sábado, 23 de março de 2024

As incursões de Paiva Couceiro, um quarto secreto e Liberal Sampaio



Na família Montalvão conservou-se a memória de que o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, durante as incursões de Paiva Couceiro, tinha sido perseguido pelos republicanos. Segundo a tradição, teria instigado um motim popular na aldeia de Outeiro Seco, depois para fugir à prisão, ter-se-ia escondido das tropas republicanas num quarto secreto no Solar da família Montalvão, até que fugiu para Espanha, onde viveu um ano, em Feces de Abajo, a Sul de Verin. Nessa localidade raiana, um Guarda Republicano tentou prende-lo e só não o conseguiu porque as autoridades espanholas intervieram. Segundo o meu pai, que registou por escrito toda a memória familiar, estes acontecimentos teriam ocorrido entre 1911 e 1912, isto é, os anos das duas incursões monárquicas de Paiva Couceiro, em que houve uma verdadeira caça aos padres, acusados de colaborarem com as milícias de Paiva Couceiro ou instigarem as populações à revolta.

Planta do primeiro piso do solar de Outeiro Seco. O quarto secreto é o número 34


Além de o meu pai ter deixado por escrito estas memórias, contou-nos esta história muitas vezes e nós miúdos adorávamos o episódio do quarto secreto, que parecia uma aventura qualquer da romancista Enid Blyton ou tirada da série os Pequenos vagabundos. Contudo, o meu pai nunca nos revelou onde era exactamente o quarto secreto no Solar de Outeiro Seco, o que nos aumentava ainda mais a curiosidade e a fantasia. Já eu era teria trintas e muitos anos e o solar já tinha sido vendido à Câmara Municipal de Chaves, quando o meu pai me revelou finalmente a sua localização exacta na planta da casa. Não sei se o objectivo deste secretismo do meu pai era aumentar o interesse na narrativa ou se estaria convencido que um dia, por qualquer percalço da história voltaríamos a precisar de escondermo-nos lá e, portanto, era necessário manter o segredo. De facto, o pai sempre foi um homem previdente.

Mas, em todo o caso, a cronologia desta história era um bocadinho vaga e os episódios imprecisos, até que há cerca de um mês encontrei um escrito muito interessante no espólio. Trata-se de um documento antigo de 1815, um recibo pago pelo meu quinto avô, Miguel José de Montalvão (1764-1826), pela remessa de uma encomenda segura, para Lisboa, para Pedro de Sousa Canavarro. Neste papelinho, o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, fez um rascunho de uma carta, que me permitiu entender melhor estes acontecimentos e que no final deste texto, transcrevo integralmente . A carta foi dirigida a uma Senhora, Maria Isabel Figueiredo de Melo Garrido (1855-1925), viúva de um lente de filosofia da Universidade de Coimbra, António de Meireles Guedes Pereira Coutinho Garrido (1856-1895), portanto uma gente que o meu trisavô conheceu dos tempos em que estudou em Coimbra. Aliás, fala no filho desse casal, o Antoninho, que ao tempo desta carta tinha sido nomeado para superintendência da Penitenciária, mas que Liberal Sampaio acariciou na infância.

A filha de Isabel de Melo Garrido, Maria Rosa Meireles Coutinho Garrido estava casada com o então Ministro da Justiça, Álvaro Xavier de Castro (1878-1928) e basicamente Liberal Sampaio está a pedir à Senhora para meter uma cunha ao seu genro, para interceder por ele, pois foi pronunciado como conspirador em Espanha e que irá ser julgado em Braga.

Álvaro Xavier de Castro (1878-1928). Foto Wikipédia


Nesta carta, o meu trisavô explicava que estava inocente, argumentando que Fui para a povoação fronteiriça, Feces de Abajo, no partido de Verín, em 3 de Fevereiro de 1911, para livrar-me dos vexames de um processo instaurado pelo então Administrador de Chaves e hoje deputado evolucionista António Granjo, processo que por falta de provas está arquivado. Isto quer dizer que motim que o meu antepassado terá instigado na povoação de Outeiro Seco, ocorreu ainda antes da primeira incursão de Paiva Couceiro (4 de Outubro de 1911). De seguida, continua Estive fora da minha casa perto de ano e meio sem praticar um único facto que tornasse suspeito de auxiliar corporal ou moralmente qualquer tentativa de rebelião como atestam as autoridades de Verin e Chaves. Não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa. Portanto terá saído de Portugal em Fevereiro de 1911 e terá regressado antes de Julho de 1912, que é quando se dá a segunda incursão de Paiva Couceiro, que com as suas milícias atacou e sitiou Chaves.

Também nesta carta, transparece um certo desespero e aflição do meu trisavô, pois já tinha 67 anos e sabia que seria julgado num Tribunal em Braga e talvez tenha feito um rascunho da carta, pois sabia que era necessário escrever um texto muito cauteloso e bem feito, pois dele poderia depender a sua sobrevivência.
Liberal Sampaio contava já com 67 anos no tempo destes episódios


Este rascunho, não está datado, mas pelos acontecimentos descritos, é possível saber que foi escrito no ano de 1913, quando Álvaro Xavier de Castro foi ministro da Justiça e responsável pela criação de três tribunais militares especialmente formados para julgamento de crimes de rebelião, constituídos em Lisboa, Coimbra e Braga. Esses tribunais tiveram uma actividade intensa e nesse ano de 1913, as prisões e julgamentos de monárquicos acusados de conspirar contra o regime sucediam-se uns atrás dos outros. Folhei todos os números da Ilustração Portuguesa desse ano e há sempre notícias de militares de alta parente julgados, condessas, marquesas a entrarem no tribunal e ainda individualidades com nomes sonantes, mas também de soldados rasos, operários, tipógrafos, vendedoras ambulantes, camponeses e tasqueiros a serem detidos. Uns apanhavam dois ou seis anos, mas outros eram condenados ao degredo em Angra do Heroísmo, nos Açores. Percebe-se, pois, a aflição do meu trisavô, a imaginar-se com 67 anos, num navio a caminho do degredo, na ilha Terceira no Forte de São João Baptista.

Creio que é mesmo possível saber o mês em que este rascunho foi escrito pois o meu avô, citou o diário de 17 de Novembro, isto é o Diário do Governo, de 17 de Novembro de 1913, cuja cópia consultei e contem os Éditos de dez dias citações de ausentes emitido pelo Tribunal de Guerra de Braga e onde o seu nome consta. Como deseja à Sra. D. Isabel as mais felizes e alegres festas, o rascunho terá sido escrito logo no início de Dezembro.

Quis então perceber exactamente de que o meu antepassado foi acusado, mas a leitura destes textos legais é sempre complicada para mim. Tenho dificuldade em entender o chamado oficialês a linguagem do Diário da República, além de que o número de réus foi quase na casa dos trezentos, de modo que a mesma acusação serviu para 80 ou 100 indivíduos. No entanto, creio que Liberal Sampaio foi acusado de auxiliar em Espanha, a organização do corpo expedicionário de Paiva Couceiro e cooperar naquela iniciativa em 1912. Em suma, a acusação refere-se ao tempo em que esteve refugiado em Espanha onde teria colaborado na organização da segunda incursão de Paiva Couceiro, que ocorreria em Julho de 1912.

Na carta à Sra. Dona Isabel de Melo Garrido, Liberal Sampaio defende-se dessa acusação, explicando que não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa e que teria sido incriminado por Arnaldo da Fonseca, cônsul em Verin, de 29 de Maio a 30 de Junho de 1912, que o terá confundido com o cura de Mairos, povoação nos arredores de Chaves. Insiste ainda na enormidade de que um guarda republicado o ter tentado deter em território espanhol, o que quase provocou um conflito luso-espanhol, episódio que narrou também e com mais de detalhes no periódico O Concelho de Chaves, nº10, de 18 de Maio de 1911. Segundo o meu antepassado, crescendo a altercação, chamando ele [o GNR] pelo camarada que seguia para Vila Verde e receando eu que descessem os carabineiros que armados estavam a uns 60 metros, o que daria lugar a um conflito pouco airoso para a minha querida pátria, resolvi recuar à virilidade, galgar o talude, e saltar ao rio, no qual tive o contratempo de cair e tomar um banho extemporâneo.

O Concelho de Chaves, nº10, de 18 de Maio de 1911


Quanto ao Julgamento do Tribunal militar de Braga, ao qual Liberal Sampaio deveria comparecer, não encontrei mais notícias sobre o assunto. Ou a cunha que ele meteu à Sra. Dona Isabel de Melo Garrido, sogra do ministro da Justiça, Álvaro Xavier de Castro, funcionou e ele foi dispensado de comparecer e imagino, que não foi só a esta Senhora, que o meu trisavô escreveu, pois era um homem que tinha uma rede de contactos de gente influente pelo país inteiro, ou o mais provável, limitou-se a esperar em sua casa a queda do governo. Com efeito, logo a 9 de Fevereiro de 1914, formou-se o 61º governo, de Bernardino Machado, mais moderado e nesse mesmo mês houve uma Proposta de lei da amnistia de 19 de Fevereiro, aprovada a 24, e os presos libertados logo no dia 22. A Amnistia abrangeu o desterro dos bispos[7]. Abrangeu 572 indivíduos presos e 1 700 emigrados. No ano a seguir, durante o governo de Pimenta de Castro, foi decretada ampla amnistia em 20 de Abril, alargando aquela que havia sido decretada no tempo do governo de Bernardino Machado. E com efeito, as acusações contra Liberal Sampaio parecem ter sido esquecidas, pois em 15 de Junho, Liberal Sampaio estava novamente a advogar, conforme notícia o nº 77 da Folha de Chaves.

Tudo isto, parece complicado, mas o período da Primeira República (1910-1926) foi muito complexo, com golpes de estado, intentonas, atentados à bomba, insurreições, três invasões militares e governos a sucederem-se uns aos outros a velocidade vertiginosa.

Os motins de Outeiro Seco. Texto publicado por Liberal Sampaio em A Folha, nº10, de 26 de fevereiro de 1911


Mas sintetizando toda esta história, ainda em finais de 1910, talvez durante o mês de Dezembro, ocorreu um motim popular em Outeiro Seco contra o regime republicano, pelo qual Liberal Sampaio foi responsabilizado e em consequência do qual foi perseguido pelas autoridades, refugiando-se no tal quarto secreto do solar e a 3 de Fevereiro de 1911, refugiu-se em Espanha, na povoação raiana de Feces de Abajo. Ao contrário do que eu acreditava, estes acontecimentos ocorreram antes da primeira incursão de Paiva Couceiro. Liberal Sampaio permaneceu em Espanha de Fevereiro de 1911 até mais ou menos Junho de 1912 e é essa estada em Espanha, que o tornará suspeito de ter colaborado na organização da Segunda Incursão de Paiva Couceiro (Julho de 1912). Será citado pelo Tribunal de Guerra de Braga a 17 de Novembro de 1913 e nessa altura terá talvez apanhado um susto valente. Contudo, logo em Fevereiro do ano seguinte o governo mudou e houve uma amnistia a 24 de Fevereiro e no ano seguinte, uma amnistia ainda mais ampla, de que o meu antepasso terá certamente beneficiado. A vida deste meu trisavô foi realmente romanesca.

Alguma bibliografia consultada:

Paiva Couceiro e a contra-revolução monárquica (1910-1919) / Artur Ferreira Coimbra. - Braga, 2000
Maria Isabel de Melo Garrido

Exma. Senhora muito da minha gratidão. Faço votos para que continue disfrutando mil venturas na companhia da sua ilustre família e que dignará apresentar os meus respeitos e saudades.

Estava para felicita-la pela nomeação do Antoninho para superintendência da Penitenciária, quando o Diário de 17 de Novembro trouxe a tristíssima notícia de que eu pronunciado como conspirador em Espanha, teria em breve de implorar sua carinhosa protecção ao velho que tantas vezes o acariciava na infância

Meu primeiro movimento, depois do espanto de me ver tão injustamente perseguido foi aproveitar-me da benevolência com que S. Exa., seu querido genro, Álvaro de Castro e extremosa filha D. Maria Rosa se dignaram honrar-me com a promessa da sua honrosíssima visita. A lembrança, porém, de que um pretendido inimigo da República seria repelido por um tão distinto ministro da mesma república me conteve.




Fiel sectário da máxima evangélica Dai a Deus o que é de Deus; e a César o que é de César – nada tenho feito contra o novo regime, que não ajudei a estabelecer, que não quis destruir e que sempre respeitei como padre que tem por missão acatar os poderes constituintes.

Fui para a povoação fronteiriça, Feces de Abajo, no partido de Verín, em 3 de Fevereiro de 1911, para livrar-me dos vexames de um processo instaurado pelo então Administrador de Chaves e hoje deputado evolucionista António Granjo, processo que por falta de provas está arquivado. Estive fora da minha casa perto de ano e meio sem praticar um único facto que tornasse suspeito de auxiliar corporal ou moralmente qualquer tentativa de rebelião como atestam as autoridades de Verin e Chaves. Não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa.

Porque é então serei pronunciado por haver preparado e acompanhando tal incursão?

Porque informando-me das novidades públicas em 16 de Setembro de 1911…comigo o falecido Luís de Ataíde publicou em as Novidades de 16 de setembro de 1911 uma conversa em que francamente manifestei a minha neutralidade entre monárquicos e republicanos e isto quase dez meses antes da tal invasão de 6 de Julho de 1912? Porque Arnaldo da Fonseca, cônsul em Verin desde 29 de Maio a 30 de Junho de 1912, depôs, que naquele tempo estava na Galiza trabalhando para a destruição do regime republicano o Liberal cura de Mairos, sendo certo que não apresenta facto nenhum comprovativo, que eu nunca fui cura de Mairos e que tal cura era nessa ocasião muito notável em Espanha e Portugal, porque havendo sido preso na raia pela Guarda Fiscal, o governo espanhol reclamou e obteve dos portugueses que ele fosse posto em liberdade, isto mais de um ano antes da falada incursão,

Estou inocente, aflige-me a dificuldade em me defender; e toda a minha esperança está na bondade de V. Exa. para comigo, juntando ao seu bom desejo o D. Maria Rosa empenhar ao Sr. Ministro da Justiça ou recomendar ao Promotor ad hoc Albano Justino Lopes Gonçalves, major do 8, directamente ou indirectamente pelo Governador Civil de Braga, que seja bem examinada a prova contra ou a favor, afim de ser feita a devida justiça.

Desejo-lhe as mais felizes e alegres festas em graças do senhor Jesus Cristo com mais um ano bem

Agradeço sumamente as finezas da última prova da bondade de V. Exa. para comigo, que não pude conter as lágrimas ao ver-me protegido por dois anjos; oxalá tenha a ocasião de a todos três significar de viva voz toda a minha gratidão.

Ainda não sei quando irei a Braga ser julgado como conspirador …visto assim, quem dos dezasseis aos vinte e dois anos lá passou a sua vida de estudante exemplar. Deus Misericordioso, que nos ensinou a retribuir o mal com o bem, pudesse a quem consciente ou inconscientemente me causou tantos desgostos e incómodos.

Dignar-se-á apresentar ao Antoninho meus sinceros parabéns pela hombridade e seu procedimento político

Sou com a máxima consideração e estima de V. Exa. amigo obrigado



sábado, 9 de março de 2024

Cabra amamentando um cabritinho: paliteiro da Vista Alegre



Apesar das juras que faço a mim próprio de não comprar mais trastes e velharias, numa das últimas feiras de Estremoz adquiri mais um paliteiro de porcelana. Os paliteiros são objectos muito apetecidos pelos coleccionadores e por essa razão, muitas vezes os vendedores pedem muito dinheiro por eles e como este estava a um preço muitíssimo convidativo e aproveitei a ocasião e lá voltei para a casa com o dito paliteiro. Também o comprei porque já tenho quatro paliteiros da Vista Alegre. Um deles, representa uma cabrinha sentada e o que consegui agora é no fundo, o par, representado a cabra a amamentar o cabritinho. Portanto, esta compra foi absolutamente necessária, ou pelo menos foi este o argumento, que forjei para mim próprio.

Este novo paliteiro é o par de outro que já tinha na minha colecção.


A figurinha não está marcada, mas é com toda a certeza da Vista Alegre. Esta fábrica produziu entre 1870 e 1921 esta figura em várias versões, umas brancas como esta e outras com diferentes pinturas. Basta consultar o site Avaluart para constatar como o mesmo molde foi sendo usado ao longo de 5 décadas pela Vista Alegre em diferentes acabamentos. Contudo, os modelos em branco, que encontrei no avaluart, bem como na obra Vista Alegre : porcelanas / Ilda Arez...[et al.]. - Lisboa : Inapa, 1989 apresentam a marca nº 20, usada entre 1870-1880. O meu paliteiro será eventualmente deste período, mas admito que poderá ser mais tardio. A Vista Alegre sempre foi uma casa conservadora e os mesmos modelos e decorações foram sendo usados ao longo de décadas a fio. Para quê mudar o que é bom e bonito.

Paliteiros da VA: cabra amamentando cria. Foto http://www.avaluart.com


Hoje em dia, um objecto como este é absolutamente inútil. Já ninguém palita os dentes e todos usamos o fio dental, mas eu ainda me recordo de ver nas mesas de todos os restaurantes paliteiros em porcelana, faiança, plástico ou vidro. Claro, eram coisas com um desenho funcional, não eram peças tão elaboradas como esta cabra, que amamenta a sua cria. Na época, em que esta cabrinha foi produzida, os palitos eram considerados objectos de civilidade e para perceber os encantos destas figurinhas, temos que as imaginar numa grande mesa posta com uma toalha de linho, enfeitada com uma qualquer renda, um serviço de jantar da Vista Alegre decorado com florinhas, num dia de festa, com toda a família reunida, numa qualquer casa antiga do Norte. Talvez por ter conhecido bem uma dessas casas, goste tanto destes paliteiros em porcelana.



sábado, 2 de março de 2024

Desvendado segredos de fotografias do século XIX ou a família de Liberal Sampaio



Mais uma vez o tema deste post é o meu trisavô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio (29-7-1846/29-10-1935), que manteve uma relação amorosa com uma fidalga da região de Chaves, minha trisavô, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902). Mas desta vez, irei escrever sobre a sua família, de que encontrei muitas referências em cartas. É certo, que no processo inquirição de génere de 1864-1866, consegui colher dados sobre os pais e os seus avós paternos e maternos, os primeiros de Soutelo, Chaves e os segundos de Antigo de Arcos, Sarraquinhos, Montalegre, mas tudo o resto estava muito confuso.





Em 20 de Novembro de 2018, tinha apresentado aqui no blog, uma fotografia de uma Senhora, tirada antes de 1874, que eu tomei como a mãe de Liberal Sampaio, mas estava enganado


Em 20 de Novembro de 2018, tinha apresentado aqui no blog, uma fotografia de uma Senhora, tirada antes de 1874, que eu tomei como a mãe de Liberal Sampaio e em cujo registo de óbito era referida como viúva. Porém, quando comecei a tratar o espólio familiar fui encontrando cartas depois de 1874 com referências ao pai de Liberal Sampaio e até mesmo uma missiva deste ao seu pai, datada de 18 de Julho de 1891 anunciando-lhe a conclusão da licenciatura nos cursos de Teologia e Direito. Mais ainda, no espólio familiar, apareceu uma certidão de óbito datada de 3 de Março de 1906 de Maria José Ferreira, falecida a 13 de Janeiro de 1896, em Outeiro Seco, com 76 anos, viúva, que ficou de António Rodrigues Sampaio, lavradora. Portanto, o pai de Liberal Sampaio, o António Rodrigues Sampaio, sobreviveu à primeira mulher, casou uma segunda vez e vivia em Outeiro Seco, aldeia onde o filho era pároco. Também no mesmo espólio, consta um documento, a Distribuição da derrama em dinheiro para côngrua do pároco. Concelho de Chaves, freguesia de Outeiro Seco, 1876-1877. Neste documento estatístico, certamente coligido por Liberal Sampaio, onde constam todos os chefes de família, que contribuíam para o sustento do pároco, surge o nome do meu quarto avô, António Rodrigues Sampaio. Liberal Sampaio chegou a Outeiro Seco em 1873 e pelo menos em 1876, o seu pai já tinha deixado, o Antigo de Arcos, em Sarraquinhos e residia na mesma povoação do filho.

Distribuição da derrama em dinheiro para côngrua do pároco. Concelho de Chaves, freguesia de Outeiro Seco, 1876-1877. António Rodrigues Sampaio está assinalado com uma seta.


No post de 20 de Novembro de 2018, em que tinha publicado um retrato, que acreditava ser a mãe, de Liberal Sampaio, uma Senhora, Rute Reimão, comentou este post, em Novembro do ano passado, informando-me que em vez da Maria Gonçalves Liberal, se tratava de Isabel Gonçalves Liberal, falecida a 11 de Setembro de 1875, em Chaves e que casou duas vezes, a primeira com José Teixeira de Magalhães e em segundas núpcias com Alexandre José Fernandes. Muito provavelmente, aquela fotografia era uma irmã da mãe de Liberal Sampaio, uma tia.

Achei que tudo isto estava uma grande confusão e que a única solução era traçar uma genealogia dos Gonçalves Liberal, de Antigo de Arcos e dos Sampaio, de Soutelo e lancei-me aos registos paroquiais, mas foi um trabalho diabólico. Estes homens e mulheres eram simples lavradores que deixaram poucos e escassos traços nos arquivos. Viviam da terra nas suas aldeias isoladas, se morriam sem deixar testamento, não se faziam processos de inventário obrigatório, também não ocuparam cargos na administração, nem tinham pleitos jurídicos com arrendatários, que fossem a tribunal. Os próprios párocos, nos registos de baptismo, casamento e óbito, lavraram os registos referentes a esta gente simples de forma apressada e por vezes até mesmo trapalhona com os nomes corrompidos ou incompletos. Ao contrário do que sucedia com as gentes da nobreza, ou titulares de cargos públicos importantes, onde os padres registavam tudo cuidadosamente, com todos os nomes e títulos, dando-se mesmo ao luxo de desenhar com algum capricho as letras maiúsculas. Ao ler os registos desta gente de algo até imaginamos o padre aos salamaleques na igreja, quando entrava o Senhor Brigadeiro ou os Pizarro, os Morais e Castro, os Campilhos ou os Montalvões para se casarem ou baptizar os seus rebentos.

Com um traço negro estão assinaladas as terras onde estas famílias residiram 


Mas, voltando assunto, depois destes trabalhos, consegui reconstituir as datas fundamentais da vida do pai de Liberal Sampaio. Nasceu a 7 de Março de 1824 na freguesia de Santa Maria de Soutelo. Casou a 6 de Novembro de 1845 em Antigo de Sarraquinhos com Maria Gonçalves Liberal. Antigo de Arcos e Soutelo, embora em concelhos distintos, são aldeias próximas e imagino que o António e a Maria se terão conhecido na festa do orago de uma das terras, ou na Feira dos Santos em Chaves. Deste casamento nasceu o meu trisavô, o José Rodrigues Liberal Sampaio, em 29-7-1846 e ainda uma irmã, Ana, em 23-03-1848. A mãe de Liberal Sampaio morreu a 13-1-1871, com 68 anos, na sua casa nº 176, Antigo de Sarraquinhos e foi identificada como lavradora. O António Rodrigues Sampaio não ficou viúvo muito tempo e casou uma segunda vez, em Outeiro Seco, a 23 de Setembro de 1874 com Maria José Ferreira, natural de Eiras, freguesia de Sta. Maria Maior, Chaves, viúva de João José Pereira. Deste casamento não houve certamente filhos pois este meu quarto avô tinha nessa data 52 anos e ela 56. É certo, que as idades apontadas nos registos paroquiais são muitas vezes aproximadas, pois esta gente nem sabia bem a idade, mas os números devem ser próximos. Este meu tetravô era alfabetizado e no registo de casamento assinou o seu nome, embora de forma pouco segura e atabalhoada. Faleceu em 27-10-1893 em Outeiro seco e a segunda mulher viveu até 1896.

A assinatura de António Rodrigues Sampaio


Quanto à mãe de Liberal Sampaio, a Maria Gonçalves Liberal, terá nascido na primeira década do século XIX, filha de António Gonçalves Liberal e Ana Gonçalves de Lage, mas os registos de baptismo dessa época da paróquia de Sarraquinhos não estão digitalizados e não consegui determinar o ano do seu nascimento, mas por registos posteriores, consegui perceber que teve pelo menos mais três irmãos, o Manuel João Gonçalves Liberal, que se terá feito padre em 1826-02-08, conforme a inquirição de génere do Arquivo Distrital de Braga, uma Antónia Gonçalves Liberal, que casou com um tal Joaquim Marques e cuja existência descobri através do assento de baptismo de uma neta, a 18 de Janeiro de 1838, em Chaves e finalmente a Isabel, falecida a 11 de Setembro de 1875, de quem eu tenho um retrato. Não faço a menor ideia porque ordem nasceram, pois como referi, os assentos de baptismo 1768-1818 não estão digitalizados.

Isabel Gonçalves Liberal, tia do meu trisavô


Mas é da última, a Isabel Gonçalves Liberal, tia do meu trisavô, de que me irei ocupar. Esta Senhora terá casado na década de 20 do século XIX, com um tal Francisco Teixeira, natural de Sarraquinhos e que era ferrador de cavalaria nº 6, um posto militar e estaria ao serviço num dos quarteis de Chaves. Este casal viveu em Chaves e teve uma prole numerosa entre 1828 e 1839, conforme se pode ver pela genealogia que ilustra este post. Umas das filhas, a Ana Maria, nascida a 28-11-1834 casou muito bem a 7 de Agosto de 1854, com tal um António Vieira Basto, negociante e curiosamente a Ana já constava com o apelido Teixeira de Magalhães, enquanto nos registos anteriores, esta gente aparece simplesmente referida como Teixeira. As testemunhas foram gente de condição, Manuel José Pereira Coelho, negociante e sua mulher Dona Rita Ferreira Montalvão, minha tia quarta avô, de outro lado da família, o da fidalguia, o que parece reforçar a ideia da ascensão social desta família. Este casamento fez-me entender porque é que na correspondência recebida por Liberal Sampaio encontro umas quantas cartas de pessoas com o apelido Vieira Basto e Magalhães Basto, que o tratam por primo. 

O padrinho do pequeno António foi Francisco de Teixeira de Magalhães, doutor em medicina, irmão da mãe do baptizado e residente no Rio de Janeiro


No assento de baptismo de um dos filhos do casal António Vieira Basto e Ana Teixeira de Magalhães, o do pequeno António, a 15-2-1866, há um dado muito interessante. O padrinho foi Francisco de Teixeira de Magalhães, doutor em medicina, irmão da mãe do baptizado e residente no Rio de Janeiro. Ora, eu tenho um retrato deste senhor da Fotografia Alemã, Henschel & Benque, do Rio de Janeiro, tirada entre 1870 e 1877, num dos álbuns carte-de-visite da família e que sempre me fez imensa confusão pois não conseguia perceber qual teria sido a sua ligação com a família Montalvão ou com Liberal Sampaio. Sabia que era provavelmente médico, porque é a única personagem identificada com o título de Dr., apesar de esse álbum estar cheio de retratos de condiscípulos do meu trisavô, licenciados em Coimbra. Creio que na altura o Dr. ainda estava só reservado aos médicos. Portanto, este Dr. Francisco Teixeira de Magalhães, nascido a 19-10-1828 em Chaves era primo direito do Liberal Sampaio e filho da Isabel Gonçalves Liberal.


Médico no Rio de Janeiro, o Dr. Francisco Magalhães era primo direito do meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio


Bem sei que este levantamento genealógico é um sempre um bocadinho fastidioso para quem o está ler do outro lado do monitor, mas quem como eu está a tratar um espólio familiar, que incluí cartas, recortes de jornais, documentos notariais e fotografias, este estudo permite-me entender melhor quem foram os autores daquelas cartas, que relações mantiveram entre si e a ainda consegui através dele resgatar dois velhos retratos do esquecimento, mas sobretudo ajuda-me a compreender melhor Liberal Sampaio, esse antepassado, que a minha avó Mimi e o meu pai, me ensinaram a admirar desde muito cedo e é também a minha forma de continuar ligado a eles, que iniciaram o tratamento deste espólio.

A genealogia de Liberal Sampaio