Na família Montalvão conservou-se a memória de que o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, durante as incursões de Paiva Couceiro, tinha sido perseguido pelos republicanos. Segundo a tradição, teria instigado um motim popular na aldeia de Outeiro Seco, depois para fugir à prisão, ter-se-ia escondido das tropas republicanas num quarto secreto no Solar da família Montalvão, até que fugiu para Espanha, onde viveu um ano, em Feces de Abajo, a Sul de Verin. Nessa localidade raiana, um Guarda Republicano tentou prende-lo e só não o conseguiu porque as autoridades espanholas intervieram. Segundo o meu pai, que registou por escrito toda a memória familiar, estes acontecimentos teriam ocorrido entre 1911 e 1912, isto é, os anos das duas incursões monárquicas de Paiva Couceiro, em que houve uma verdadeira caça aos padres, acusados de colaborarem com as milícias de Paiva Couceiro ou instigarem as populações à revolta.
Planta do primeiro piso do solar de Outeiro Seco. O quarto secreto é o número 34 |
Além de o meu pai ter deixado por escrito estas memórias, contou-nos esta história muitas vezes e nós miúdos adorávamos o episódio do quarto secreto, que parecia uma aventura qualquer da romancista Enid Blyton ou tirada da série os Pequenos vagabundos. Contudo, o meu pai nunca nos revelou onde era exactamente o quarto secreto no Solar de Outeiro Seco, o que nos aumentava ainda mais a curiosidade e a fantasia. Já eu era teria trintas e muitos anos e o solar já tinha sido vendido à Câmara Municipal de Chaves, quando o meu pai me revelou finalmente a sua localização exacta na planta da casa. Não sei se o objectivo deste secretismo do meu pai era aumentar o interesse na narrativa ou se estaria convencido que um dia, por qualquer percalço da história voltaríamos a precisar de escondermo-nos lá e, portanto, era necessário manter o segredo. De facto, o pai sempre foi um homem previdente.
Mas, em todo o caso, a cronologia desta história era um bocadinho vaga e os episódios imprecisos, até que há cerca de um mês encontrei um escrito muito interessante no espólio. Trata-se de um documento antigo de 1815, um recibo pago pelo meu quinto avô, Miguel José de Montalvão (1764-1826), pela remessa de uma encomenda segura, para Lisboa, para Pedro de Sousa Canavarro. Neste papelinho, o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, fez um rascunho de uma carta, que me permitiu entender melhor estes acontecimentos e que no final deste texto, transcrevo integralmente . A carta foi dirigida a uma Senhora, Maria Isabel Figueiredo de Melo Garrido (1855-1925), viúva de um lente de filosofia da Universidade de Coimbra, António de Meireles Guedes Pereira Coutinho Garrido (1856-1895), portanto uma gente que o meu trisavô conheceu dos tempos em que estudou em Coimbra. Aliás, fala no filho desse casal, o Antoninho, que ao tempo desta carta tinha sido nomeado para superintendência da Penitenciária, mas que Liberal Sampaio acariciou na infância.
A filha de Isabel de Melo Garrido, Maria Rosa Meireles Coutinho Garrido estava casada com o então Ministro da Justiça, Álvaro Xavier de Castro (1878-1928) e basicamente Liberal Sampaio está a pedir à Senhora para meter uma cunha ao seu genro, para interceder por ele, pois foi pronunciado como conspirador em Espanha e que irá ser julgado em Braga.
Álvaro Xavier de Castro (1878-1928). Foto Wikipédia |
Nesta carta, o meu trisavô explicava que estava inocente, argumentando que Fui para a povoação fronteiriça, Feces de Abajo, no partido de Verín, em 3 de Fevereiro de 1911, para livrar-me dos vexames de um processo instaurado pelo então Administrador de Chaves e hoje deputado evolucionista António Granjo, processo que por falta de provas está arquivado. Isto quer dizer que motim que o meu antepassado terá instigado na povoação de Outeiro Seco, ocorreu ainda antes da primeira incursão de Paiva Couceiro (4 de Outubro de 1911). De seguida, continua Estive fora da minha casa perto de ano e meio sem praticar um único facto que tornasse suspeito de auxiliar corporal ou moralmente qualquer tentativa de rebelião como atestam as autoridades de Verin e Chaves. Não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa. Portanto terá saído de Portugal em Fevereiro de 1911 e terá regressado antes de Julho de 1912, que é quando se dá a segunda incursão de Paiva Couceiro, que com as suas milícias atacou e sitiou Chaves.
Também nesta carta, transparece um certo desespero e aflição do meu trisavô, pois já tinha 67 anos e sabia que seria julgado num Tribunal em Braga e talvez tenha feito um rascunho da carta, pois sabia que era necessário escrever um texto muito cauteloso e bem feito, pois dele poderia depender a sua sobrevivência.
Liberal Sampaio contava já com 67 anos no tempo destes episódios |
Este rascunho, não está datado, mas pelos acontecimentos descritos, é possível saber que foi escrito no ano de 1913, quando Álvaro Xavier de Castro foi ministro da Justiça e responsável pela criação de três tribunais militares especialmente formados para julgamento de crimes de rebelião, constituídos em Lisboa, Coimbra e Braga. Esses tribunais tiveram uma actividade intensa e nesse ano de 1913, as prisões e julgamentos de monárquicos acusados de conspirar contra o regime sucediam-se uns atrás dos outros. Folhei todos os números da Ilustração Portuguesa desse ano e há sempre notícias de militares de alta parente julgados, condessas, marquesas a entrarem no tribunal e ainda individualidades com nomes sonantes, mas também de soldados rasos, operários, tipógrafos, vendedoras ambulantes, camponeses e tasqueiros a serem detidos. Uns apanhavam dois ou seis anos, mas outros eram condenados ao degredo em Angra do Heroísmo, nos Açores. Percebe-se, pois, a aflição do meu trisavô, a imaginar-se com 67 anos, num navio a caminho do degredo, na ilha Terceira no Forte de São João Baptista.
Creio que é mesmo possível saber o mês em que este rascunho foi escrito pois o meu avô, citou o diário de 17 de Novembro, isto é o Diário do Governo, de 17 de Novembro de 1913, cuja cópia consultei e contem os Éditos de dez dias citações de ausentes emitido pelo Tribunal de Guerra de Braga e onde o seu nome consta. Como deseja à Sra. D. Isabel as mais felizes e alegres festas, o rascunho terá sido escrito logo no início de Dezembro.
Quis então perceber exactamente de que o meu antepassado foi acusado, mas a leitura destes textos legais é sempre complicada para mim. Tenho dificuldade em entender o chamado oficialês a linguagem do Diário da República, além de que o número de réus foi quase na casa dos trezentos, de modo que a mesma acusação serviu para 80 ou 100 indivíduos. No entanto, creio que Liberal Sampaio foi acusado de auxiliar em Espanha, a organização do corpo expedicionário de Paiva Couceiro e cooperar naquela iniciativa em 1912. Em suma, a acusação refere-se ao tempo em que esteve refugiado em Espanha onde teria colaborado na organização da segunda incursão de Paiva Couceiro, que ocorreria em Julho de 1912.
Na carta à Sra. Dona Isabel de Melo Garrido, Liberal Sampaio defende-se dessa acusação, explicando que não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa e que teria sido incriminado por Arnaldo da Fonseca, cônsul em Verin, de 29 de Maio a 30 de Junho de 1912, que o terá confundido com o cura de Mairos, povoação nos arredores de Chaves. Insiste ainda na enormidade de que um guarda republicado o ter tentado deter em território espanhol, o que quase provocou um conflito luso-espanhol, episódio que narrou também e com mais de detalhes no periódico O Concelho de Chaves, nº10, de 18 de Maio de 1911. Segundo o meu antepassado, crescendo a altercação, chamando ele [o GNR] pelo camarada que seguia para Vila Verde e receando eu que descessem os carabineiros que armados estavam a uns 60 metros, o que daria lugar a um conflito pouco airoso para a minha querida pátria, resolvi recuar à virilidade, galgar o talude, e saltar ao rio, no qual tive o contratempo de cair e tomar um banho extemporâneo.
Quanto ao Julgamento do Tribunal militar de Braga, ao qual Liberal Sampaio deveria comparecer, não encontrei mais notícias sobre o assunto. Ou a cunha que ele meteu à Sra. Dona Isabel de Melo Garrido, sogra do ministro da Justiça, Álvaro Xavier de Castro, funcionou e ele foi dispensado de comparecer e imagino, que não foi só a esta Senhora, que o meu trisavô escreveu, pois era um homem que tinha uma rede de contactos de gente influente pelo país inteiro, ou o mais provável, limitou-se a esperar em sua casa a queda do governo. Com efeito, logo a 9 de Fevereiro de 1914, formou-se o 61º governo, de Bernardino Machado, mais moderado e nesse mesmo mês houve uma Proposta de lei da amnistia de 19 de Fevereiro, aprovada a 24, e os presos libertados logo no dia 22. A Amnistia abrangeu o desterro dos bispos[7]. Abrangeu 572 indivíduos presos e 1 700 emigrados. No ano a seguir, durante o governo de Pimenta de Castro, foi decretada ampla amnistia em 20 de Abril, alargando aquela que havia sido decretada no tempo do governo de Bernardino Machado. E com efeito, as acusações contra Liberal Sampaio parecem ter sido esquecidas, pois em 15 de Junho, Liberal Sampaio estava novamente a advogar, conforme notícia o nº 77 da Folha de Chaves.
Tudo isto, parece complicado, mas o período da Primeira República (1910-1926) foi muito complexo, com golpes de estado, intentonas, atentados à bomba, insurreições, três invasões militares e governos a sucederem-se uns aos outros a velocidade vertiginosa.
Os motins de Outeiro Seco. Texto publicado por Liberal Sampaio em A Folha, nº10, de 26 de fevereiro de 1911 |
Mas sintetizando toda esta história, ainda em finais de 1910, talvez durante o mês de Dezembro, ocorreu um motim popular em Outeiro Seco contra o regime republicano, pelo qual Liberal Sampaio foi responsabilizado e em consequência do qual foi perseguido pelas autoridades, refugiando-se no tal quarto secreto do solar e a 3 de Fevereiro de 1911, refugiu-se em Espanha, na povoação raiana de Feces de Abajo. Ao contrário do que eu acreditava, estes acontecimentos ocorreram antes da primeira incursão de Paiva Couceiro. Liberal Sampaio permaneceu em Espanha de Fevereiro de 1911 até mais ou menos Junho de 1912 e é essa estada em Espanha, que o tornará suspeito de ter colaborado na organização da Segunda Incursão de Paiva Couceiro (Julho de 1912). Será citado pelo Tribunal de Guerra de Braga a 17 de Novembro de 1913 e nessa altura terá talvez apanhado um susto valente. Contudo, logo em Fevereiro do ano seguinte o governo mudou e houve uma amnistia a 24 de Fevereiro e no ano seguinte, uma amnistia ainda mais ampla, de que o meu antepasso terá certamente beneficiado. A vida deste meu trisavô foi realmente romanesca.
Alguma bibliografia consultada:
Paiva Couceiro e a contra-revolução monárquica (1910-1919) / Artur Ferreira Coimbra. - Braga, 2000
Maria Isabel de Melo Garrido
Exma. Senhora muito da minha gratidão. Faço votos para que continue disfrutando mil venturas na companhia da sua ilustre família e que dignará apresentar os meus respeitos e saudades.
Estava para felicita-la pela nomeação do Antoninho para superintendência da Penitenciária, quando o Diário de 17 de Novembro trouxe a tristíssima notícia de que eu pronunciado como conspirador em Espanha, teria em breve de implorar sua carinhosa protecção ao velho que tantas vezes o acariciava na infância
Meu primeiro movimento, depois do espanto de me ver tão injustamente perseguido foi aproveitar-me da benevolência com que S. Exa., seu querido genro, Álvaro de Castro e extremosa filha D. Maria Rosa se dignaram honrar-me com a promessa da sua honrosíssima visita. A lembrança, porém, de que um pretendido inimigo da República seria repelido por um tão distinto ministro da mesma república me conteve.
Fiel sectário da máxima evangélica Dai a Deus o que é de Deus; e a César o que é de César – nada tenho feito contra o novo regime, que não ajudei a estabelecer, que não quis destruir e que sempre respeitei como padre que tem por missão acatar os poderes constituintes.
Fui para a povoação fronteiriça, Feces de Abajo, no partido de Verín, em 3 de Fevereiro de 1911, para livrar-me dos vexames de um processo instaurado pelo então Administrador de Chaves e hoje deputado evolucionista António Granjo, processo que por falta de provas está arquivado. Estive fora da minha casa perto de ano e meio sem praticar um único facto que tornasse suspeito de auxiliar corporal ou moralmente qualquer tentativa de rebelião como atestam as autoridades de Verin e Chaves. Não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa.
Porque é então serei pronunciado por haver preparado e acompanhando tal incursão?
Porque informando-me das novidades públicas em 16 de Setembro de 1911…comigo o falecido Luís de Ataíde publicou em as Novidades de 16 de setembro de 1911 uma conversa em que francamente manifestei a minha neutralidade entre monárquicos e republicanos e isto quase dez meses antes da tal invasão de 6 de Julho de 1912? Porque Arnaldo da Fonseca, cônsul em Verin desde 29 de Maio a 30 de Junho de 1912, depôs, que naquele tempo estava na Galiza trabalhando para a destruição do regime republicano o Liberal cura de Mairos, sendo certo que não apresenta facto nenhum comprovativo, que eu nunca fui cura de Mairos e que tal cura era nessa ocasião muito notável em Espanha e Portugal, porque havendo sido preso na raia pela Guarda Fiscal, o governo espanhol reclamou e obteve dos portugueses que ele fosse posto em liberdade, isto mais de um ano antes da falada incursão,
Estou inocente, aflige-me a dificuldade em me defender; e toda a minha esperança está na bondade de V. Exa. para comigo, juntando ao seu bom desejo o D. Maria Rosa empenhar ao Sr. Ministro da Justiça ou recomendar ao Promotor ad hoc Albano Justino Lopes Gonçalves, major do 8, directamente ou indirectamente pelo Governador Civil de Braga, que seja bem examinada a prova contra ou a favor, afim de ser feita a devida justiça.
Desejo-lhe as mais felizes e alegres festas em graças do senhor Jesus Cristo com mais um ano bem
Agradeço sumamente as finezas da última prova da bondade de V. Exa. para comigo, que não pude conter as lágrimas ao ver-me protegido por dois anjos; oxalá tenha a ocasião de a todos três significar de viva voz toda a minha gratidão.
Ainda não sei quando irei a Braga ser julgado como conspirador …visto assim, quem dos dezasseis aos vinte e dois anos lá passou a sua vida de estudante exemplar. Deus Misericordioso, que nos ensinou a retribuir o mal com o bem, pudesse a quem consciente ou inconscientemente me causou tantos desgostos e incómodos.
Dignar-se-á apresentar ao Antoninho meus sinceros parabéns pela hombridade e seu procedimento político
Sou com a máxima consideração e estima de V. Exa. amigo obrigado