domingo, 30 de maio de 2021

Bernadette Soubirous


Continuo com esta estranha atracção pelos objectos piedosos, por santinhos e toda espécie de beatices. Este gosto já vem desde há muitos anos e recordo-me de quando era casado e vivia na Avenida do Uruguai, em Benfica, uma vizinha nossa veio nos bater à porta, para nos avisar que ia haver uma procissão na rua. Achava que era esse o seu dever, pois tinha ouvido dizer que éramos pessoas muito religiosas. Provavelmente, a porteira, que era uma coscuvilheira deve ter espalhado pelo prédio que tínhamos a casa cheia de santos e cristos e que passávamos a vida com o Credo na boca.

Ainda que seja um homem sem crença, gosto da estética católica, mesmo de algumas peças do século XIX ou inícios do XX, quando a arte cristã começa a perder a sua graça, com os sagrados corações, representando um Jesus delicodoce, loiro e de olhos azuis. Deste período, gosto muitos dos medalhões franceses, com uma esculturazinha muito bem executada, representado, o Cristo, a Virgem ou uma qualquer aparição mariana, encaixilhados em molduras ovais e com vidro abaulado. Uns são executados em espuma de mar, outros numa espécie de caulino e outros ainda em gesso. Normalmente eram objectos de culto, que as pessoas devotas traziam dos centros de peregrinação de França nos finais do século XIX ou inícios do século XX.

O medalhão sem o vidro, retirado pelo meu amigo Manel, para limpeza. A inscrição é ilegível

É o caso desta medalhão, que comprei na feira de Estremoz por um preço irresistível, de pequenas dimensões, com um comprimento de cerca de três dedos. Representa uma aparição mariana a uma menina ou jovem e tem uma legenda, que apesar de avivada com tinta, está muito desvanecida e percebe-se mal. Como estas peças eram feitas em série, resolvi procurar na internet outra igual, com a inscrição legível, pesquisando pelo termos medaillon reliquaire ancien, acrescentando o nome das várias aparições marianas, que houve França ao longo do século XIX e rapidamente encontrei uma igual, num site vendas on-line. Este pequeno medalhão representa a aparição de Nossa Senhora da Conceição à pequena Bernadette Soubirous na gruta de Lourdes, no ano de 1858. Neste peça consegue-se ler a legenda perfeitamente, que é seguinte N. D. de Lourdes priez pour nous, ou em português, Nossa Senhora de Lourdes rogai por nós.

Peça à venda no e-bay onde se consegue ler perfeitamente a inscrição N. D. de Lourdes priez pour nous

Consegui confirmar assim a origem francesa desta peça e identifica-la como sendo a aparição mariana de Lourdes. Quanto à data é mais complicado, mas por intuição, creio que talvez seja dos finais do século XIX ou inícios do século XX.

O culto a Nossa Senhora de Lourdes espalhou-se por todo o mundo católico e por exemplo, em Portugal, Maria de Lourdes ou Lurdes era até há pouco tempo um nome comum e recordo-me de ainda ouvir falar de uma ou outra Bernardette...que não era a Soubirous, bem entendido.

O medalhão encontrou o seu lugar na minha casa e no lado esquerdo há lugar vago para mais um

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Uma galheta de altar francesa da segunda metade do século XIX


Comprar velharias é um vício e por mais que prometa a mim próprio parar, acabo sempre por trazer para casa mais um traste cada vez que vou a uma feira. Foi o que aconteceu com esta encantadora jarrinha, que um vendedor na Feira de Estremoz me colocou na mão por um preço absolutamente irrecusável. É uma pequena jarra com um vidro de muito boa qualidade montada num latão dourado e que me pareceu de imediato um trabalho francês dos inícios do século XX. Nessa época os franceses produziam muitas destas peças em vidro, com as montures em latão dourado, tais como caixinhas para guardar relógios ou jóias ou ainda os globes à mariée.

O vidro está decorado com parras e uvas

Em todo o caso, achei desde logo que esta peça era mais que um bibelot para ornamentar uma casa burguesa do início do século XX e olhando bem para a decoração do vidro feita com parras e uvas, suspeitei que fosse uma galheta de altar destinada a conter o vinho, durante a celebração da eucaristia. 

Para confirmar esta minha intuição, lancei-me então nas minhas buscas no Google. Comecei por abrir na Wikipédia portuguesa o artigo sobre liturgia católica e quando encontrei referência às galhetas de altar, mudei para a Wikipédia francesa para perceber qual era o termo francês usado para designar aqueles objectos litúrgicos. Em França as galhetas de altar são as Burettes e no motor de busca do Google coloquei então a expressão Burettes Eglise Laiton dore antiquites e imediatamente encontrei umas quantas dessas galhetas à venda no e-bay, quase idênticas à minha e datadas da segunda metade do século XIX. 


Conjunto de galhetas de altar e tabuleiro à venda no e-bay

Desta maneira, confirmei que a minha jarra foi fabricada em França, era originalmente uma galheta de altar e fazia par com outra destinada à água. Do conjunto original constava também uma pequena bandeja em metal dourado, com dois espigões onde as galhetas eram colocadas, impedindo que durante a missa, tombassem. E com efeito, a base da minha galheta apresenta um orifício para ser encaixada no espigão da bandeja.



Mas, nem sempre as informações dos sites de venda on-line são fiáveis, pois os vendedores tentam sempre convencer-nos que as suas peças são mais antigas e de melhor qualidade do que na realidade são e continuei à procura pelo Google até encontrar um sítio com informações mais credíveis. Localizei num inventário do Património da Ile-de-France, https://inventaire.iledefrance.fr um par de galhetas, muitíssimo semelhante à minha, também com a bandeja e ainda com estojo original onde estavam guardadas, apresentando este último a marca do fabricante Fabrique d'ornement d'église / Chasublerie - bronzes - orfèvrerie / Maison Dupuis. 5 rue du Vieux Colombier / Paris. Na ficha desta peça, confirmava-se a datação atribuída nas páginas de vendas on-line, segunda metade do século XIX. 


Galhetas com bandeja e estojo. Foto de  https://inventaire.iledefrance.fr

Fiquei a matutar se eventualmente a minha galheta poderia ter saído da Maison Dupuis, na rue du Vieux Colombier, em Paris, mas continuando as minhas pesquisas descobri um catálogo de 1893, da Manufacture d'orfèvrerie, de bronzes et de chasublerie, na rua do Pape Carpantier, em Paris, que entre muitas coisas também fabricava galhetas semelhante à minha. 

Catálogo da Manufacture d'orfèvrerie, de bronzes et de chasublerie

Enfim, é um bocadinho difícil atribuir esta galheta a este ou aquele fabricante francês. Embora todos nós associemos sempre Paris a revoluções, movimentos jacobinos, pintores arrojados, actrizes de teatro excêntricas e de uma forma geral à boémia, a capital francesa era também um centro importantíssimo de produção de artigos religiosos, onde proliferavam casas que exportavam estampas piedosas, imagens de Nossa Senhora de Lourdes, do Sagrado Coração de Jesus e outras beatices para todo o mundo católico, apostólico e romano.

Fabricada em França, na segunda metade do século XIX, a minha galheta para o vinho é apenas uma peça desirmanada de um conjunto, sem grande valor comercial, mas fica muito bem em cima de um armário onde exponho todas as minhas beatices, muitos meninos Jesus, relicários, imagens de vestir, santos de barro que o tempo quebrou e outros objectos de devoção católica, hoje reformados das suas funções originais na casa de um homem sem crença, mas com um gosto por recriar estes ambiente devotos do passado.