terça-feira, 30 de maio de 2017

Nossa Senhora dos Mártires: uma estampa que retrata uma imagem verdadeira

Regina Martyrum
Há muitos anos que venho coleccionando registos religiosos do século XVIII, essas folhinhas de papel impressas com imagens de Nossa Senhora, de Cristo e de muitos santos e santinhos, objectos de devoção doméstica, muitas vezes comprados depois de uma peregrinação ou romaria a uma igreja ou capelinha. Mas só nos últimos anos me apercebi que algumas destas estampas são representações realísticas de esculturas, que existiram em tempos neste ou naquele santuário, retratando com pormenor as suas vestes e jóias oferecidas pelos crentes. Por isso, agora sempre que compro um registo novo, onde na legenda se diz que santa ou santo tal era na venerado na igreja x ou y vou a correr à internet procurar informações sobre até que ponto a imagem do meu registo é realista ou se a igreja e a escultura que lhe serviram de modelo ainda existem. Claro, nem sempre estas pesquisas dão grandes resultados, pois muitas igrejas caíram no terramoto de 1755 e o seu recheio perdeu-se, outras ainda, com a extinção das ordens religiosas em 1834, foram demolidas ou se ficaram de pé, os seus bens foram vendidos em hasta pública.
 
"Silva delin.", Carvalho sculp. A estampa foi desenhada por Silva e gravada por Carvalho  (Teotónio José de Carvalho)
Mas desta vez tive muita sorte com uma estampa, que comprei recentemente na feira dos Alfarrabistas da Rua da Anchieta, aqui em Lisboa. É uma gravura que representa Nossa Senhora dos Mártires, Regina martyrum, que reproduz com fidelidade a imagem e respectivo trono e baldaquino, que se encontram ainda na Igreja dos Mártires em Lisboa, conforme pude verificar através de uma simples pesquisa de imagens no Google.
Impressa nos finais do séc. XVIII, a minha estampa retrata fielmente uma imagem que ainda hoje existe na Igreja de Nossa Senhora dos Mártires em Lisboa
Foi uma pesquisa fácil, porque Nossa Senhora dos Mártires é um culto muito lisboeta, cuja origem se prende com a reconquista da própria cidade por D. Afonso Henriques em 1147. Segundo a tradição, os cruzados que vieram ajudar na conquista de Lisboa aos mouros, traziam uma imagem de Nossa Senhora. O nosso primeiro rei fez então um voto, que se conseguisse conquistar Lisboa, mandaria erguer um templo dedicado a Nossa Senhora e de facto assim o fez logo em Novembro de 1147, num local onde tinham sido sepultados os soldados mártires, que pereceram na batalha pela conquista da cidade. Com o passar do tempo esta Virgem Maria passou a ser conhecida por Nossa Senhora dos Mártires.

Naturalmente que a actual imagem de Nossa Senhora dos Mártires não data da idade média, pois muitas campanhas de obras foram alterando o interior e o exterior da igreja.
 
Segundo o texto do Cónego Armando Duarte, escrito no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, a actual imagem deverá datar da campanha de obras de 1750. Com o Terramoto de 1755, a igreja dos mártires ruiu, mas salvou-se a imagem. O templo foi reedificado um pouco mais a norte do primitivo local, ficando a obra concluída em 1784. 

Portanto, a imagem da minha estampa retrata a imagem de roca feita à volta 1750, mas enquadrada no altar de talha construído na campanha de obras, pós-terramoto, que terminou em 1784. 
 
Sanefa do baldaquino
O mais curioso é que este altar foi alterado desde então. No topo, tinha uma sanefa, que foi retirada numa época que desconheço. Essa sanefa não foi uma invenção do gravador para tornar a estampa mais bonita. Ela deve ter existido realmente, pois um altar que se encontra na sacristia conserva ainda uma sanefa igual à da gravura, conforme pode ver no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. 
Na sacristia ainda existe um altar com a sanefa, semelhante a que outrora esteve no topo do baldaquino onde se encontra a imagem de Nossa Senhora dos Mártires
Seria interessante saber se na paróquia ainda se conservam as vestes da Virgem retratadas na estampa, porque muitas destas imagens tinham enxovais riquíssimos oferecidos pela mais alta nobreza.
 
 

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Chávena com passarinho Vista Alegre ou Vieux Paris

No mercado das velharias é frequente encontrar chávenas, bules, açucareiros e outras peças de serviços de porcelana de chá e café do século XIX, sem nenhuma identificação válida de fabricante. Muitas delas identificamo-las inequivocamente como sendo peças da Vista Alegre, pois conhecemos desde há muito o estilo, os padrões decorativos ou as formas e temos peças iguais em casa marcadas ou já as vimos reproduzidas em livros ou em colecções de museus portugueses.

Outras peças, normalmente com decorações mais sofisticadas e sem marca levantam-nos dúvidas e interrogamo-nos sempre se serão da Vista Alegre ou porcelana de Paris. 

Também designada por Vieux Paris, a chamada porcelana de Paris não é nenhuma fábrica, como a Vista Alegre ou Sêvres. Designa a produção de porcelana feita na capital francesa entre o último quartel do Século XVIII e a primeira metade do século XIX. Muito embora a maioria das peças produzidas ou apenas decoradas na capital francesa, não fossem marcadas, o seu estilo influenciou toda a produção europeia, inclusive a nossa Vista Alegre. 
Nos sites de venda online de França, encontramos muitas das peças da última fase do Vieux Paris que juraríamos terem sido fabricadas pela Vista Alegre

Se pesquisarmos no Google pelas expressões tasse porcelaine Vieux Paris Louis Philippe ou tasse porcelaine Vieux Paris XIX siècle encontraremos imagens nos sites de venda on-line franceses de peças, que nos juraríamos serem da Vista Alegre. Lá estão as mesmas formas, as decorações com florinhas e muito ouro sobre branco. Claro, são francesas, porque obviamente no século XIX a França não importava porcelana de Portugal. Mas estas pesquisas aqui e ali nas páginas de venda on-line francesas sugerem-nos que a Vista Alegre usou e adoptou muito dos modelos da chamada Porcelana de Paris, produzida entre 1830-1850 e fabricou-os em Ílhavo pela segunda metade do século XIX fora. Esta é apenas uma conjectura minha, que não é suportada por nenhuma leitura que tenha feito sobre a história da Vista Alegre e vem a propósito de uma chávena muito bonita, decorada com flores e um passarinho, que comprei na Feira de Estremoz.

A chávena é gomada, um formato muito usado na Vista Alegre no século XIX e as florinhas com os dourados são também muito ao gosto da fábrica de Ílhavo. Mas há qualquer coisa de mais invulgar e sofisticado que me faz crer que seja uma produção francesa. Aliás encontrei à venda no e-bay de França, uma chávena com uma decoração muito semelhante, que reforça este meu palpite que seja francesa.
Chávena de porcelana de Paris à venda no e-bay de França
Seja como for, a chávena não apresenta marca de fábrica, apenas um número 2 inciso no pires, que será provavelmente um sinal do operário, uma indicação da dimensão, enfim, uma marca interna da fábrica usada para controlo da produção. Consequentemente não consigo afirmar se o passarinho pintado na minha chávena começou o seu voo em Paris ou Ílhavo. Pessoalmente preferia que o pássaro fosse português, mas a história não é aquilo que nós desejávamos que ela tivesse sido.
 
 

segunda-feira, 8 de maio de 2017

L'heure bleue, par Guerlain: antiga embalagem de frasco de perfume


Coleccionar velharias significa muitas vezes recolher e catar peças que já conheceram melhores dias, isto é, chávenas que pertenceram a grandes serviços de chá, estojos de jóias vazios, frasquinhos de vidro com tampa em prata de antigas caixas de toilette, entretanto desaparecidas, ou ainda gravuras arrancadas de livros. Há sempre qualquer coisa de tremendamente sentimental no coleccionismo destes objectos tornados inúteis pelo tempo.

Talvez porque estes tesouros sem grande valor comercial sejam tantas vezes tema deste blog, um amigo meu, o Vasco, ofereceu-me uma embalagem antiga, que outrora conteve um frasco de perfume da Guerlain. Julgo que o Vasco estava também curioso em que eu publicasse aqui alguma coisa sobre esta embalagem, como seria o frasco de perfume, que em tempos guardou, bem como o nome da fragrância e alguma da sua história e de facto com as facilidades que hoje a internet nos concede, em 10 minutos de pesquisas consegui identificar o nome do perfume e conhecer alguma coisa da sua criação.
O conjunto completo. Imagem retirada de http://www.proantic.com. Infelizmente tenho apenas a embalagem.
Este perfume foi idealizado em 1911 por Jacques Guerlain, quando passeava com o seu filho nas margens do Sena, naquele momento muitas vezes mágico, que medeia entre o pôr-do-Sol e o crepúsculo, em que a luz de Paris ganha um tom azul único. Esse momento pareceu-lhe tão intenso e especial, que Jacques Guerlain sentiu que só o poderia expressar através de um perfume, e assim nasceu a hora azul, ou em francês l´heure bleue.

O perfume foi lançado um ano depois, em 1912 com um frasco desenhado por Georges Chevalier, feito em cristal de Baccarat num estilo arte nova. Quanto à embalagem, não encontrei informações sobre quem foi o responsável pela sua concepção e à primeira vista parece-nos estranho que não seja em tons de azul. Contudo, penso que há aqui uma associação entre  o nome do perfume, a hora, com os livros de horas, essas manuscritos iluminados, de que as bibliotecas e arquivos franceses possuem os mais belos exemplares do mundo. Com efeito, à semelhança de muitos dos livros de horas, que são calendários de orações iluminados com imagens dos trabalhos agrícolas por cada época do ano, também aqui, em cada face da embalagem se mostram diferentes actividades agrícolas realizadas ao longo do ano. Justifica-se assim a opção pelos tons que imitam o couro das encadernações e o pergaminho das páginas.
 L'heure bleue conheceu um enorme sucesso e tem sido fabricado interruptamente desde 1912 até aos dias de hoje, o que torna difícil datar esta embalagem. Talvez dos anos 30 do século XX ou até mesmo dos anos cinquenta, enfim, quem sabe.

Em todo caso, l'heure bleue é considerado último perfume da Belle Époque, esse período em que o brilho de Paris ofuscava o mundo inteiro. Logo dois anos depois, em 1914, começava a Primeira Guerra Mundial e já nada foi como dantes.

Quanto à minha embalagem, que agora perdeu a utilidade original, de conter o aroma dessa hora mágica de 1911, serve agora para guardar uma velha passamanaria, que comprei já nem sei aonde.



Alguns links:
https://elisadefeydeau.wordpress.com/2012/10/10/lheure-bleue-de-guerlain-a-100-ans/

terça-feira, 2 de maio de 2017

A beleza de duas velhas damas

Comprei esta chávena de chá, da Vista Alegre, decorada com florinhas e dourados. O preço foi muito baixo pois o estado de conservação não é dos melhores, apresenta um grande cabelo e os dourados estão muito desvanecidos. O facto de não estar marcada baixou também o preço da peça. Se pelo contrário, a chávena ou o pires ostentassem a marca VA azul o preço teria sido mais caro.
 
Mas que me importa a mim não ter marca, se sei já por intuição que é uma peça da Vista Alegre e os dourados já fanados desta chávena são como aquelas velhas senhoras, que foram muito bonitas na juventude, mas conservaram qualquer coisa da antiga beleza, no olhar, nos gestos ou na elegância do trajar.

Não é que a velhice seja propriamente uma coisa boa. Significa sempre que estamos mais próximos da morte. Mas, talvez por um período de dez ou vinte anos, antes de se cair na completa decadência, alguns de nós bafejados pela sorte alcançam um último momento de esplendor.

Talvez por estas razões associei esta chávena de dourados já fanados a Juliette Greco, que com quase 80 anos, ainda nos surpreendeu a todos com uma interpretação de Les amants d’un jour, um tema difícil, cantado anteriormente pela grande Piaf. Em vez de cantar, Juliette Greco preferiu simplesmente dizer o poema acompanhando a música, que termina precisamente com o som da louça a quebrar-se. Talvez de chávenas como estas...