sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

O falso luxo de um talher



Como já aqui contei, resolvi completar os restos de um faqueiro de prata que herdei da minha avó. Naturalmente, desde logo, coloquei de parte a hipótese de encomendar a um ourives as peças iguais aos talheres da avó Mimi, num pesado estilo D. João V. Ficar-me-ia caríssimo e além de que seria muito mais divertido andar pelas feiras a catar velhos talheres de prata aqui e acolá, tudo a preço de ocasião. O meu objectivo tem sido desde então formar faqueiro com talheres de várias nações, que quando completo, ficará a matar na minha casa cheia de trastes e de velharias.

Umas das compras que fiz nesse sentido foi uma faca num estilo neo-Luís XV, muito ao gosto dos finais do século XIX e inícios do século XX. Apresenta um monograma e em tempos deve ter feito parte de um grande faqueiro, em que um burguês rico e orgulhoso, mandou gravar as iniciais do seu nome. Embora saiba pouco ou nada de prataria, não me pareceu que fosse prata de lei, mas sim aquilo que às vezes no mercado de velharias se chama prata francesa, isto é, um liga de metal com uma percentagem baixa em prata, que a célebre marca francesa Christofle celebrizou com os seus elegantes talheres.




Aliás, fiquei com desde logo com a ideia que seria uma peça francesa, talvez até da Christofle. A lâmina da faca está marcada Muller-Ott Mulhouse, uma célebre casa de cutelaria da Alsácia Lorena e o cabo apresenta duas marcas de punção, que tentei identificar em listas de fabricantes franceses de pratas, casquinhas, alpacas e ligas com percentagens baixas de prata. Em França, nestes finais do século XIX e inícios do século XX, a Lei determinava que os materiais imitando a prata apresentassem o punção do ourives em formato rectangular ou quadrado e que também existisse um número, indicando a gramagem de prata usada em cada conjunto de 12 talheres, neste caso, 18. 


A lâmina da faca está marcada Muller-Ott Mulhouse, uma célebre casa de cutelaria da Alsácia Lorena



O punção do ourives



A gramagem de prata


Enfim, tudo indicava que esta faca fosse francesa, naquilo que os franceses designam por métal argenté. Porém, a marca do ourives propriamente dito, que parecia representar uma balança ou uma âncora não constava de nenhum reportório de marcas francesas. Coloquei até esta questão no http://placedelours.superforum.fr, houve alguns participantes que me deram algumas pistas, mas nada.


Esqueci a questão, limpei a faca, colocando-a logo a uso, mas há uns tempos, lembrei-me que a Alsácia Lorena entre 1870 e 1918 pertenceu à Alemanha e que em Mulhouse, a cidade onde a lâmina foi fabricada, flutuava nos mastros dos edifícios públicos a bandeira do Reich alemão. Como a faca me pareceu precisamente coisa dos finais do século XIX, inícios do XX, talvez o fabricante do cabo em liga de prata fosse alemão e procurei então em Alemanha, num dicionário especializado em marcas, https://www.silvercollection.it e descobri, que a marca do cabo da faca correspondia à da Clarfeld & Springmeyer, da cidade alemã de Hemer. Fundada em 1858, esta empresa foi até à primeira Guerra mundial o segundo maior fabricante alemão de cutelaria e dedicou-se precisamente a produzir materiais a imitar prata ou em ligas com baixa percentagem de prata. 


Marcas da Clarfeld & Springmeyer,


Alguns dos seus talheres, em estilo secessão ou arte nova são até muito apreciados pelos coleccionadores e fazem parte do acervo de museus, mas não exactamente objectos como esta faca, em estilo revivalista Luís XV, pois o gosto contemporâneo não está muito virado para estas coisas arrebicadas.

Um conjunto da Clarfeld  & Springmeyer em estilo Secessão da colecção do British Museum 


Em suma, a lâmina desta faca foi fabricada pela Muller-Ott, de Mulhouse e o cabo pela Clarfeld & Springmeyer, entre os finais do século XIX e os inícios do Século XX, num tempo em que a Alsácia Lorena era alemã. É um objecto feito numa liga com uma baixa gramagem de prata, arrebicado, decididamente fora de moda, mas que faz um vistaço na mesa. Estes talheres aliás foram concebidos para os burgueses abastados sentirem que estavam a jantar com um faqueiro da realeza, de um duque ou príncipe, mas com um preço ao alcance das suas bolsas. Os avanços da tecnologia e a da indústria no século XIX permitiram esse fenômeno, de colocar boas imitações de produtos de luxo no mercado a preços ao alcance de um sector maior da população.




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10 comentários:

  1. Aqui no Brasil eu sempre ouvi a expressão "prata alemã" para talheres que imitavam a prata. São de alpaca e com aquele "banho de prata" por cima que às vezes dura bastante. Eu tenho algumas colheres e facas e uma bandeja, tudo maravilhosamente falso e já com a alpaca já aparecendo bem. Adoro! Mas os talheres de prata pura realmente têm o seu lugar. Tenho uns poucos que deixo numa vitrine. Os de alpaca fiz umas alças e coloco na cozinha enfeitando. Colheres e garfos imensos...será que as bocas eram ou já foram maiores??????
    Abraços.

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    1. orge

      Desculpa-me de só agora responder ao teu comentário, mas tenho andado com uma vida complicada.

      No século XIX, graças a revolução industrial e aos avanços da ciência foi possível produzir toda uma gama de metais, que pareciam prata, mas não eram bem prata, destinados à burguesia e há uma série de variedades, que vão tomando nomes diferentes de país para país. Existiam talheres, bandejas ou açucareiros com um simples banho de prata, em Portugal designada por casquinha, existiam peças como esta faca, numa uma liga em que a prata, tinha uma percentagem muito mais baixa que na prata de Lei, os metais prateados e a ainda alpaca, No fundo , a ideia era vender a bons preços, a um número elevado de pessoas, objectos que faziam o efeito da prata verdadeira, mas que eram de metal simples ou que não eram prata de Lei.

      Mas, essas peças, que hoje tem 100, 150 ou 200 anos são objectos cheios de charme e irresistíveis e que nos mercados de velharias são vendidos por bons preços, muito mais baratos que a prata.

      Um grande abraço

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  2. Continuas na tua senda dos talheres que são ligas com prata, banhadas a prata ou que imitam a prata, como a alpaca, por exemplo.
    Para mim o caso ainda não é muito claro, porque não me debrucei sobre o assunto.
    Sei disto de forma superficial.
    Realmente esta tua pesquisa é preciosa porque me dá informação também, mas algum dia terei de me preocupar com o assunto, pois também tenho algumas peças deste tipo.
    Ainda bem que vais fazendo estas pesquisas tão valiosas.
    Manel

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    1. Manel

      Como referi na resposta ao Jorge, no século XIX proliferaram objectos que imitavam a prata, outros com um banho de prata apenas, e outros ainda com uma percentagem de prata mais baixa que a de Lei. Os nomes vão variando de país para país e por vezes quando estamos a ler sites ingleses ou franceses temos uma certa dificuldade em adivinhar as traduções para português, ou entender o que são exactamente alguns termos designando ligas que imitavam a prata.

      Um abraço

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    1. Cara Margarida

      Muito obrigado por ser uma leitora tão assídua. Um abraço

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  4. Olá Luís. Fantástico post. Não desista deste blog, é uma delicia vir cá. João D´Borges Chaves

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    1. Caro João D´Borges Chaves.

      Muito obrigado pelo seu comentário tão encorajador. Sabe que escrever no blog é um exercício mental, que não dispenso. Por vezes estou algum tempo sem publicar, pois alguns posts
      exigem mais pesquisa e eu demoro algum tempo a redigir. Não sou daquelas pessoas que escrevem um texto num revoada. Ando muito tempo de volta dos textos, corta aqui, acrescenta acolá, de modo a torna-los fáceis de ler e de entender. Um abraço

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  5. Ó Luis,
    tão naïf a desmereceres da tua capacidade de escrita !!! É o contrário, não obstante o trabalho árduo de que partes...
    resulta sempre muito interessante e útil culturalmente.
    Ando a pesquisar colheres , garfos e facas cá por casa ... a seu tempo te darei novas de, porventura , velhos trastes...
    Bli

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    1. Bli

      Muito obrigado. Só consigo escrever textos em que acredite naquilo que estou a dizer e de uma forma pessoal, de outra forma saem uma coisas sem graça nenhuma.

      As famílias mais abastadas tinham sempre as suas pratas, que eram usadas nos melhores dias e passadas de geração em geração. Hoje em dia já poucos usam os faqueiros de prata, porque não podem ir à máquina de lavar a loiça. Mas é interessante tentar perceber o que temos em casa, em que época e local foram fabricados e por vezes até se consegue perceber de que lado da família vieram aquelas peças.

      Bjos e muito obrigado

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