|
A sala do "Museu", já em ruínas... (foto do Manel) |
Era mais ou menos conhecido na minha família, que o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), tinha mantido relações epistolares e de amizade com nomes significativos da cultura e da vida portuguesa dos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX e até havia alguma coisa escrita sobre o assunto. Por exemplo, em 23 de Fevereiro de 1961, saiu um artigo na Voz de Chaves, assinado por um tal LM, intitulado, Insignes varões flavienses: José Rodrigues Liberal Sampaio, onde se refere que na sua casa de Outeiro Seco, o meu trisavô recebeu personalidades como José Leite de Vasconcelos, Mendes Correia e ainda Suas Altezas Reais D. Luís e D. Manuel.
No entanto, sempre tive alguma desconfiança relativamente a estes artigos, publicados depois da morte das pessoas, em que normalmente se traçam os maiores encómios ao falecido e se exageram sempre as suas virtudes morais, físicas e intelectuais. Fiquei sempre à espera de ver com os meus próprios olhos a confirmação destas relações.
E realmente aconteceu.
A semana passada, na Biblioteca onde trabalho, dei com um livrinho, de José Leite de Vasconcelos, intitulado
Por Trás-os-Montes, publicado pela Imprensa Nacional em 1917. A obra é uma espécie de caderno ou um diário, onde aquele que foi o pai da arqueologia e etnografia portuguesa ia tomando nota das impressões da viagem, que empreendeu por aquela província em 1915. Foi em serviço do governo português para presidir a exames nos Liceus de Chaves e Bragança, mas também para recolher peças e achados para o seu museu de arqueologia e etnografia, criado em 1893.
Na época a arqueologia ainda não tinha ainda ganho um caracter inteiramente científico e José Leite Vasconcelos andava aqui e acolá, um pouco por todo o país a recolher uns bifaces da Idade da Pedra, umas moedas visigodas ou um fragmento de uma estátua romana. Não era como hoje, em que os arqueológos fazem escavações sistemáticas numa área específica, em que anotam exactamente em que parte da jazida, aquele crânio ou aquele colar de contas foram achados, conseguindo mediante esse registo rigoroso reconstituir todo um primitivo acampamento humano.
Na verdade e apesar de hoje acharmos que estamos mal, o património arqueológico do país em 1915 estava verdadeiramente abandonado e foi graças a carolice de homens como José Leite de Vasconcelos que andaram a recolher antigualhas aqui e acolá, que existe hoje um
Museu Nacional de Arqueologia.
Em todo o caso julgo, que José Leite de Vasconcelos, mantinha este Diário, para ter um registo da proveniência das peças que ia recolhendo para o seu recém-criado museu .
Bem, mas o que nos interessa é que José Leite de Vasconcelos está em Chaves em 1915 e vai registando as impressões da vila, do seu artesanato, dos seus costumes e da arquitectura. Encanta-se particularmente com as varandas de Chaves, que reproduz algumas fotografias.
|
Varandas de Chaves em 1915. Ainda existirão? |
Faz também algumas excursões as aldeias vizinhas para visitar ruínas antigas ou recolher artefactos do passado. Assim, na tarde de 14 de Julho de 1915 foi a Outeiro Jusão, com Liberal Sampaio, que é muito sabedor das cousas históricas de Chaves, e possuidor de uma colecção de antiguidades, como logo direi. Nesta aldeia viram uma lápide com a palavra PRAEN inscrita.
|
O meu trisavô, que fez formou um gabinete de curiosidades ou museu no Solar de Outeiro Seco |
A 15 de Julho, José Leite de Vasconcelos e Liberal Sampaio fazem uma nova excursão arqueológica até ao Pontão, freguesia de Vale da Anta, onde visitam os restos de um muro romano com funções então desconhecidas.
O fundador do Museu Nacional de Arqueologia continua nestes dias por Chaves e arredores visitando inscrições rupestres, lápides romanas e recolhendo quer objectos arqueológicos, quer etnográficos.
Mas a 17 de Julho, José Leite de Vasconcelos reencontra Liberal Sampaio, que vive em Chaves, onde é advogado, mas tem casa em Outeiro Seco e aí uma colecção arqueológica, que fez o obsequio de me mostrar (pela Segunda Vez, pois eu já a havia visto em 1895)(….)
|
A Sala do Museu nos meados dos anos 60. Vê-se a vitrine onde se colocavam as preciosidades |
A colecção do Dr. Liberal Sampaio consta de moedas e antigualhas. As moedas, que começou a reunir em 1876, são portuguesas, hespanholas, e romanas (tanto da republica como do imperio), estas últimas encontradas geralmente pelo Concelho de Chaves; também com as moedas há medalhas portuguesas: todo o monetário está ainda por classificar. Entre as antigualhas notei machados de pedra, instrumentos pré-históricos de bronze, fragmentos cerâmicos de várias épocas, uma enxada romana de ferro romana aparecida no Couto do Ervededo (Chaves) com moedas de Maxencio, dois outros ferros agrários achados em Fírvidas (Montalegre), com moedas de Constantino e sobretudo dois anéis, um de bronze, com enfeites na pala, encontrado perto de Carrazedo de Montenegro (Chaves) e outro de ouro romano”
|
Outro aspecto da sala do Museu em meados de 60 |
Por esta ocasião, o meu trisavô ofereceu ao Museu de Nacional Arqueologia, na pessoa de José Leite de Vasconcelos dois machados de pedra polida, e um pedaço de outro, dos arredores de Outeiro Seco; uma seta de cobre, e um pedaço de vaso ornamentado, da quinta da Mina; uma rodela ou disco pequeno de barro, do tipo da loiça dos castros (arredores de Outeiro Seco); um pedaço de tegula com impressões de patas de animais; outras miudezas.
Na Quinta da Mina, que pertencia também ao solar, Liberal Sampaio mostrou-lhe os chamados lagares ou lagaretas, isto é, covas escavadas na pedra e usadas na Idade Média na transformação da uva.
|
Os lagares ou lagaretas da Quinta da Mina, usados na Idade Média para transformação do vinho. Fotografia do meu amigo Humberto |
Os meus seguidores que me desculpem a enumeração enfadonha, mas é a primeira descrição mais pormenorizada, que se dispõe do chamado museu do solar de Outeiro Seco, ainda que só das peças arqueológicas, porque naturalmente a arte sacra, o mobiliário ou a faiança não interessariam a José Leite de Vasconcelos. Também temos agora a certeza que José Leite de Vasconcelos fazia parte do círculo de Liberal Sampaio e que visitou o solar dos Montalvões duas vezes, uma em 1895 e outra em 1915.
|
A Sala do Museu hoje (foto do Manel) |
Por último, fica também uma pergunta no ar. Se José Leite de Vasconcelos conheceu o Solar em 1895, para visitar a colecção de Liberal Sampaio, ainda estando viva a minha trisavó,
Maria do Espírito Santo, a verdadeira proprietária da casa, isso quererá talvez dizer que os dois viveram de facto maritalmente?
A resposta fica para outros posts
|
Uma janela exterior da Sala do Museu nos anos 60 |