domingo, 12 de março de 2023

Burgueses, fidalgos e brasileiros na Madalena, Chaves

Foto Universal, Rua da Cedofeita, Porto.  1916

Recentemente, comecei a explorar o interior uma caixa de papelão, cheia de fotografias antigas, que trouxe de casa do meu pai, após a sua morte. Há um núcleo de retratos, mais antigo, uns ainda do século XIX, outros tirados logo início do século XX. Quando se abre estas caixas com fotografias, há tanto tempo fechadas, a primeira reacção é de pânico e interrogamo-nos. Quem é esta gente, como é que as vou identificar será que vou deixar cair estes rostos, que pareciam tão vivos, no esquecimento perpétuo?

Mas, passado esse momento de aflição, fui rever todos os elementos, que o meu pai compilou pacientemente, quer da família, quer dos ramos colaterais, com pequenos apontamentos biográficos e cópias de fotografias e apercebi-me que este núcleo fotográfico dizia respeito aos Alves, família burguesa e abastada do bairro da Madalena em Chaves, que se ligou aos Montalvões através do casamento Ana da Conceição de Morais Alves (1881-1974) / José Maria Ferreira Montalvão (1878-1965) em 1903. A família Montalvão era antiga, com pergaminhos, vivia numa casa com pedra de armas e detinha extensas propriedades rurais, pelo menos à escala transmontana e os Alves eram burgueses ricos, de modo que através do casamento dos meus bisavós, juntou-se o nome ao dinheiro.




A primeiro fotografia data de 1916 e foi tirada na Foto Universal, na Rua da Cedofeita, no Porto e é um retrato de grupo dos Alves e dos Montalvões e identifiquei aqui a figura número 1, como a minha bisavô Aninhas (Ana da Conceição de Morais Alves), a nº 2 é o marido, o José Maria Ferreira Montalvão, com um certo ar de fidalgo marialva, a 3, é o seu sogro, o Francisco Luís Alves, que foi director do extinto Banco de Chaves, os jovem nºs 4 e 5, não os consegui identificar, a 6 é a tia Marica (Maria da Conceição Alves, 1876-1956), a tal senhora que viveu um amor contrariado com um jovem, que veio a ser o Monsenhor Alves da Cunha, o 7 é o irmão da Maricas e da Aninhas, o meu tio bisavô Luís da Conceição Morais Alves, advogado e que casou com a 16 de Janeiro de 1914 com Alice Júlia de Macedo de Andrade Couto Alves, a figura nº 8. Na correspondência contemporânea desta fotografia era designada pela família como Alicinha.

Luís da Conceição Morais Alves (8-12-1884/1-11-1931), meu tio bisavô

Há uns anos, no funeral da prima Lídia, no Porto, encontrei um senhor já de uma certa idade, descendente destes Alves, o primo Luís M. Alves de Oliveira, que conhecia o meu blog e estivemos a conversar sobre a história da família. Ocasiões tristes, os funerais têm sempre este lado social de permitir o reencontro de parentes que há muito que não se viam ou quem sequer se conheciam. Muito gentilmente o primo Luís M. Alves enviou-me algumas fotografias antigas dos Alves, acompanhadas de algumas explicações muito curiosas. Mas as imagens remetidas eram de péssima qualidade e como o primo tinha sido tão simpático, não tive coragem de lhe responder que nada daquilo poderia ser publicado no blog, mas o e-mail foi religiosamente arquivado.

Quando comecei a tratar deste núcleo dos Alves, tratei de recuperar este e-mail de 2013, com informações úteis e percebi, que tinha os originais de duas das tais fotos de má qualidade, que o primo me enviou.

Baptizado da pequena Antónia Amélia em 7 de Janeiro de 1915. Sem marca de fotógrafo

A primeira fotografia enviada pelo meu parente foi tirada por ocasião do baptizado da pequena Antónia Amélia, em 7 de Janeiro de 1915, primeira filha do casal, Luís Alves e Alice. O meu primo contou-me um pouco da história da família desta tia-bisavó, a Alice. O seu pai, que vemos ao centro na foto com um ar muito digno, era Cônsul do Brasil na Corunha e a tia Alice apesar de ter nascido no Porto, tinha nacionalidade brasileira. 


O meu tio bisavô Luís Alves com os Andrade Couto e as suas duas filhas pequenas. Sem data, nem marca de fotógrafo.

Na segunda fotografia, onde além da pequena Antónia Amélia, se encontra também a segunda filha do casal, a Elsa, constam ainda os irmãos da tia Alice, Carlos Couto, que trabalhou no Banco Nacional Ultramarino, na Praça da Liberdade no Porto e o João, que nas palavras do meu primo, era bon vivant, que levou a vida a viajar pelo Mundo. Segundo ainda o meu primo, a família da tia Alice era originária do Rio Grande do Sul, no Brasil.

Fiquei cheio de curiosidade, pressentindo que esta família da tia bisavó Alice, eram daqueles brasileiros de torna-viagem. Gente que partiu para o Brasil, regressou rica, abrindo negócios em Portugal, construindo casas imponentes, mas que mantinha um pé cá e outro lá, para cuidar dos seus interesses económicos nos dois países em simultâneo. Mas como poderia eu saber mais alguma coisa sobre esta família? 

Escrevi ao meu primo, pedindo mais elementos, mas não me respondeu e até fiquei inquieto, pensando se teria sobrevivido a esta pandemia horrível. Resolvi-me lançar numa busca desenfreada na net, nomeadamente nos catálogos arquivos distritais do Porto e Vila Real e percebi que teria que pesquisar pelo apelido de solteira da tia-bisavó Alice, Andrade Couto e de facto ao fim de umas quinze ou vinte tentativas, encontrei no Arquivo Municipal do Porto, um Termo declarativo de nacionalidade de João Ferreira de Andrade Couto, morador na Rua da Cedofeita, datado de 1909, em que naturalizava brasileiros seus filhos, Alice Júlia, nascida em 5 de Agosto de 1893 e Carlos, nascido em 13 de Dezembro de 1895, ambos na freguesia de Santo Ildefonso. Os dados coincidiam com a história contada pelo primo Luís M. Alves de Oliveira e resolvi consultar então no Arquivo Distrital do Porto, o ano de 1893, do livro de baptimos da Freguesia de Sto. Ildefonso, para saber mais sobre esta tia bisavô luso brasileira.


Alice Júlia de Macedo de Andrade Couto Alves (1893-1967)

Neste livro encontrei os seguintes dados, a Alicinha nasceu a 5 de Agosto de 1893, em Santo Ildefonso, Porto. Era filha de João Ferreira de Andrade Couto Júnior, bacharel em filosofia, natural de freguesia ignorada e de Júlia Macedo de Andrade Couto, natural da freguesia de S. Pedro, Rio Grande do Sul. Os pais residiam em St. Ildefonso, Porto. A Alice Júlia era neta paterna de João Ferreira de Andrade Couto e de Amélia Júlia Ferreira de Andrade e materna de Francisco José de Macedo e Maria Galvão de Macedo. Os padrinhos foram o Avô, João Ferreira de Andrade Couto casado, capitalista e Dona Ana de Macedo, solteira. Portanto, tudo continuava a bater certo, com os dados indicados pelo primo. 

Aproveitei e consultei igualmente, o Arquivo da Universidade Coimbra, onde há o registo da passagem do pai da Alice nos cursos de matemática e filosofia, onde é identificado como João Ferreira de Andrade Couto Júnior, natural do Rio de Janeiro. Este senhor tinha o mesmo nome do pai e por isso usava termo júnior, a seguir ao apelido, uma prática ainda hoje corrente no Brasil e rara em Portugal. Mas não parei e voltei ao Arquivo Municipal do Porto e descobri o testamento do avô da Alice, registado no Rio de Janeiro e que faleceu em 1894. O João Ferreira de Andrade Couto nasceu em Couto dos Cucujães, actual concelho de Oliveira de Azeméis em 7 de Janeiro de 1832 e deixou uma enorme fortuna, avaliada em duzentos e trinta contos de reis e que foi distribuída pelos seus 4 filhos.

Cônsul do Brasil na Corunha, João Ferreira de Andrade Couto Júnior posa com grande dignidade


Estes dados confirmaram o meu palpite de que estes Andrade Couto eram brasileiros de torna viagem e muito ricos. Também explicam que a primeira fotografia tenha sido tirada na Foto Fernandes, na Rua da Cedofeita, no Porto, pois estes Andrade Couto tinham por ali residência. É natural, que algum encontro de família, reunindo os Alves e os Andrade Couto e os Montalvões tenha ocorrido nessa casa do Porto e o momento foi celebrado com uma ida ao estúdio fotográfico, para ficar para a posterioridade. 


João Andrade Couto foi um bon vivant.

Também consegui identificar, os dois jovens janotas, presentes na primeira e última fotografia, o Carlos e o João Andrade Couto e perceber porque é este último foi um bon vivant. Dispunha de parte da fortuna, que o avô, João Ferreira de Andrade Couto acumulou nas terras do Brasil e entreve-se a goza-la. Quanto às duas senhoras mais velhas das duas fotografias, segundo o meu primo, aquela que consta duas fotografias, seria a sua bisavô, a Júlia Macedo de Andrade Couto, mulher de como João Ferreira de Andrade Couto Júnior, mas parece-me bastante mais velha que o marido. A doce senhora de cabelos brancos do segundo retrato não faço a menor ideia quem seja.

Júlia Macedo de Andrade Couto?

Enfim, para rematar, estes Alves, que se cruzaram com os Andrade Couto, viviam paredes meias com a casa de Chaves da família Montalvão, no bairro da Madalena. Conta-se até, que uns vinte ou vinte e cinco anos depois destas fotografias, a filha mais nova de José Maria Ferreira Montalvão e da Aninhas enamorou-se de um jovem, que os país consideraram indesejável. Mas, com a cumplicidade da tia Alice e de uma das suas filhas, a Elsa, o pretendente indesejado era recebido na casa dos Alves e ia para uma varanda de sacada e a um sinal qualquer combinado surgia da varanda da casa vizinha, a mais jovem filha dos Montalvões e os dois estavam ali uma ou duas horas, num verdadeiro namoro de janela.

A fotografias antigas têm sempre esta capacidade de contar histórias.

Esquema da genealogia dos Alves e Andrades Couto




Fontes consultadas:

Processo de inventário obrigatório, Luís da Conceição Morais Alves; Inventariante(s): Alice Júlia de Macedo de Andrade Couto Alves, 1931
Arquivo Distrital de Vila Real
CÓDIGO DE REFERÊNCIA
PT/ADVRL/JUD/TJCCHV/C-B/082/1061


Arquivo Municipal do Porto
CÓDIGO DE REFERÊNCIA
PT-CMP-AM/PUB/CMPRT/SG-SCN/161/A.PUB.2337


Livro de baptimos da Freguesia de Sto. Ildefonso, 1893
Arquivo Distrital de Vila Real
CÓDIGO DE REFERÊNCIA
PT-ADPRT-PRQ-PPRT12-001-0082_m0222


Documento/Processo, 1894/04/03 – 1894/04/03
Arquivo Municipal do Porto
PT-CMP-AM/PUB/ABOR/8/RT11873


João Ferreira de Andrade Couto Júnior
Arquivo da Universidade de Coimbra
CÓDIGO DE REFERÊNCIA
PT/AUC/ELU/UC-AUC/B/001-001/C/014415

domingo, 5 de março de 2023

Um concerto no ano de 1901 em Chaves



Já aqui apresentei esta fotografia deliciosa de um grupo musical, composto por meninas da boa sociedade flaviense, tirada mais ou menos por volta de 1900. Entre elas encontram-se a minha bisavó Aninhas, Ana da Conceição de Morais Alves (1881-1974), facilmente reconhecível pelo ar de bonequinha de porcelana e a sua irmã, Maria da Conceição Alves (1876-1956), a tia Marica. Foi através da minha bisavó Aninhas que os Alves se cruzaram com os Montalvões, através do seu casamento com o meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão, em 28 de Julho de 1903. 

Em pé, segurando o que eu penso ser um bandolim, está a minha bisavó Aninhas. Sentada, com o violino a tia Marica

Ainda a conheci, uma avozinha muito doce, que sempre que a visitávamos, na sua casa de Chaves, nos perguntava sempre quereis bolachinhas e lá se levantava ela para ir nos buscar uma caixa de folha de Flandres onde nos servia umas bolachas, parecidas com as cavacas de Torres Vedras. A tia Marica viveu na juventude um amor contrariado e nunca casou. Segundo a história, que ainda corre na família, enamorou-se por um jovem de condição social inferior à sua, mas como não teve coragem de enfrentar o pai, repudiou-o, e o moço desgostoso fez-se padre e mais tarde tornou-se o célebre monsenhor Manuel Alves da Cunha, que tanta importância teve na cidade de Luanda. Já aqui contei essa história em 15 de Fevereiro de 2010. Deste grupo musical, há mais 4 jovens que eu até agora não identificava e um Senhor mais velho em pé, que certamente foi o mestre, que ensinava estas meninas e dirigia as suas actuações.

Na altura, em que escrevi sobre esta fotografia, acreditava que estas jovens fariam parte de um grupo amador, que animaria as soirées ou as matinées nas casas das boas famílias flavienses. Hoje creio que este grupo seria o Grêmio Musical Flaviense, de que encontrei notícia da sua existência dia 5 de Julho de 1890 no jornal, O povo de Chaves : folha do povo e para o povo e ainda em no ano de 1895, na obra História Moderna e Contemporânea da Vila de Chaves de Júlio M. Machado.

Mas, a identidade das outras 4 donzelas era um mistério para mim, até que ao vasculhar algumas fotografias, que trouxe de casa do meu pai, num núcleo respeitante à família Alves, encontrei um daqueles retratos fantásticos, que só os fotógrafos do passado conseguiam captar. Duas jovens na flor da vida com aquelas roupas complicadas, em voga por volta de 1900, posaram, encostando a cabeça uma na outra e olhando divertidas para a câmara. Reconheci-as quase de imediato com sendo duas das participantes da fotografia de conjunto do grupo musical. 



No verso, a foto apresenta uma dedicatória manuscrita às minhas dilectas amigas, como prova de muita amizade, que lhe dedicamos e em recordação dos nossos dias felizes, offerecemos Maria Adelaide Alves Carneiro, Maria José Dias de Carvalho, Chaves, 29-12-901



Não sei se a ordem com que assinaram corresponde a da foto e Maria Adelaide será a jovem de vestes de cor clara e Maria José a de cores escuras ou se assinaram aleatoriamente. Em todo o caso, é certo que as duas se encontram no retrato de grupo e como os vestidos são iguais, também é certo que as duas fotografias tenham sido feitas no mesmo dia, numa semana ou duas antes 29 de Dezembro de 1901, data em que fotografia foi dedicada às suas amigas, a Aninhas e a Tia Marica.

A Maria José Dias de Carvalho e a Maria Adelaide Alves Carneiro

Tentei saber um pouco destas duas jovens com ar tão simpático. Se da Maria José Dias de Carvalho não consegui encontrar nada, pois é um nome mais comum, a Maria Adelaide Alves Carneiro casou em 11 de Fevereiro de 1911 com Francisco Gonçalves Carneiro e foi a mãe de dois homens, que muito marcaram a vida de Chaves do século XX, do médico Dr. Mário Carneiro, grande dinamizador das termas daquela cidade e ainda do Dr. Francisco Gonçalves Carneiro, advogado, mas que se dedicou à história e a arqueologia e foi um dos responsáveis pela instalação do Museu da Região Flaviense. O Dr. Mário Carneiro era visita mais ou menos frequente da casa da minha avó Mimi e ainda me recordo vagamente dele, um homem com modos muito suaves. Aliás em Chaves, era conhecido carinhosamente pelo carneirinho.

Desta fotografia dos dias felizes em 1901, falta-me agora conhecer a identidade do mestre e ainda das outras duas jovens, que continuo sem saber quem foram e no que se tornaram. Talvez desse lado do monitor, haja alguém que tenha outra fotografia igual e que nos conte o resto da história.




Bibliografia e links consultados:

Livro de Casamentos, 1901, Arquivo Distrital de vila Real


História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012

O povo de Chaves : folha do povo e para o povo. Chaves : Typographia Flaviense, 1890-1897

quinta-feira, 2 de março de 2023

Uma jovem bem comportada e uma fotógrafa menos bem comportada: retratos de família

Ana da Conceição de Morais Alves,

Todos aqueles que por aqui me acompanham, sabem que um dos temas recorrentes deste blog são os assuntos de história familiar. Publico fotografias, documentos e cruzo esses dados, com o que subsistiu na memória da família de acontecimentos ocorridos há 100 ou 150 anos. Alguns pensarão que são temas que só interessam à minha família e nem entenderão porque é os divulgo na net. Mas a história de uma família é feita de contactos sociais, profissionais e comerciais através de cartas ou de ainda troca de fotografias. No fundo, a história familiar é também a tentativa de reconstituição de uma rede social de uma região ou de um meio profissional e o seu interesse ultrapassa o mero estudo genealógico.

Precisamente a propósito das fotografias antigas, que aqui tenho publicado, por estes dias, troquei uma série de e-mails com Catarina Miranda, uma investigadora que está a desenvolver um projecto sobre uma mulher fotógrafa, uma tal Ana Maria Magalhães Rodrigues, activa na zona de Chaves nos finais do século XIX e inícios do século XX. Fiquei muito curioso, porque enfim, uma mulher fotógrafa era coisa rara. Naqueles tempos não havia muitas profissões sérias que uma mulher burguesa pudesse exercer para além de modista, capelista, chapeleira, professora primária e pouco mais.

Fui então verificar se nos álbuns carte-de-visite do meu trisavô e bisavô existiria algum retrato feito por Ana Maria Magalhães Rodrigues (1869-1937), mas nada encontrei. Contudo, tenho algumas provas em papel de outros retratos de família antigos, impressas a partir de um CD, com fotografias feitas pelo meu irmão sobre retratos antigos, que há cerca de vinte anos ou mais estariam em casa da minha tia Natália. E com efeito, descobri um retrato da minha bisavó Aninhas, muito jovem, cuja prova está marcada A. Rodrigues!

Ana da Conceição de Morais Alves. Fotografia A. Rodrigues


Pela indumentária e também por aquele ar de quem ainda espera tudo da vida, sempre achei que esta fotografia tinha sido tirada antes do seu casamento com o meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão, em 28 de Julho de 1903. A minha bisavó, Ana da Conceição de Morais Alves, nasceu em 28 de Maio de 1881 e neste retrato teria à volta de uns vinte anos. É certo, que sempre teve um certo ar de bonequinha de porcelana, que a fazia parecer mais nova.

Foto retirada de Ana Magalhães Rodrigues (1869-1937): a descoberta de uma fotógrafa portuguesa. / Nuno Resende. 2002


Consultei alguma informação disponível na net sobre esta fotógrafa Ana Maria Magalhães Rodrigues, e a sua actividade em Chaves está documentada precisamente a partir de 1903, através de um anúncio de jornal O Flaviense, de que se encontra em Chaves a conhecida fotografa Anna Magalhães Rodrigues, tendo montado o seu atelier, na rua da cadeia, nº 44, aonde todas as pessoas, que desejem utilisar-se dos seus serviços podem procura-la.. A minha bisavó nasceu e foi criada em Chaves e é pois natural que tivesse mandado fazer o seu retrato em 1903 no atelier da Ana Magalhães Rodrigues, quem sabe até se não seria para oferecer ao seu noivo, o José Maria Ferreira Montalvão, com quem casou nesse ano.

Confesso que esta hipótese é a que agrada mais, o retrato da minha bisavó Aninhas, ter sido tirado, pela Ana Magalhães Rodrigues, indiscutivelmente uma mulher à frende do seu tempo, bonita e com uma vida aventurosa. Foi modista, fotógrafa, andou pelo Brasil, casou duas vezes e tinha licença de porte de armas!

Ana Magalhães Rodrigues era uma mulher bonita. Foto retirada de http://cochinilha.blogspot.com/2011/11/anna.html 


Contudo Ana Magalhães Rodrigues, antes de ter instalado o seu atelier em Chaves, na antiga rua da Cadeia, hoje rua Bispo Idácio, esteve em Pedras Salgadas com o seu marido, Augusto Rodrigues, também fotógrafo, de cujo trabalho há notícia nessa zona antes de 1900, nomeadamente o retrato de uma criança, assinado A. Rodrigues. Aliás terá sido com este marido com quem Ana Maria terá aprendido o mester da fotografia. Divorciaram-se em 1900 e em 1903, Ana Maria encontrava-se a trabalhar em Chaves onde ficou até 1907.

Em suma a fotografia da minha bisavó poderá ter sido feita em Chaves, em 1903, no atelier da Ana Magalhães Rodrigues, ou então em Pedras Salgadas ou Vidago, em 1900 ou um pouco antes por Augusto Rodrigues.

O meu trisavô Francisco Luís Alves, referido na imprensa flaviense como um capitalista

O meu trisavô, o Francisco Luís Alves era um homem abastado, um capitalista, como é referido na imprensa flaviense e era natural, que levasse a família passear a Pedras Salgadas ou a Vidago, estâncias termais, onde já existia um ambiente mundano e numa tarde tivesse aí mandado fazer um retrato da sua jovem filha casadoira no estúdio de Augusto Rodrigues, por volta de 1889 ou 1900.

A única forma de eu resolver esta dúvida e seria poder examinar o verso da fotografia, para ver se contém alguma dedicatória datada, ou impresso por extenso o nome do autor do retrato. Mas não sei do paradeiro do original desta fotografia e fica o problema por resolver.

Em todo o caso, tudo isto serviu-me para conhecer a existência da bela Ana Magalhães Rodrigues e certamente a minha bisavó ter-se-á cruzado muitas vezes com ela nas ruas de Chaves ou Vidago ou ainda em Vilar de Nantes, onde a fotógrafa se retirou, e onde a irmã da minha bisavó, a Maria da Conceição Alves dirigia o patronato de S. José para crianças pobres.

Ana da Conceição de Morais Alves


Ligações consultadas;

Ana Magalhães Rodrigues (1869-1937): a descoberta de uma fotógrafa portuguesa. / Nuno Resende. 2002

Manuscrito não publicado (preparado para submissão). Disponível em https://www.researchgate.net/



E um agradecimento especial a Catarina Miranda

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Uma insólita figura em biscuit


Comprei esta figurinha de biscuit por tuta-e-meia. Tem o bracinho partido e por isso foi tão barata. Tudo que está incompleto ou partido tem sempre fraco ou nenhum valor comercial. Mas, mal a vi na banca do vendedor, identifiquei-a logo como sendo uma produção da Schafer & Vater, essa fábrica alemã, fundada em 1890 e que se especializou na produção de insólitas figuras em biscuit, muitas delas caricaturas de figuras da época ou mesmo serviços de loiça, também com as mesmas características. Já aqui apresentei um serviço de chá desta fábrica alemã, que representa as sufragistas, essas mulheres, que tanto deram que falar na Inglaterra pelas suas proezas e protestos e cuja fama correu o mundo inteiro, nos finais do século XIX e inícios do XX.


Esta figurinha apresenta uma boca desmesuradamente aberta e a cabeça toda perfurada. Normalmente, aqui em Portugal estes objectos são tomados por paliteiros. Mas o paliteiro é um utensílio muito português. Na verdade, esta estranha figura é uma fosforeira e simultaneamente um cinzeiro. Espetavam-se os fósforos nas cavidades das cabeça e a boca servia para segurar o cigarro ou sacudir uma cinza. Claro, o boneco tinha também uma função decorativa e os seus donos teriam um especial prazer em espetar um cigarro numa figura qualquer pública ou num tipo popular antipático.


As figurinhas Schafer & Vater foram muito populares nos EUA e Inglaterra algumas delas foram mesmo produzidas especialmente para esses mercados, apresentando legendas em inglês, identificando as figuras ou situações postas a ridículo.



A figurinha não está marcada, apresenta apenas o número de série do modelo, 957 e no tardoz alguém escreveu a lápis, qualquer coisa que não consigo ler. Talvez Frauda, Franda, ou Fianda, seguido de uma data, 1917 ou 1927. Será uma marca de posse, uma informação relativa ao preço? Enfim, aceito sugestões.



Em termos de datação, é um pouco complicado. Fundada em 1890 em Volkstedt-Rudolstadt, a Schafer & Vater esteve particularmente activa durante as décadas de 10 e 20 do século XX, depois entrou em decadência. Após segunda guerra mundial, a Turíngia ficou do lado da Alemanha comunista e Schafer & Vater deixou de exportar para o Ocidente e fechou as definitivamente as portas em 1962. No portal de antiquários americano Ruby Lane encontrei umas destas figurinhas, datada de mais ou menos 1910 e creio que a data deste meu boneco deve andar por aí.

Figura à venda no Ruby Lane



Bem sei que esta uma fosforeira / cinzeiro é peça um bocadinho insólita, está partida e não tem valor comercial. Mas eu adoro estes biscuits alemães do princípio do século XX.



Algumas ligações consultadas:


Schafer & Vater Porcelain / by Peter P. Spirit
http://stein-collectors.org/Members/private/PrositArticles/201303Prosit/Schafer%20and%20Vater%20Porcelain%20--%20by%20Peter%20P%20Spirito%20(Prosit%20Mar%202013).pdf


https://www.iconicedinburgh.co.uk/products/copy-of-antique-porcelain-smoking-head-ashtray-by-schafer-vater-by-the-light-of-the-silvery-moon


https://www.rubylane.com/item/1836869-Matchx20Holderx2cx20Sickx20Head/Original-Schafer-Vater-Match-Holder-Sick?search=1&t=6fc2b2c0


domingo, 12 de fevereiro de 2023

Senhor do Jesus do Patrocínio: uma estampa do século XVIII ou as andanças de uma imagem




Comprei já alguns anos este registo, representando o Senhor do Jesus do Patrocínio, na feira dos alfarrabistas da Rua da Anchieta, em Lisboa. É um sítio estupendo para comprar estes santinhos a preços de ocasião, pois poucos parecem dar valor a estas imagens. Vivemos numa sociedade descristianizada e hoje em dia os jovens gostam é de objectos de design dos anos 60 e 70 do século XX e para os mais velhos, estes santos e imagens piedosas despertam-lhe más recordações, dos tempos dos colégios de freiras ou da catequese, em que as criancinhas eram ameaçadas com o inferno ou edificadas com imagens piegas de cristos loiros e de olhos azuis. Eu como já recebi uma educação religiosa deficiente e logo na adolescência me tornei descrente adoro estes registos de santos, sobretudo os do século XVIII, como este, rodeado de uma cercadura preciosamente elaborada.

Este registo já não está no estado original, foi recortado, provavelmente com a intenção de o encaixilhar numa moldura feitos de restos de paninhos ricos, decorada com missangas, bordados a prata e passamanaria. Mas a Senhora que o recortou, deve ter morrido entretanto, sem ter tempo de o emoldurar e assim ficou. Como os dados referentes ao impressor, que normalmente, constavam do rodapé da imagem foram também cortados, abri o site da Sociedade Martins Sarmento, que disponibilizou em linha toda colecção de registos de Santos. Com efeito, com alguns minutos de pesquisa, encontrei uma estampa igual à minha, mas com os dados completos do impressor. Foi gravada, por Debrie, isto é, Guilherme Francisco Lourenço Debrie, um impressor francês, que veio para Portugal em 1731. Deste gravador, também designado por Guillaume François Laurent De Brié, sabe-se muito pouco, embora sua obra seja extensa, na produção de estampas para livros, como também nestes registos de santos. Este Debrie terá morrido em 1755, segundo se diz no terramoto ocorrido nesse ano.

Imagem da Casa de Martins Sarmento. No canto inferior esquerdo, está identificação do gravador, Debrie

Portanto, esta gravura foi concebida entre 1731 e 1755, embora seja possível, de ter continuado a ser reimpressa depois da morte do seu autor.

Contudo, as minhas pesquisas não ficaram por aqui. Como já tenho alguma experiência neste assunto, sei que estas estampas representavam muitas vezes imagens verdadeiras, expostas ao culto numa igreja ou num convento e que estas simples folhinhas em papel era uma forma de as pessoas beneficiarem nas suas casas da protecção de uma qualquer invocação de Maria ou de um Santo ou muitas vezes compravam-nas em cumprimento de um voto.
S.r JEZUS DO PATROCINIO/ prezo à Coluna q. se venera/ na Igreja de N. Snr.ª/ das Merces.


Neste momento comecei a trabalhar a legenda da imagem. S.r JEZUS DO PATROCINIO/ prezo à Coluna q. se venera/ na Igreja de N. Snr.ª/ das Merces.

Presumi que este Cristo preso a coluna, estivesse ao culto na igreja das Mercês, em Lisboa. Mas a sede desta paróquia só se transferiu para o actual edifício, o antigo convento de Nossa Senhora de Jesus, depois da extinção das ordens religiosas, depois de 1834. A velha igreja paroquial situava-se na antiga Rua Formosa (actual Rua de 0 Século), ficou muito arruinada com o terramoto de 1755. Esteve assim instalada dois anos na Ermida da Ascenção de Cristo, na Calçada do Combro. Findas as obras de recuperação, voltou à Rua do Século, até 1835. ano em que passaria para a igreja do Convento de Jesus, onde se encontra até hoje. Enfim, era natural, que esta imagem do senhor Jesus do Patrocínio, que deveria ser objecto de muita devoção, conforme testemunha esta estampa, tivesse sido transportada por todos estes sítios. Contudo, nas descrições e fotografias actuais da igreja das Mercês não encontrei nenhum Jesus do Patrocínio Amarrado à coluna. Talvez a imagem tivesse sido destruída durante o terramoto de 1755.

Fiz mais umas pesquisas e encontrei no arquivo digital do Ministério das Finanças o processo de Arrolamento dos bens culturais da freguesia de Mercês, distrito de Lisboa, Concelho de Lisboa. Deste processo que decorreu entre 1912 e 1924, acerca dos bens do extinto Convento de Jesus, um dos intervenientes foi a Confraria do Senhor Jesus do Patrocínio. Esta referência mostrou-me que estava no caminho correcto. Existiu um culto ao Senhor Jesus do Patrocínio na freguesia das Mercês em Lisboa, conforme atesta a existência duma irmandade com esse nome. Mas nesse arrolamento de bens não constava nenhuma imagem da referida imagem de Jesus. Recomecei as minhas buscas no google pelo nome da Confraria do Senhor Jesus do Patrocínio e no arquivo da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna encontrei um registo relativo à Irmandade do Senhor Jesus do Patrocínio, datado entre 1911 e 1913, onde se refere que estava provisoriamente instada na Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, localizada na Rua dos Caetanos, na freguesia de Mercês, no concelho de Lisboa.


Parti então à procura da Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na Rua dos Caetanos e o google levou-me a página de facebook da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, que ocupa aquele templo e depois de vasculhar um pouco a galeria de fotos encontrei a imagem do Senhor Jesus do Patrocínio, que inspirou a minha gravura e que afinal sobreviveu à grande cataclismo de 1755. Na estampa a imagem está invertida como é costume e a coluna está no centro, mas é sem dúvida a escultura, que inspirou o gravador Debrie, antes de 1755.

Senhor do Jesus do Patrocínio na sua actual localização, Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na Rua dos Caetanos. Imagem da página de facebook da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus

Contudo, continuava a achar estranho a imagem não estar na sede da paróquia, o antigo convento de Nossa Senhora de Jesus, cuja igreja é tão grande e resolvi explorar a página oficial da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, cuja história está muito bem escrita e fundamentada. E com efeito, encontrei a história desta escultura, que transcrevo resumidamente.

A 10 de Fevereiro de 1856, na Mouraria, (…) o Cabo João Maria de Sousa foi inspirado divinamente de que na Igreja das Mercês existiria uma imagem de Cristo, preso à coluna, e que se lhe deveria criar uma Irmandade e um "Montepio" para assistência aos mais pobres. Decidiu então com dois amigos também miliares procurar a veracidade da existência da referida imagem. Chegados à freguesia das Mercês, procuraram a pessoa mais velha da freguesia, para a questionar acerca disto. Falando com o Juiz eleito da freguesia, este informou-os que se recordava da existência de uma imagem do Senhor preso à coluna, na igreja das Mercês. Contou o referido Juiz que uns galegos moradores na Rua do Carvalho tinham encontrado uma imagem emparedada na sua casa. (…). Terminada a conversa, os três militares dirigiram-se à Igreja das Mercês, mas logo perceberam que não existia qualquer imagem semelhante à que procuravam. Por essa altura, estavam lá uns pedreiros (…). Procurando nas dependências, encontraram numa arrecadação, uma imagem de Cristo preso à coluna, feito em sete bocados.

A antiga Igreja das Mercês


Depois desse achado maravilhoso, formou-se uma Arquiconfraria do Senhor Jesus do Patrocínio em 1856, com sede na antiga igreja das Mercês e cuja importância foi crescendo com o tempo, quer em número de devotos quer em património. Em 1895, a Arquiconfraria iria procurar novo templo escolhendo para isso a igreja do antigo Convento dos Caetanos. Em 1911, o Estado correu com esta irmandade, para erguer o Conservatório e a primeira mudou-se com o Senhor dos Patrocínio e outros bens para Capela dos Fiéis de Deus, na mesma rua e ali ficou até aos dias de hoje. Com o passar dos anos a Arquiconfraria perdeu popularidade e desapareceu e no momento presente Irmandade da Senhora da Ajuda é a detentora do seu vasto espólio.

Em suma, este Senhor Jesus do Patrocínio foi uma imagem de grande devoção no século XVIII na igreja das Mercês, situada na actual Rua do Século e entre 1731 e 1755, alguém encomendou a Guillaume François Laurent De Brié esta estampa, reproduzindo a escultura Em 1755, com o terramoto a escultura deve ter ficado seriamente danificada, arrumada numa arrecadação qualquer e esquecida, até que em 1856 foi redescoberta, restaurada e posta novamente ao culto na mesma igreja. Em 1895, a imagem esteve ao culto no Convento dos Caetanos e em 1911, transitou para Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus, na mesma rua, onde ainda se encontra hoje.

Capela de Nossa Senhora da Ajuda e Santos Fiéis de Deus,

É uma história complicada, mas creio que característica de muitas obras de arte sacra, que com o terramoto, a extinção da ordens religiosas em 1834, a Lei da separação do Estado e da Igreja de 1910, andaram de Herodes para Pilatos. Mas felizmente esta esta imagem sobreviveu a tudo e lá está ela na esquina da Travessa dos Fiéis de Deus com Rua dos Caetanos, à espera que ainda se lembrem de lhe pedir patrocínio…



Ligações consultadas:


https://www.csarmento.uminho.pt/site/s/sms/item/7287#?c=0&m=0&s=0&cv=0&xywh=-432%2C-13%2C1248%2C666


https://purl.pt/102/1/memoria/biografia/memoria_biografia_thumb_56.html


https://purl.sgmf.gov.pt/142190/1/142190_item1/index.html


https://agc.sg.mai.gov.pt/details?id=585672&ht=senhora&detailsType=Description


https://irmandade-de-nossa-senhora-da-ajuda-e-santos-fieis-de-deus.webnode.pt/arquiconfraria-do-senhor-do-patrocinio/


https://aps-ruasdelisboacomhistria.blogspot.com/2011/11/rua-do-seculo-xviii.html?m=1 

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Uma xícara antiga da Vista Alegre


Já há muito tempo que apresentei aqui esta chávena e o respectivo pires, que comprei na feira da ladra há cerca doze anos. Embora não apresente nenhuma marca, na altura em que escrevi o texto, estava convencido de que se tratava de uma produção da Vista Alegre de meados do século XIX. A forma gomada, a decoração com florinhas e ao mesmo tempo uma certa simplicidade, pareciam características da Vista Alegre.

Não há qualquer marca no pires ou na chávena

Mas, um dia, recebi em casa uns amigos franceses, que gostam de coisas antigas e quando lhe mostrei o louceiro onde arrumo os açucareiros, os bules, os pratos e as chávenas da Vista Alegre, disseram-me sem margem para duvidas, que esta chávena era francesa, produção de Paris e a dúvida armazenou-se na minha cabeça. Com efeito, o largo filete dourado que corre ao longo da orla das peças corresponde um pouco ao gosto pronunciado pelos dourados da porcelana francesa do século XIX

Posteriormente, jantei em casa de um amigo, que tem coisas antigas e além disso é também um genealogista. Na sala de jantar, tem um prato com o mesmo motivo decorativo pendurado na parede. Virei-o, não apresentava marca, mas o meu amigo Alfredo disse-me que era uma peça herdada e que na família sempre se disse que era Vista Alegre. Foi pena não ter tirado uma fotografia do prato, mas na altura ainda tinha um telemóvel pré-histórico e contentei-me em grava-lo na memória.

Como tenho muita louça da Vista Alegre, ando sempre a rever as publicações, que foram saindo sobre o assunto, na esperança de encontrar sempre uma informação, que me tenha passado desapercebida. Infelizmente, essas obras repetem o conteúdo umas das outras e não tem sido editado nenhum estudo inovador, que compare as produções da Vista Alegre, com as outras fábricas européias, sobretudo com as francesas. Isto pelo menos para o século XIX, que é o período da Vista Alegre que me interessa mais. Também não existe um catálogo sistemático das formas e decorações dessa fábrica de Ílhavo. Ultimamente ando a convencer-me que o melhor livro que saiu sobre esta marca, continua a ser “A Fábrica da Vista Alegre : o livro do seu centenário 1824-1924. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1924”. Só é pena ter poucas ilustrações e de fraca qualidade. Mas para 1924, o ano da sua publicação, tudo aquilo era um verdadeiro luxo editorial.


Ao folhear essa obra mais uma vez, encontrei na estampa XVIII a reprodução de um serviço que parece apresentar o mesmo motivo decorativo que a minha xícara. Na página 32, da mesma obra, indica-se, que se trata de um serviço de chá polícromo, do Exmo Sr. Dr. Egas Moniz, Lisboa; e peças iguais do Exmo. Sr. Marques Gomes, Aveiro, 1840-1852 VA a ouro. É certo, que as asas das chávenas deste serviço são diferentes da minha, que se apresenta no chamado formato London shape, mas a Vista Alegre fabricou neste período xícaras com esse formato.



Em suma, a minha chávena e pires parecem ter sido produzidos entre 1840-1852 pela Vista Alegre.

Serviço de café de porcelana de Paris. Foto retirada de https://www.pamono.eu/antique-porcelain-tea-service-paris-set-of-14

Contudo, as minhas dúvidas persistem. Numa simples pesquisa por imagens no Google, num site de vendas on-line francês encontrei um serviço de café de porcelana de Paris com uma decoração quase igual. Mas a porcelana francesa tem sempre um brilho mais vítreo que a portuguesa.

Ambas as chávenas assentam ligeiramente inclinadas para a direita.

Por outro lado, esta xícara tem também uma particularidade. Se a assentarmos no pires fica ligeiramente inclinada para a direita. Eu até tenho que pôr um papelinho dobrado por debaixo para ficar direita no louceiro. No início, achei que era um defeito de fabrico, mas tenho outra chávena, decorada com flores e um passarinho, que tem exactamente a mesma característica de assentar ligeiramente inclinada. E essa está belissimamente pintada e não pode ser um defeito de fabrico. Aliás, é outra peça sobre as quais tenho dúvidas se é Vista Alegre ou porcelana de Paris. Creio que esta inclinação era intencional e terá a ver com qualquer razão ergonómica, talvez para ser mais fácil beber o chá ou para verter os restinhos do chá para a taça de pingos, quando as pessoas se queriam servir de mais.

Enfim, esta minha chávena parece ser da Vista Alegre, executada entre 1840-1852 e creio que demonstra bem as fortes influências da porcelana francesa nas produções da fábrica de Ílhavo.



Bibliografia e ligações consultadas:

A Fábrica da Vista Alegre : o livro do seu centenário 1824-1924. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1924

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Procurando as origens: a tia Bia de Soutelo

 
Trecho do inventário dos bens do Solar da família Montalvão em Outeiro Seco

Pouco depois da morte do meu bisavô, em 1965, a minha avó Mimi fez um inventário dos bens do Solar da família Montalvão em Outeiro Seco. É um documento que costumo consultar com frequência e um dia destes ao reler outra vez aquelas linhas encontrei referência dois crucifixos, um com o Cristo em marfim e outro em Madeira, que vieram da casa de Soutelo. Na altura, a minha avó Mimi, não se deu ao trabalho de explicar que casa era aquela, pois para ela e toda e toda a família isso era óbvio. Fiquei muito intrigado com esta casa de Soutelo, de que nunca tinha ouvido falar. Sabia que os meus bisavôs, além do solar de Outeiro Seco tinham outra casa em Chaves, no bairro da Madalena, encostada ao rio Tâmega onde passavam o inverno e com efeito, a minha avô menciona objectos que vieram dessa residência. Também era natural que tivessem uma ou outra coisa da Casa de Santo Estevão, dos Morais Sarmento, através da herança da minha trisavó, cuja mãe pertencia a essa família. Mas a minha avó nunca refere nada no inventário, que tivesse vindo da casa dos Morais Sarmento.

Pouco tempo depois falei ao telefone com a prima Lili, que é ainda única pessoa do ramo Ferreira Montalvão, que ainda vive em Chaves e perguntei-lhe se sabia alguma coisa dessa casa em Soutelo. A Lili lembrava-se de ouvir a sua mãe contar histórias acerca de uma Tia Bia, casada com um Domingos, que viviam em Soutelo e eram visita frequente do Solar, quando a minha avó e os meus tios avôs eram crianças, isto ter-se-á passado nos anos entre os anos 1905-1920. Nesse tempo, depois do jantar, como era vulgar nas famílias da época, rezava-se o terço. E durante a ladainha, Pai Nosso que estás no céu…, a tia Bia interrompia a oração e perguntava ao meu bisavô, Ó Jejé, este ano como foi a apanha da castanha?. Depois continuava a reza e a tia Bia voltava a perguntar, Ó Jejé, este ano como foi a colheita do centeio? e assim sucessivamente, ao longo de todo o terço, ia parando as orações com as mais diversas perguntas sobre o ano agrícola na quinta de Outeiro Seco. Claro, a certa altura era uma risota entre as crianças.

Mas apesar destes esclarecimentos fiquei sem saber a que ramo pertencia esta tia Bia de Soutelo. A Lili afirmou-me que a Tia Bia não era do lado da minha bisavó, gente que tinha casa em Mairos, outra localidade perto de Chaves, nem do lado dos Morais Sarmento, que como já referi, estavam em Santo Estevão, aldeia próxima de Outeiro Seco, na margem direita do Tâmega. Tão pouco consegui perceber que nome se escondia por detrás do diminutivo Bia. Seria uma Beatriz?

Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão

Entretanto comecei a inventariar as cartas e os documentos dessa época e senti a necessidade saber mais sobre a família de Liberal Sampaio, meu trisavô, um padre, que manteve uma relação amorosa com uma fidalga do Concelho de Chaves, da aldeia de Outeiro Seco, a minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão. Aliás este par ocupa quase sempre um lugar importante nas narrativas de história familiar deste blog. Gosto sempre de pensar neles, como uma espécie de Ana Plácido e Camilo Castelo Branco, embora saiba perfeitamente, que a vida dos meus antepassados não teve nada de arrojado ou de tão chocante, como essa paixão do grande escritor português. As cartas que esses meus antepassados trocaram entre si são na maior das vezes de assuntos correntes, o governo da casa agrícola, a poda da vinha, a construção do poço ou de um muro, a venda do cereal, a compra de uma égua ou a educação do filho, que tiveram juntos. 

O primeiro bilhete de identidade do meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio, de 21 de Abril de 1927 

Mas regressando ao assunto da família do meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio nasceu em 29 de julho de 1846 em antigo de Sarraquinhos, perto de Montalegre, filho de António Rodrigues Sampaio e de Maria Gonçalves Liberal. Se de facto, a mãe era natural de Antigo de Sarraquinhos, Montalegre, o pai nasceu em Soutelo, já no Concelho de Chaves. Em suma a família paterna do meu trisavô era de Soutelo e na correspondência do espólio fui encontrado referência a parentes nessa aldeia. Há duas cartas de um primo, Manuel Rodrigues Sampaio, proprietário de um estabelecimento comercial em Soutelo. Na primeira missiva de 2 de Fevereiro de 1899 dá notícias sobre vários parentes naquela terra e informa que vendeu casas em Outeiro Seco e comprou uma em Soutelo por 30 libras. O meu próprio trisavô foi pároco em Soutelo, pelo menos entre 1914 e 1917. Soutelo e Outeiro Seco são aldeias próximas e pelos vistos o meu antepassado manteve uma ligação à terra paterna.

Antigo de Sarraquinhos, Soutelo e Outeiro Seco são terras próximas

Entretanto, foi tratando o espólio familiar e nas cartas, que o meu bisavô escreveu de Coimbra para a mãe, mencionou muitas vezes a Bia. Mandava recados à Bia, perguntava pela Bia e em 11 de Dezembro de 1900 escreveu mesmo Se a Tia Bia quiser os ingredientes para a gomagem, que mande os mercenários cobres, pois estou o que em calão académico, se chama depenado. Igualmente nas cartas que Liberal Sampaio dirigia minha à trisavó, refere também a Bia. Percebi através destas referências que a Bia era presença frequente no Solar de Outeiro Seco ou até que passaria por lá temporadas.

Ao mesmo tempo ia progredindo no tratamento do espólio e encontrei algumas cartas da irmã de Liberal Sampaio, de que já conhecia a existência, a Maria Rodrigues Sampaio, minha tia-trisavó. Numa delas, datada de 7 de Abril de 1889 escreve ao irmão, que se encontrava em Coimbra, juntamente com filho, dando notícias da casa agrícola “a podada já está feita e inda se faz em Março. A égua anda cheia e anda muito gorda, graças a Deus” e no final envia recados da prima Sampaio e do tio de Soutelo e pede que deia muitos beijos ao menino da sua Bia. Afinal, a tia Bia era a irmã de Liberal Sampaio, a Maria Rodrigues Sampaio. Bia não era o diminutivo de Beatriz, como era suposto, mas um desses petits noms, sem sentido, criado por algum irmão ou por uma mãe enternecida enquanto amamentava a criança e que muitas vezes acompanham as pessoas durante uma vida inteira.


Carta de Maria Rodrigues Sampaio, datada de 7 de Abril de 1889, escrita ao irmão. 

Depois de ter obtido destas informações fiz algumas pesquisas no motor de busca do arquivo Distrital de Vila Real por Maria Rodrigues Sampaio e encontrei referência a um processo de inventário obrigatório de um tal Domingos Afonso da Cruz, cuja inventariante foi Maria Rodrigues Sampaio, com a data de 1907. Consultei o registo de óbitos desse ano e no dia 25 de Abril faleceu Domingos Afonso da Cruz, comerciante, casado com Maria Rodrigues Sampaio, ambos residentes em Soutelo. Encontrei também um testamento de 1912 da Maria Rodrigues Sampaio, de 1912, dado em Soutelo e finalmente outro processo de inventário obrigatório de 1933, data em que esta minha tia trisavô terá morrido e cujo inventariante foi Domingos Afonso da Cruz, certamente o filho, que tinha o mesmo nome do pai. Portanto, estes dados batem certo com história que a prima Lili contou. A tia Bia vivia em Soutelo e era casada com um Domingos.

O assento de óbito de Domingos Afonso da Cruz, o marido da tia Bia

O episódio, que a prima Lili contou sobre a Tia Bia, que interrompia constantemente o terço com perguntas sobre o ano agrícola, coincide com as preocupações que esta manifestava nas suas cartas. Aliás, o irmão, o meu trisavô o Liberal Sampaio, assemelhava-se nestes cuidados, estava também sempre a escrever a minha a trisavô com inúmeros conselhos sobre o governo da casa agrícola, como a as vindimas, égua, que estava prenha, ou com o cereal, que poderia apodrecer, antes de ser vendido. Estas cartas revelam-nos um mundo de gente, que vive da terra.

Descobrir quem foi esta tia Bia de Soutelo, permitiu-me conhecer um pouco sobre o estatuto social da família Liberal Sampaio, que não tinham de todo os pergaminhos dos Montalvões ou as suas extensas propriedades, mas em todo o caso, não seriam tão humildes, como acreditava até há pouco tempo, pois a Tia Bia ou a Maria Rodrigues Sampaio sabia ler e escrever, o que é um indicador de um certo desafogo económico nesta época. Em 1878, taxa de analfabetismo feminino era de 89,3 por cento, conforme indica Irene Vaquinhas, em Senhoras e Mulheres" na sociedade portuguesa do século XIX. A tia Bia fazia parte de uma minoria de cerca de 10 por cento das mulheres portuguesas.

A partir destes dados começo a entrever melhor a figura do meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, que desde muito jovem, me ensinaram a admirar e em cujo retrato reconheço as feições do meu pai e do meu próprio filho.



Bibliografia consultada:

"Senhoras e Mulheres" na sociedade portuguesa do século XIX / Irene Vaquinhas. 1a ed. Lisboa : Colibri, 1999. ISBN 972-772-112-5.

Processo de Inventário obrigatório de Domingos Afonso da Cruz, 1907
Arquivo Distrital de Vila Real
PT/ADVRL/JUD/TJCCHV/C-C/082/352

Testamento público de Maria Rodrigues Sampaio, 1912
Arquivo Distrital de Vila Real
PT/ADVRL/NOT/CNCHV2/007/297/24

Processo de Inventário obrigatório de Maria Rodrigues Sampaio, 1933
Arquivo Distrital de Vila Real
PT/ADVRL/JUD/TJCCHV/C-C/082/1028

Registo de óbitos de Soutelo, 1889-01-17 – 1911-11-14
Arquivo Distrital de Vila Real