segunda-feira, 4 de abril de 2022

Um prato Companhia das Índias: família rosa


Mais uma vez na feira de Estremoz comprei este prato Companhia das Índias muito barato. Claro, o preço foi estupendo pois o prato está gatado e ainda depois de alguém o ter mandado gatar, partiu-se novamente e foi colado. Como sei muito pouco de porcelana chinesa, o facto de estar gatado e o metal dos gatos apresentar alguma ferrugem, foi para mim uma garantia de autenticidade. Assim, soube logo, que não era uma cópia ou uma réplica, pois hoje em dia já ninguém sabe gatar louça, a não ser o ceramista Jorge Saraiva da Oficina da Formiga, mas esse gata os pratos com objectivos, que se podem classificar de estudos de tecnologia antiga.

O prato está gatado e ainda numa segunda fase partiu-se e foi colado 

Para os menos entendidos em cerâmica, a designação Porcelana Companhia das Índias quer dizer porcelana chinesa encomendada por europeus e ao gosto ocidental. O termo tem origem na Companhia das Índias fundada na Holanda no século XVII para trazer produtos orientais para a Europa, mas rapidamente os franceses e os ingleses também criaram as suas companhias das Índias, para receberem os luxuosos bens do Oriente, em particular a porcelana da China. Em Portugal, as primeiras porcelanas chinesas chegaram logo no início do século XVI e como iam da China para a Índia, antes de entrar no porto de Lisboa, aparecem designadas nos documentos antigos como louça da Índia. Companhia das Índias ou louça da Índia são termos já antigos para designarem esta porcelana chinesa ao gosto europeu, mas o termo mais cientificamente correcto é porcelana chinesa de exportação.

O fabrico da porcelana na China é quase milenar e é um universo gigantesco no tempo e no espaço e conhece-lo, ainda que pela rama, implica muito estudo e muito do que sabe é sobre a porcelana produzida para a Europa. Porque os chineses fabricavam porcelana para o seu próprio mercado, que era gigantesco, para o mercado japonês e ainda para o mercado islâmico, sendo estas últimas peças absolutamente deslumbrantes. Para complicar ainda mais a coisa, alguns dos nomes pelos quais conhecemos os vários tipos de porcelana, que chegaram aos portos europeus, como a família rosa ou família verde foram definidos no século XIX pelo coleccionador francês Albert Jacquemart (1808-1875), na sua tentativa de classificação da cerâmica chinesa.


Este meu prato de sopa é da chamada família rosa, não porque a louça desta tipologia fosse decorada com rosas, mas pela razão, que entre 1720 e 1730, na China, introduziu-se uma esmaltagem na porcelana, conseguindo-se obter novos tons entre o rosa e o vermelho, que se tornaram muito apreciados e no início eram só destinados à família imperial. Mas, quando este prato terá sido executado entre 1760 e 1790, já os europeus encomendam às toneladas porcelana nestes tons. Normalmente a louça era produzida em branco no grande centro cerâmico da China, Jingdezhen, embora houvesse outras regiões produtoras e depois transportada para a zona de Cantão onde era pintada e decorada ao gosto europeu, segundo desenhos, gravuras ou mesmo de peças de porcelana europeia, como as de Meissen e cozida novamente e depois exportada para a Europa e mais tarde também para as Américas.

A decoração da porcelana de exportação variava consoante as preferências estéticas do país, que procedia à encomenda. A porcelana para o mercado francês tem um gosto peculiar e distingue-se daquela encomendada pelos ingleses ou holandeses. Da mesma forma a porcelana de exportação para Portugal apresenta características próprias e se queremos estudar ou identificar as Companhias das Índias, que temos em casa teremos, que as comparar com aquelas existentes nas colecções dos museus portugueses.

Pratos do Museu da Quinta das Cruzes. Inv. MQC 460.1-460.13Reproduzido de Porcelana da China : colecção do Museu Quinta das Cruzes / Francisco António Clode Sousa. - 1ª ed. - Funchal : Museu da Quinta das Cruzes, 2005

Com efeito encontrei várias peças com semelhanças a este meu prato de sopa publicadas no catálogo Porcelana da China : colecção do Museu Quinta das Cruzes. O primeiro conjunto apresenta uma borda idêntica em motivo de escamas e é do período da dinastia Quing, reinado de Quialong (1736-1795), com datação aproximada de 1770. 

Prato do Museu da Quinta das Cruzes. Inv. MQC 532. Reproduzido de Porcelana da China : colecção do Museu Quinta das Cruzes / Francisco António Clode Sousa. - 1ª ed. - Funchal : Museu da Quinta das Cruzes, 2005

Igualmente na colecção deste museu, existe outro prato, com a bordadura diferente, mas com um motivo central do mesmo género, um ramalhete de flores, atado com uma fita a fazer um laço, muito ao gosto dos estilos Luís XVI e D. Maria, com datação aproximada de 1760. 

Prato da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga. Inv. 2885 cer.

Também, no Museu Nacional de Arte Antiga está exposto um prato, que apresenta no centro um ramalhete do mesmo género, que foi datado de cerca de 1790. 

Em suma, este motivo da bordadura em escamas e do ramalhete de flores atado com um laço deve ter sido moda entre 1760 e 1790, entre as famílias nobres portuguesas, que encomendavam na China grandes serviços de jantar assim decorados.
O motivo central do meu prato. A flor do meio parece ser uma peónia

O meu prato de sopa será o resto de um grande serviço de jantar, produzido na China, no período da dinastia Quing, reinado de Quialong (1736-1795), entre 1760 e 1790, segundo uma encomenda portuguesa e apresenta os tons característicos da família rosa. É apenas, o fragmento de um conjunto, mas a pintura foi feita com tanta qualidade e minúcia, que consigo entender através desta peça o entusiasmo e admiração, que levou os europeus durante quase século e meio a encomendarem toneladas e toneladas desta louça dita da Índia.

Alguma bibliografia e ligações consultados:

Porcelana da China : colecção do Museu Quinta das Cruzes / Francisco António Clode Sousa. - 1ª ed. - Funchal : Museu da Quinta das Cruzes, 2005.

La porcelaine des Qing : «Famille verte» et «Famille rose» 1644-1912 / Michel Beurdeley, Guy Raindre. - Paris : Office du Livre - Editions Vilo, 1986.

https://en.wikipedia.org/wiki/Famille_rose

http://oficinadaformiga.com/os-gatos-e-os-deita-gatos-the-cats-and-the-cats-applicator/