Esta é uma fotografia da irmã da minha mãe, a Maria Adelaide, tirada no já longínquo ano de 1930, na Foz do Porto. Teria ela uns 17 anos e orgulhosa, mostra um vestido certamente novo, pois na época, a fotografia ainda era cara e só se tiravam retratos em momentos realmente importantes, com a toilette a condizer. A tia Maria Adelaide vivia em Vinhais, uma vila da raia transmontana e uma ida à cidade do Porto era um acontecimento, suficientemente especial para se estrear um vestido novo. Vinhais era e ainda é uma povoação isolada no meio de montanhas e em 1930 e ir até ao Porto significava apanhar uma camioneta para Chaves, depois um comboio até à Régua e finalmente outro para o Porto. Provavelmente pernoitaria pelo caminho e demoraria uns dois dias de viagem a fazer os cerca de 200 km que separam Vinhais do Porto. Em suma, naquele tempo, para uma rapariguinha de Vinhais viajar até ao Porto era mais ou menos a mesma coisa que hoje ir passar uns dias a Nova Iorque ou Paris. Ainda para mais, ficou alojada na Foz, a zona mais chique do Porto, talvez em casa de parentes ou nalguma pensão suficientemente respeitável para receber uma rapariga séria.
Para fazer boa figura na Foz do Porto e com suficiente antecedência, a minha tia Lalai terá comprado um tecido e ela própria terá confeccionado o vestido, segundo um figurino publicado numa revista de moda, ou no suplemento feminino de um jornal português. E o que é certo é que escolheu um modelo actualizado, pois o corte correspondia ao que era preconizado para a Primavera de 1930, pelo conhecido magazine parisiense Le Petit echo de la mode, em Março de 1930. A saia era mais alongada, que na década anterior, alargando suavemente para baixo e a cintura também ligeiramente mais acentuada, que nos anos 20.
Le Petit echo de la mode, Março de 1930 |
Certamente que em Vinhais a minha tia calçaria umas grossas meias de lã, mas aqui fez-se fotografar com umas meias de seda ou talvez de viscose, uma seda artificial, que se começou a usar precisamente nesta altura. O nylon só entrará na Europa depois de 1945.
O que é mais curioso desta fotografia é que a minha tia ao longo da sua vida manteve-se mais ou menos fiel a este corte de vestido. Recordo-me de a ver no casamento da minha prima Dadinha no final dos anos 80, com um vestido preto exactamente com este corte, só que em vez da gola tinha um pequeno decote fendido. Era uma coisa muito sóbria, elegante e adequada à idade, o chamado simples vestido preto. Aliás, todos nós temos uma certa tendência a fixarmo-nos às modas da nossa juventude, talvez porque a partir de uma certa idade tenhamos dificuldade em acompanhar os tempos ou simplesmente porque já sabemos o que nos fica bem e a moda deixa de nos preocupar. A minha Tia Lalai conhecia o suficiente de moda, para não ser vítima dela. Depois da morte do seu pai, que deixou a família em dificuldades financeiras, para sobreviver tornou-se modista e ao longo de cinquenta anos, numa das salas do piso térreo da casa de Vinhais, ela e as suas empregadas cortaram e fizeram milhares de saias, casacos e vestidos e trajes de noiva. Ainda apanhei esse tempo e em miúdo gostava de entrar naquela sala e ver aquele reboliço de linhas, tecidos, alfinetes, máquinas de costura e dúzias de revistas de moda portuguesas, francesas e italianas. As empregadas da minha tia eram também muito simpáticas connosco, os miúdos e ajudavam-nos a fazer roupa para os bonecos. Quando vejo aquele quadro do Marques de Oliveira, costureiras trabalhando, que está no Soares dos Reis, lembro-me sempre da sala de costura da casa de Vinhais. Até a vista é parecida, pois da janela também se via uma árvore centenária, um castanheiro.
Marques de Oliveira. Costureiras trabalhando. Museu Nacional de Soares do Reis, inv. 79 Pin CMP/ MNSR. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/ |
A minha tia morreu há mais de vinte anos e aquela sala está às escuras, há muito tempo, e já ninguém ali usa as máquinas de costura, corta tecidos ou alinhava. Mas esta fotografia, tirada em 1930 no Porto, traz-me sempre a memória essa época, em que a minha tia Maria Adelaide cortava os tecidos e pareçe que ainda ouço as vozes da Bárbara, da Iracema, da Virgínia e da Francisca, as senhoras que trabalhavam com ela e de quem nós gostávamos tanto. A fotografia tem sempre essa misteriosa capacidade de abolir o tempo.
Maria Adelaide (1913-1997) |