sábado, 16 de dezembro de 2023

Um sermão de temática liberal na cidade do Porto em 1887

Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935) 


O meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935) foi um pregador conhecido na sua época. Logo em 1873, apenas com 27 anos foi nomeado por alvará do rei D. Luís pregador da sua Capela Real e com efeito, muitas das cartas recebidas por este meu antepassado são convites para pregar sermões, normalmente por ocasião das festas de padroeiros locais, mas também em cerimónias solenes na Universidade de Coimbra. As terras por onde ele pregava eram quase todas transmontanas, de Chaves e dos concelhos vizinhos, mas também de localidades no Distrito de Bragança e ainda de paróquias da região centro, durante o período em que estudou na Universidade de Coimbra (1886-1891).

As cartas convidando o meu trisavô para subir ao púlpito eram assinadas pelos párocos, ou por leigos das comissões organizadoras das festas, indicavam sempre a festa religiosa que se tratava, as datas, a remuneração, pois estes sermões eram pagos e uma boa fonte de rendimento para estes pregadores conhecidos, o alojamento, que era muitas vezes oferecido pelos signatários das cartas e ainda por vezes conselhos sobre o transporte e numa das cartas pormenores sobre o lauto banquete, que se seguia.

Contudo, em nenhumas destas cartas, se fornecem indicações sobre o tema a versar. Se Liberal Sampaio era convidado para pregar na festa do Senhor dos Aflitos, partia-se do princípio que o Reverendo Padre saberia dizer as palavras certas e adequadas à ocasião. Como se costuma dizer, ninguém ensina o pai-nosso ao vigário. Mas há uma carta que sai fora do baralho, a de Joaquim Pinto de Castro Guimarães, que escreve ao meu trisavô em 13 de Março de 1887, com um guião preciso sobre o que haveria de abordar na sua prédica. O convite deve ter parecido tão inusitado a Liberal Sampaio, que este, embora tenha aceite, deve ter escrito ao Sr. Joaquim Pinto de Castro Guimarães pedindo esclarecimentos e a carta, que transcrevo no final é precisamente a resposta com os tais esclarecimentos.

Carta de Joaquim Pinto de Castro Guimarães, 13 de Março de 1887

O Sr. Joaquim Pinto de Castro Guimarães convida o meu trisavô para pregar na festa na festa à Nossa Senhora da Boa Nova, que se realizava na igreja de paroquial de S. Nicolau, na cidade do Porto. Esta invocação mariana era protectora do comércio e navegação e Joaquim Pinto de Castro Guimarães, pretendia que Liberal Sampaio fizesse uma ligação entre a religião e o trabalho, mas também sobre a liberdade, pois o Porto adora a Liberdade, porque a conquistou com sacrifícios imensos, e adora o trabalho porque tem sido a causa poderosa da sua grandeza. A liberdade e o trabalho engrandecem-se com o espírito da crença religiosa que sempre anima e distinguem a gloriosa cidade do comércio e da indústria.


Segunda página da 
Carta de Joaquim Pinto de Castro Guimarães, 13 de Março de 1887



De seguida, Joaquim Pinto de Castro Guimarães, enumera os pregadores anteriormente convidados, Henrique Ribeiro, António Cândido, Alves Mendes, Eduardo Nunes e Porfírio, sublinhando assim a qualidade e o prestígio do evento e indica-nos também a duração destes sermões, uma hora ou 5 quartos.

Não sei a resposta que Liberal Sampaio deu a esta carta nem em que termos decorreu o seu sermão, pois nos espólios só temos a correspondência recebida, mas já tinha aceite anteriormente o convite e o meu antepassado era não só Liberal de apelido, mas também politicamente, chegando a militar no Partido Regenerador, portanto posso mais ou menos presumir que terá abordado a relações entre a religião, o trabalho e a liberdade.

Jornal do Porto, nº 45 (22 de Fev. de 1891)


Pessoalmente achei esta carta muito curiosa, pois sempre tinha lido nos manuais de história, que o Porto era a cidade burguesa e liberal por excelência, mas achava que era uma ideia feita, tal como a afirmação que os portugueses são um povo de brandos costumes. Efectivamente, o espírito liberal e burguês era um assunto sério naquela cidade, neste último quartel do século XIX. Aliás, este Joaquim Pinto de Castro Guimarães, que era presidente da Junta de freguesia de S. Nicolau no Porto em 1891 foi um capitalista, cujos empreendimentos são detectáveis por umas quantas pesquisa ao Diário do Governo on line. Em 1872 constava como fazendo parte da companhia União Comercial, em 1875 como membro fundador do Banco de Chaves e em 1893 fez parte da sociedade responsável pela iluminação a electricidade da cidade de Braga. No Arquivo Municipal do Porto, há vários processos de obras relativos à sua sólida casa burguesa, na Rua dos Ingleses, do Porto. Em suma foi um burguês muito abastado, com investimentos no comércio, na banca no sector energético e orgulhoso da sua cidade, com tradições liberais e devoto da Nossa Senhora da Boa Nova, protectora do comércio e da navegação.

Casa de Joaquim Pinto de Castro Guimarães, Rua dos Ingleses, do Porto. Arquivo Municipal do Porto


Hoje em dia, que vivemos numa sociedade descristianizada, estranhamos a popularidade destes pregadores, ou que as paróquias gastassem dinheiro em chama-los para as suas festividades, como factor de atracção de gente vinda de todo o lado desejosas de ouvir as prédicas deste ou daquele padre, mas neste último quartel do século XIX a missa era dita ainda em latim, língua que só meia dúzia de ilustrados entenderia e o sermão era proferido em português e talvez fosse a ocasião, para tratar de temas mais actuais e mais próximos da população, como parece ter sido este sermão de Liberal Sampaio na festa da Nossa Senhora da Boa Nova


Porto, 13 de Março de 1887

Exmo. e Reverendíssimo Sr. José Rodrigues Liberal Sampaio

Coimbra

Dirigimo-nos por este meio a V. Exa com o intuito de lhe fornecermos alguns esclarecimentos, para o sermão à Nossa senhora da Boa Nova, que V,. Exa se dignou aceitar por intervenção de um nosso prezado amigo, dessa cidade. Empenhamo-nos sinceramente para que V. Exa se torne notável numa festividade de primeira ordem e à qual se imprime sempre o brilhantismo e a magnificência que requerem e merecem estas belas manifestações deste culto eterno da nossa religião; e por isso tomamos a liberdade de escrever-lhe, unicamente animados pela intenção de lhe sermos útil a respeito de um assunto que nos interessa vivamente…

A festa à Nossa Senhora da Boa Nova, invocada com uma fé grandemente sincera, como protectora do comércio e navegação realiza-se na paroquial igreja de S. Nicolau todos os anos a expensas duma comissão de comerciantes da mesma freguesia: é muito antiga e feita já por costume consagrado.

O assunto pode ser magnificamente aproveitado e desenvolvido, já pelo lado religioso, já pelo lado histórico e filosófico. A íntima relação e a imediata influência que esta Venerável Imagem tem sobre o comércio e a navegação; o prestígio que a cerca e a fé ardente como que é invocada poem numa série de efeitos, patente, irresistível o enlace misterioso que existe entre a Religião e o Trabalho: A Religião que é uma essência divina espiritualizada pela verdade eterna, que vemos, que sentimos em tudo, que compõe as esplendas harmonias do universo e o trabalho, que é o gérmen fecundo de toda a produtividade humana, o extraordinário cinzelado da matéria, o agente audaz, o cooperador infatigável a obra mais sublime do homem, a Civilização.

A enorme filosofia que encerra a este assunto é duma transcendência deslumbrante e arrebatadora e pode por isso, encarada em todos os aspectos, inspirar o orador para os reptos mais admiráveis da eloquência sagrada. O Porto adora a Liberdade, porque a conquistou com sacrifícios imensos, e adora o trabalho porque tem sido a causa poderosa da sua grandeza; Aquela deu-lhe respeitabilidade eminente glorificada pelo heroísmo e Este deu-lhe a austeridade duma nobreza culminante. Mas estes dois apanágios que lhe assinalam uma proeminência distinta, abrilhanta-se e engrandecem-se com o espírito da crença religiosa que sempre anima e distinguem a gloriosa cidade do comércio e da indústria.

Tem V. Exa um tema abundante para apresentar um trabalho primoroso que, quando não exceda ao menos iguale aqueles que em ocasiões análogas apresentaram Henrique Ribeiro, António Cândido, Alves Mendes, Eduardo Nunes e Porfírio, os quais por espaço de uma hora ou 5 quartos, tinham enlevada a numerosa dos assistência dos devotos que concorrem a esta festividade., Nada mais acrescentaremos e a liberdade destas considerações que V. Ex. Desculpará, foi-nos simplesmente sugerida, como já dissemos, pela ideia de lhe darmos alguns esclarecimentos que mais directamente prendem com a oferta. Em tudo o mais, esperamos que a nossa expectativa será plenamente justificada

Temos a honra de nos subscrevermos de V. exa. Reverendíssima

Joaquim Pinto de Castro Guimarães


Ligações consultadas:





E um agradecimento especial à Celina Bastos

6 comentários:

  1. Obrigada Luís pela partilha!
    Gostei de ler o que o Castro Guimarães escreveu sobre o Porto.
    Abraço.

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    1. Muito obrigado. Com efeito esta carta é muito reveladora de uma cultura política e cívica e também religiosa muito característica do Porto. Um abraço

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  2. eu tenho em meu poder dois sermões escritos pela mão do Liberal Sampaio

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    1. Mas que interessante. Eu tenho um sermão publicado e outro manuscrito. Se quiser pode-me escrever para montalvao.luis@gmail.com. Um abraço e obrigado

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  3. Estes sermões a pedido mostram homens de ideias bem delineadas e objetivos definidos.
    Nada de deixar nada ao acaso.
    Gosto deste aspeto empreendedor e esclarecido. É assim que se conseguem os melhores resultados.
    E creio que também deve ter sido facilitador para o teu trisavô, que não necessitou de andar a pensar na temática da sua homilia.
    Eu, pelo menos, no lugar do senhor (isto é relativo, pois nunca fui pregador, nem qualquer queda tenho para o assunto, aliás, sou um péssimo orador em público, apesar de ter feito a minha vida a falar para conjuntos de pessoas), gostaria que se me tivessem dirigido desta forma, pois saberia que teria mais hipóteses do resultado ser melhor recebido.
    Não sei, nem creio que vá sabê-lo nunca, a reação do teu antepassado, visto que tu também não tens essa informação.
    Manel

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    1. Manel

      Nesta época o sermão era ainda um género literário e os nomes de alguns destes pregadores ficaram na história da literatura, como o nosso Padre António Vieira, ou o Bossuet, em França.

      Esta carta é muito interessante, porque destaca-se dos outros convites para pregar. Creio que também o sermão deveria ser adequado ao auditório. Numa paróquia urbana do Porto, a cujas missas assistiam burgueses mais esclarecidos, os temas teriam que ser diferente do que aqueles abordados na festa de uma aldeia perdida nas serranias de Bragança ou do Barroso,

      No fundo, estas cartas estão-me a ensinar muito sobre esta cultura religiosa da época, da qual pouco ou nada sabia.

      Um abraço

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