Recebi na minha caixa de correio de e-mail a imagem de uma peça, que me encanta pela sua ingenuidade e candura. Confesso-vos que sinto um grande fraco por estas peças piedosas antigas, propensão essa que talvez a psicologia possa explicar mais satisfatoriamente do que eu, pois há muito que perdi a fé.
O e-mail foi-me enviado pela segunda seguidora misteriosa, que andava afastada do nosso convívio, mas que resolveu regressar em força mostrando peças da faiança coimbrã, que estamos apenas habituados a ver nos museus.
A peça em causa é uma pia de água benta, datada do segundo quartel do século XVIII, certamente feita em Coimbra e muito provavelmente saída da oficina de um dos Brioso, uma dinastia de ceramistas, como vimos no post de Fevereiro . Escrevo certamente e provavelmente, uma vez que as atribuições aos briosos e a outros ceramistas coimbrões não são de todo uma coisa matemática e científica, pois embora a existência desta família esteja bem documentada nos arquivos, as peças raramente são marcadas e é difícil estabelecer uma relação certa entre objectos e artistas. Em todo o caso há outras obras pertencentes ao Museu Nacional Machado de Castro, muito idênticas a esta, com os nºs de inventário, nºs 9828, 9827, que permitem por comparação datarmos esta obra e identificar o local de produção e a oficina.
Pia de água benta do Museu Nacional Machado de Astro, in. 9828 |
Segundo a obra a Cerâmica de Coimbra do século XVI-XX. Lisboa. Edições Inapa, 2007 a manufactura de pias de água benta em cerâmica vulgarizou-se em Portugal, primeiro na cidade de Lisboa, no final do século XVII e depois já no século XVIII, Coimbra torna-se o principal centro de produção destas peças. As pias de água benta foram feitas em grande quantidade, destinadas a pessoas sem muito dinheiro, que gostavam de nas suas casas ter a ilusão de possuírem uma espécie de pequena capela, para praticarem os seus exercícios devotos.
Reparem que a pia é uma réplica económica e em pequena escala de um altar de talha folheada a ouro.
Reparem que a pia é uma réplica económica e em pequena escala de um altar de talha folheada a ouro.
Altar em talha dourada, que estas pias tentam reproduzir numa escala dimnuta |
Julgo que as pessoas trariam a água benta das igrejas para as suas casas e deveriam faze-lo com muita frequência. Tenho uma peça destas em casa dos finais do XVIII, princípios do XIX, que está completamente encardida de tanta água benta e não me atrevo a lava-la muito, com receio que uma colagem já antiga se desfaça e fique com a pia feita em mil pedaços.
No período em que a pia da nossa seguidora foi fabricada, segunda metade do século XVIII, os temas mais comuns destas pias eram todos os aspectos relacionados com Cristo (Crucificação, Menino Jesus, símbolos da crucificação e alegorias eucarísticas), a Virgem Maria e Sto. António de Lisboa.
Pia do Museu Nacional Machado de Castro representando a Virgem Maria, inv 9827 |
Estas peças foram tão populares, que para satisfazer a enorme procura as oficinas de ceramistas executavam-nas em grande quantidade, usando os moldes até eles estarem gastos, obrigando os seus operários e aprendizes a fazerem uma pintura rápida e apressada das peças. O resultado é que todas estas peças apresentam um certo ar imperfeito. Há um desacerto da pintura. A tinta é umas vezes mais espessa, outras vezes mais líquida e mais clara. O moldado perdeu definição. Cada uma delas apresenta sempre um ou mais pormenores distintos da anterior. Na verdade, essas imperfeições tornam estas peças, que foram feitas em série, em obras únicas, conforme referiu muito bem Paulo Henriques no texto do catálogo Formas de Devoção. Lisboa: IPM, 1999.
Detalhe: as Chagas de cristo |
O fabrico das pias de água benta continuou pelo século XIX fora, mas desta vez em todos centros cerâmicos, de Norte a Sul do País e prolongou-se até aos dias de hoje. Contudo, na minha opinião pessoal, as pias de água benta coimbrãs do século XVIII representam um momento da cerâmica portuguesa em que a ingenuidade quase alcança o estatuto de obra-prima.