Nunca comprei pintura. Segui até esta altura da minha vida, em que estou prestes a fazer cinquenta e três anos, o conselho do meu pai de que quando não se tem meios para comprar boa pintura o melhor é decorar a casa com gravuras antigas. Com efeito, é raro ou impossível encontrar boas pinturas a um preço económico. Na sua qualidade de arte nobre, a pintura carece de mecenas ricos para se desenvolver e os preços praticados foram sempre altos. Digamos, que a boa pintura não está ao alcance de amadores de arte pobretanas.
Mas talvez por estar a trabalhar como bibliotecário num museu há cerca de seis anos ganhei algum olho clínico para identificar uma pintura antiga, mesmo quando ela se encontra no meio da habitual traquitana de uma banca de uma feira de velharias. Recentemente, na exposição sobre a Josefa de Óbidos realizada no Museu Nacional de Arte Antiga, vi uma colecção de pinturas sobre cobre daquela artista, todas de dimensões muito pequenas, que me encantaram pelo seu virtuosismo técnico. Voltei à exposição várias vezes só para admirar aquelas pinturinhas em cobre e registei-as bem na memória.
Santa Madalena de Pazzi. Josefa de Óbidos, óleo sobre cobre. Museu Nacional de Arte Antiga. inv. 208 min. foto matrizpix |
Há poucas semanas, na feira de Estremoz um vendedor colocou-me nas mãos esta imagem de Santa Rita de Cássia de pequenas dimensões e mesmo sem a retirar da moldura suspeitei logo que fosse uma pintura original, um óleo sobre cobre, provavelmente antigo, do século XVIII ou talvez mesmo do XVII. O preço estava muito convidativo e quando dei por mim já estava a caminho de casa com ela debaixo do braço. Quando cheguei a casa, o Manel retirou a pintura da moldura e confirmamos os dois tratar-se de um óleo sobre cobre. Mais tarde, mostrei esta Santa Rita de Cássia aos meus colegas do Museu, que me confirmaram que será uma pintura do século XVIII ou eventualmente do séc. XVII.
Cristo no mar da Galileia. Jan Brueghel, o velho. óleo sobre cobre. Museo Thyssen-Bornemisza |
O cobre como suporte da pintura proporcionava ao artista uma superfície especialmente lisa, que permitia pintar pequenas cenas, plenas de detalhes e minúcias e em que as cores ganhavam tonalidades brilhantes. A partir de meados do século XVI e ao longo dos séculos XVII e XVIII, o cobre foi um suporte de eleição para executar paisagens, retratos e cenas religiosas de dimensões reduzidas. Essas pequenas pinturas eram concebidas para serem vistas muito de perto e eram ideais para espaços privados ou lugares de meditação e oração se o tema fosse sacro.
A pintura tem o seu je ne sais quoi de feminino e poderá ter sido um trabalho freirático, ou seja de uma mulher |
Esta minha Santa Rita de Cássia será pois um trabalho destinado a uma cela de uma monja ou a um oratório particular de uma casa abastada. A pintura tem o seu je ne sais quoi de feminino, como diriam os franceses e poderá ter sido um trabalho freirático, ou seja de uma mulher. Nos conventos, as mulheres estavam libertas dos encargos próprios da condição feminina, como tratar dos filhos, do marido e do governo da casa e poderiam algumas delas dedicar-se a trabalhos artísticos e muitas delas fariam pequenas pinturas, que venderiam para o exterior como forma de arranjar proventos para o convento. No catálogo Rouge et or : trésors du Portugal baroque. - Lisboa : Gabinete das Relações Internacionais, 2001 o Professor Vítor Serrão refere várias monjas portugueses pintoras como a Irmã Joana Batista, do convento das Maltesa de S. João de Estremoz, Cecília do Espírito Santo, freira do convento das Chagas de Vila Viçosa, da nobre Maria Madalena de Castro, de Maria dos Anjos, professa no convento de Santa Maria de Sena, em Évora, de Teodora Maria Andino, activa em Faro e da nobre Dona Ana de Lorena, consideradas pelos documentos da época como artistas de uma certa capacidade e de uma grande sensibilidade.
Em todo o caso, certamente esta pequena pintura foi objecto de grande devoção. Santa Rita de Cássia era vencedora das causas impossíveis e a vida é e foi sempre de tal maneira atravessada por obstáculos impossíveis, que muitos recorreram certamente a ela. Em Portugal, Santa Rita foi também advogada dos terramotos e em muitos registos gravados é representada com um fundo em que se veem casas a desmoronar-se o mar revolto invadindo a terra firme.
Foto de http://www.csarmento.uminho.pt/ |
Em termos de iconografia Santa Rita é mostrada como monja agostiniana, segurando um Cristo e um espinho de Cristo cravado na testa. Segura uma palma, o que nos poderia levar a crer tratar-se de uma mulher que morreu martirizada, mas é de facto uma palma da glória, com três coroas, aludindo possivelmente à sua vida triplamente exemplar: donzela, esposa e monja.
Claro, esta Santa Rita não é uma obra-prima, nem tão pouco tem grande qualidade, mas é uma pintura original do século XVIII a qual não falta algum encanto. Além de tudo, Santa Rita era objecto de grande devoção na casa de Outeiro Seco da minha família paterna. Ter colocado esta imagem nas paredes de minha casa, foi de certa forma dar continuidade a uma tradição.
Santa Rita em minha casa |
Algumas fontes:
-para informações sobre monjas pintoras consultei Rouge et or : trésors du Portugal baroque. - Lisboa : Gabinete das Relações Internacionais, 2001
- acerca de pinturas a óleo sobre cobre consultei um texto sobre Jan Brueghel, o velho, escrito por Beatriz Fernández, no site do Museo Thyssen-Bornemisza
- o site dos Bens Culturais do Patriarcado tem um texto muito bom sobre a vida e iconografia de Santa Rita