A azulejaria portuguesa é uma eterna fonte de surpresas. Quando pensamos, que já vimos tudo, descobrimos mais um padrão, uma decoração completamente nova, que são testemunhos eloquentes da imaginação dos mestres desta arte tão barata e tão característica de Portugal.
Recentemente, estive no Algarve, a convite do Zé Júlio, do blog http://o-outro-bau-do-zejulio.blogspot.pt/, que é um guia óptimo e divertido, para quem quer conhecer outras coisas naquela província, para além das praias, discotecas, resorts e campos de golf. Um dos sítios que visitámos com o nosso Zé Júlio foi a igreja matriz de Loulé onde descobrimos por mero acaso um revestimento azulejar do século XVII, em que motivos decorativos abstractos se combinavam com azulejos avulsos, que representavam ora uma alminha no purgatório, ora um S. Miguel. A composição ao todo conta com 16 azulejos, o que é típico do século XVII, mas nunca tinha visto nada naquela época, misturando azulejos abstractos e figuras humanas.
A composição é formada por 16 azulejos |
Este painel azulejar encontra-se na capela das Almas, da Igreja de S. Clemente, a matriz de Loulé e esta associação entre as alminhas do Purgatório e o Arcanjo São Miguel é absolutamente lógica. No Dia do Juízo final, este Arcanjo é quem conduz os mortos e pesa as almas numa balança. Os ingleses designam-no pelo poético nome, The Lord of the Souls, isto é, o senhor das almas.
O Arcanjo S. Miguel é o príncipe das milícias celestiais e foi ele quem um dia expulsou um anjo rebelde dos céus, um senhor que muito tem assustado a espécie humana ao longo de séculos, o célebre Satanás. Por essa razão, S. Miguel é representando como um guerreiro alado, que esmaga um Dragão, isto é Satanás, o anjo caído. A Igreja Católica considera-o o seu defensor e depois da contra-reforma, tornou-se um símbolo do triunfo do catolicismo sobre a heresia protestante, isto é, mais uma vez, Satanás. E no entanto, a devoção a este arcanjo, saído dos textos bíblicos e defensor da ortodoxia, católica, apostólica e romana substituiu e reutilizou os cultos de duas divindades pagãs, Mercúrio ou Hermes do mundo greco-romano e a Anúbis, Deus do Antigo Egipto.
Mercúrio para os romanos, ou Hermes para os gregos era o mensageiro dos Deuses, mas também o condutor dos mortos para o Hades, o mundo subterrâneo, para onde os antigos acreditavam que iam as pessoas que morriam.
Detalhe do Livro dos Mortos, mostrando o Julgamento das Almas. British Museum. © Trustees of the British Museum. |
Mas também o Cristianismo, que nos seus primeiros tempos se propagou sobretudo na metade oriental do Império Romano, nomeadamente no Egipto, substitui-se aos milenares cultos do País dos Faraós e assimilou elementos da antiga religião egípcia. Para os egípcios, Anúbis, o deus da morte presidia ao julgamento dos mortos, pesando as suas almas. Os que em vida tivessem sido maus eram devorados por Amnit, um demónio cujo corpo seria composto por partes de um leão, hipopótamo e crocodilo. Os bons eram conduzidos por Anúbis até ao além, a vida eterna. Portanto o Arcanjo S. Miguel deve muito muito a este Anúbis, cujo culto se extinguiu há muito.
Em suma, encantei-me por estes azulejos, com uma alminha do purgatório e um S. Miguel, na igreja matriz de Loulé, poéticas reminiscências de cultos de um mundo antigo, que floresceu na orla do mediterrâneo, há já uns milhares de anos.
Alguma bibliografia:
Iconographie de l'árt chrétien / Louis Réau. Paris. PUF, 1956