para o Padre Lage, que continuou a publicar os seus manuais escolares depois destes acontecimentos, mas é provável que a sua reputação em Coimbra tenho ficado manchada e talvez este incidente o tenho feito abandonar os seus estudos na Universidade daquela cidade.


A polémica acerca de direitos de autor com José Diogo Pires está digitalizada na University of Toronto

Em todo o caso, este Padre José Gonçalves Lage era sem dúvida homem culto, cuja actividade como autor foi bastante significativa, sobretudo entre 1877 e 1901. Escreveu manuais escolares de história, geografia, literatura, retórica e linguística. Ao todo são 23 títulos, conforme o catálogo colectivo das bibliotecas portuguesas, o porbase. O meu trisavô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio, tinha pelos menos duas das suas obras na biblioteca do Solar de Outeiro Seco, onde residia, as Noções syntheticas de poética e Novissima grammatica portugueza de 1882.

Não consegui encontrar a data da sua morte do Padre José Gonçalves Lage A última obra que escreveu foi em 1901 as Noções elementares de geographia, chronologia e chorographia de Portugal, mas já adaptadas por L. Pinto da Rocha, o que me dá a sensação que já teria morrido nessa data, mas também não encontrei nada por esses anos nos registos de óbito de Sarraquinhos.

Homem das relações do meu trisavô, o padre José Gonçalves Lage desenvolveu uma actividade intelectual significativa no segundo quartel do século XIX. Durante 25 anos, milhares de alunos de Norte e Sul do País aprenderam pelos seus livros e de alguma forma o pensamento deste padre moldou a cultura desses jovens, ainda que tivesse copiado umas coisinhas aqui e acolá. A Novíssima gramática é até citada em quase todos os estudos de história da linguística portuguesa. Mas no momento presente, José Gonçalves Lage parece ter caído no esquecimento e os seus livros tão manuseados, estudados e anotados nos finais do século XIX são hoje os chamados monos das bibliotecas, que nunca são requisitados, nem saem tão pouco das estantes.

José Gonçalves Lage. A face rapada e modo seráfico dos predestinados para intermediários entre Deus e o homem neste vale de lágrimas em que vivemos, segundo a descrição de José Diogo Pires

Obras de José Gonçalves Lage:

Sermões vários 2.o maço [ Manuscrito]. 1804.-1868 (colecção de semões de vários autores entre os quais um do Padre José Gonçalves Lage)

Noção elementar da História Moderna de Portugal / José Gonçalves Lage. Lisboa : Typ. Occidental, 1877.

Rhetorica abreviada, ou synopse do compendio de rhetorica de A. Cardoso Borges de Figueiredo. Coimbra : J. Diogo Pires, 1879.

Noções syntheticas de poetica... / José Gonçalves Lage. Coimbra : Imp. da Universidade, 1880.

Elementos de litteratura classica antiga e moderna / José Gonçalves Lage. Coimbra : Imp. Litteraria, 1881.

Esboço das Literaturas ingleza, alemã e franceza... / José Gonçalves Lage. [S.l. : s.n.]. 1881.

Noção elementar da historia moderna de Portugal... / por José Gonçalves Lage. 2a ed. correcta e augmentada. Coimbra : Impr. da Universidade, 1882.

Noção elementar de chorographia de Portugal / por José Gonçalves Lage. Coimbra : Impr. Independencia, 1882.

Novissima grammatica portugueza, resumida e accomodada ao programma d'instrucção primaria / José Gonçalves Lage. Coimbra : Imp. da Universidade, 1882.

Um pires de doce ou breve resposta ao Plagiato do Livreiro da Sé Velha de Coimbra / José Gonçalves Lage. Coimbra : Impr. Litteraria, 1883.

Apontamentos de oratoria, ou subsidio dos exames de portuguez / José Gonçalves Lage. Coimbra : M. Almeida Cabral, 1883.

Novissima grammatica portugueza : coordenada em harmonia com o programa official dos lyceus / José Gonçalves Lage. 2a ed. Coimbra : M. Almeida Cabral, 1883.

Elementos de oratoria, comprehendendo as prescripções do programma dos lyceus / José Gonçalves Lage. Coimbra : M. Almeida Cabral, 1883.

Noção synthetica de economia politica / coord. por José Gonçalves Lage. Coimbra : Impr. Independencia, 1884.

Duas palavras sobre um exame de peritos e sobre uma minuta de agravos subida à Relação do Porto / José Gonçalves Lage. [S.l. : s.n.], 1884.

Novissima grammatica portugueza, resumida e accomodada ao programma d'instrucção primaria / José Gonçalves Lage. 2a ed. correcta e augmentada. Coimbra : Imp. da Universidade, 1885

Noção elementar da historia moderna de Portugal... : precedida de um resumo da nossa historia antiga / por José Gonçalves Lage. 3a ed. correcta e augmentada. Porto : Livr. Portugueza, 1888.

Noção elementar de história moderna de Portugal... precedida de um resumo da nossa história antiga / por José Gonçalves lage. 4a ed. correcta e augment. Porto : Liv. Portuguesa, 1892.

Noções de geographia e chorographia portugueza / por José Gonçalves Lage. 2a ed. correcta e augment. Porto : Liv. Portugueza, 1892.

Grammatica portugueza elementar, accommodada ao programma de instrucção primaria / José Gonçalves Lage. 4.a edição. Coimbra : Francisco França Amado, 1892.

Elementos de chronologia, de geographia e de corographia de Portugal / por José Gonçalves Lage. Nova ed / accomodada... por L. Pinto da Rocha. Porto : Livr. Portugueza, 1897.

Elementos de História de Portugal / por José Gonçalves Lage. Nova ed / accomodada... por L. Pinto da Rocha. Porto : Livr. Portugueza, 1897.

Elementos de História de Portugal / por José Gonçalves Lage ; ed. lit. L. Pinto da Rocha. Nova ed. Porto : Livr. Portugueza, 1899.

Noções elementares de historia de Portugal / por José Gonçalves Lage ; reformada e accommodada ao programma official d'instrucção primaria por L. Pinto da Rocha. Porto : Joaquim Maria da Costa, 1901.


Bibliografia e links consultados:

Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses

Diccionario bibliographico portuguez / Innocencio Francisco da Silva. - Lisboa : Imprensa Nacional, 1858-1958, vol 12, p. 351-352

Arquivo Distrital de Braga:

http://pesquisa.adb.uminho.pt/details?id=1352997&ht=jose%7cgon%c3%a7alves%7clage


Arquivo da Universidade de Coimbra

https://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=195312&ht=jos%c3%a9|gon%c3%a7alves|lage|direito


Arquivo Distrital de Vila Real

https://digitarq.advrl.arquivos.pt/details?id=1007327


Biblioteca da Universidade de Toronto https://archive.org/details/umpiresdedocedua00lage/page/n1/mode/2up


domingo, 11 de outubro de 2020

No tempo das cerejas: uma imitação de Meissen


O meu amigo Manel comprou recentemente este conjunto em porcelana, representando uma cena campestre em que três galantes jovens apanham cerejas, enquanto dois querubins assistem. É uma cena muito ao gosto do século XVIII, no tempo em que a rainha Maria Antonieta de França e os seus amigos mais próximos, brincavam aos camponeses na pequena aldeia, que aquela soberana mandara construir nos parques de Versalhes, o hameau de la Reine. Até as roupas destas pequenas figuras em porcelana sugerem esse período. 


Por exemplo, umas das jovens, enverga um chapéu de palha, adereço que a pintora Élisabeth Vigée Le Brun usou num auto-retrato e que depois Maria Antonieta tornou moda entre todas as elegantes da Europa.

Retrato da Condessa de Verdun por Élisabeth Vigée Le Brun. Museu Nacional de Arte Antiga

Esta cena provavelmente inspirou-se num das obras de François Boucher 1703-1770 La cueillette des cerises, ou numa tapeçaria de de Jean Baptiste Huet, executada a partir de uma obra de Boucher.

François Boucher 1703-1770 La cueillette des cerises

Na parte de trás da peça, apresenta uma marca com as espadas cruzadas de Meissen, essa prestigiosa fábrica de porcelana alemã, que celebrizou e popularizou as figurinhas de porcelana toda a Europa.



As marcas da peça

Mas o Manel e eu sabíamos de antemão, que esta figura de porcelana não era do século XVIII, nem tão pouco de Meissen. Porcelanas do século XVIII e sobretudo Meissen não se apanham em mercados de velharias. São peças raras e que atingem preços muito elevados nos bons antiquários. Presumimos desde logo, que fosse uma peça dos finais do XIX ou inícios do XX, produzida na Alemanha, na região do Saxe ou da Turíngia, imitando as figurinhas de Meissen, destinada à boa burguesia, que queria também ter no seu lar essas figuras de porcelana, à semelhança das residências aristocráticas, onde existia normalmente um salão só para exibir essas colecções, as chamadas salas do Saxe.


Pessoalmente achei de imediato que esta peça seria da Volkstedt, que nos finais do XIX e inícios do XX produzia muitas figurinhas destas, imitando o período de ouro de Meissen, usando algumas marcas inspiradas nas célebre espadas cruzadas daquela prestigiosa fábrica. 

Procurei na internet saber quais as marcas usadas pela Volkstedt, mas não havia nenhuma igual a esta e pesquisei no google por cherry pickers em combinação com german pocelain figurines mas não me apareceu nada igual. Só uma figurinha genuína de Meissen, do século XVIII, representado uns jovens galantes, apanhando cerejas, mas não tinha nada a ver com esta peça do Manel. Apenas confirmei que a peça do meu amigo Manel era uma imitação de Meissen.


Uma genuína peça de Meissen

Decidi então consultar alguma bibliografia, pois nem tudo se encontra na internet e abri a obra German porcelain / by W. B Honey. - London : Faber and Faber, 1947, suspeitando que houvesse um capítulo dedicado às imitações e de facto na página 46 há uma entrada sobre marcas semelhantes às espadas cruzadas de Meissen, onde consta uma marca igual à peça do Manel, atribuída ao fabricante francês Samson, de Paris. 

German porcelain / by W. B Honey. - London : Faber and Faber, 1947

Refiz então a minha pesquisa na internet por Samson, Cherry pickers e com efeito encontrei uma peça igual à esta num antiquário francês o Biscardieux Bordeuax, marcada com umas espadas de Meissen e identificadas com sendo da Samson, dos finais do século XIX. Fiz mais umas pesquisas aqui e acolá em sites de vendas de antiguidades e confirmei, que todas as figurinhas de porcelana marcadas com as espadas cruzadas, mas com um tracinho ao meio eram da Samson, Edmé et Cie, fábrica fundada em 1845 em Paris e que se dedicou a imitar as cerâmicas mais prestigiadas e mais procuradas do mercado de então, fossem elas porcelanas chinesas da família rosa ou verde, japonesas ou europeias como Worcester, Chelsea, Sèvres e Meissen ou ainda a majólica italiana. Há até uma certa discussão entre os peritos se esta firma Samson, Edmé et Cie fabricava cópias ou verdadeiras falsificações. Em todo o caso, muitas dessas peças foram vendidas como originais ao consumidor menos atento.


Peça à venda em http://www.briscadieu-bordeaux.com/

Peça à venda em http://www.briscadieu-bordeaux.com/

Relativamente à figura de porcelana do Manel ela é afinal francesa, fabricada pela Samson, Edmé et Cie provavelmente dos finais do XIX ou inícios do XX. Imita sem dúvida a porcelana de Meissen e evoca esse século XVIII francês, libertino e galante.


Alguma bibliografia e links consultados:

German porcelain / by W. B Honey. - London : Faber and Faber, 1947

https://en.wikipedia.org/wiki/Edm%C3%A9_Samson

http://www.briscadieu-bordeaux.com/html/fiche.jsp?id=8479872&np=2&lng=fr&npp=100&ordre=2&aff=1&r=

https://www.catawiki.com/l/19759181-samson-meissen-porcelain-group-paris-late-19th-century