São Cristóvão é uma daquelas imagens Kitsch, que aqui em Portugal associamos inevitavelmente um certo mau gosto. Não há muitos anos era raro o taxi em Lisboa que não tinha uma medalhinha de metal com o S. Cristóvão no tablier. Esta decoração costumava ser completada com um terço pendurado no espelho retrovisor, bem como uma bandeirinha de um clube de futebol, do Sporting ou do Benfica. Na época, nós, as pessoas de classe média achávamos aquilo tudo muito piroso, mas se pensarmos que Portugal tinha a mais elevada taxa de sinistralidade das estradas europeias, talvez a ideia de colocar uma imagem do patrono dos viajantes não fosse assim tão tola.
Toda esta conversa veio a propósito de uma estampa representando S. Cristóvão, belissimamente emoldurada num tecido bordado à mão, um daqueles trabalhos femininos, de monja ou de menina educada nas freiras, que nunca nos deixarão de espantar pelo virtuosismo técnico e pela decoração preciosa. O bordado está em demasiado bom estado para ser muito antigo, mas a estampa parece definitivamente coisa do século XVIII. Não tem qualquer marca de gravador ou impressor, mas o nome do nome do Santo, está identificado em latim, S. Christophorus, o que me leva a pensar que esta estampa não tenha sido feita em Portugal. Pelo menos, dos muitos registos de Santos impressos em Portugal no século XVIII, que me tem passado pelas mãos, a legenda está sempre em português. Em todo o caso, esta opinião é apenas um mero palpite, baseada na experiência e não em estudos sistemáticos.
Fiz algumas pesquisas na net pelo título em latim S. Christophorus, associado às expressões, engraving ou gravure, tentando encontrar qualquer informação que me permitisse situar esta estampa no tempo ou na produção de um determinado gravador ou País. Logo aos primeiros resultados, apercebi-me que a iconografia de S. Cristóvão se fixou relativamente cedo na arte europeia, segundo Louis Réau, a partir do séc. XIV e o mártir cristão é inevitavelmente representado com um homem possante, de elevada estatura, atravessando um curso de água, com um menino às costas e um bordão nas mãos.
S. Cristóvão, por Ticiano, no Palácio dos Doges, em Veneza |
Porém, no meio da centena de imagens de S. Cristovão, que desfilaram à minha frente descobri que esta estampa se inspira mais ou menos directamente num fresco pintado no século XVI por Ticiano e que se encontra no Palácio dos Doges, em Veneza. A figura do santo e do Menino Jesus é exactamente a mesma, só que invertida, o cenário ao fundo, com uma igreja do lado esquerdo e um monte do lado direito é também idêntico. Em termos iconográficos, esta pintura apresenta uma variante, o menino não transporta na mão um globo, nem existem peixes na água. O fresco de Ticiano deve ter sido muito admirado no seu tempo e a partir dele foram feitas várias gravuras, ou talvez seja mais correcto afirmar, que houve muitos impressores a copiarem algumas gravuras feitas a partir do S. Cristóvão do célebre mestre veneziano.
S. Cristóvão gravado por Andrea Zucchi e inspirado em Ticiano. Victoria and Albert Museum |
Por exemplo, o Victoria and Albert Museum, tem nas suas colecções uma estampa impressa por Andrea Zucchi, 1679-1740, também inspirada directamente na obra de Ticiano, mas de melhor qualidade, que aquela pertencente ao meu amigo Manel. Essas gravuras copiadas ou inspiradas na pintura de Ticiano, chegaram a Portugal, pois nos últimos anos do século XVIII António Joaquim Ribeiro imprimiu uma estampa com um S. Cristóvão, que tem também por modelo a aquela obra do artista italiano. Quase por uma simples amostragem feita na net, consegui apanhar uma sucessão de cópias feitas sobre cópias do fresco de Ticiano, o que nos permite perceber como a gravura foi na arte o veículo privilegiado para a viagem das imagens de país para país ou de um século para o outro.
S. Cristóvão, impresso por António Joaquim Ribeiro. Casa Martins Sarmento, Guimarães |
Sobre quem era S. Cristóvão, não vou adiantar aqui muita coisa, pois este não é um blogue sobre vidas edificantes. Em todo o caso não falta beleza à história desta figura praticamente lendária, cuja principal fonte é a Lenda dourada de Jacques de Voragine. Terá vivido na Ásia Menor talvez no tempo das grandes perseguições de Imperador romano Diocleciano (284-305), em que foram chacinados milhares e milhares de cristãos. Cristóvão era um homem fortíssimo, muito alto, que depois de se ter convertido ao Cristianismo, se dedicava a transportar gratuitamente pessoas de uma margem para a outra do Rio.
Um dia apareceu-lhe um menino, que o pediu para o levar para a outra margem. O gigante meteu a criança ao ombro, mas esta pesava-lhe imenso e fez a travessia muito a custo. Quando no final, Cristóvão observou – Quem és tu menino, que me pesaste tanto, que parecia que transportava o mundo inteiro?
O menino respondeu -Tens razão, peso mais que o mundo inteiro, pois sobre os meus ombros carrego com os pecados do mundo. Eu sou Cristo, procuravas-me e encontraste-me. Doravante, chamar-te-ás Cristóvão (em grego, quer dizer o que leva Cristo) e ao ajudares quem cruzar o rio, estarás ajudando-me. Fixa na terra esse árido tronco, que te serve de báculo e pela manhã vê-lo-ás não só em flor, mas também coroado de frutos. De facto no dia, seguinte a estaca seca plantada na terra, tinha-se tornado numa palmeira, carregada de frutos. Depois deste episódio, S. Cristóvão dedicou-se a evangelização de novas comunidades, e o número de novos praticantes, cresceu como o fruto da palmeira do seu bastão.
Um dia apareceu-lhe um menino, que o pediu para o levar para a outra margem. O gigante meteu a criança ao ombro, mas esta pesava-lhe imenso e fez a travessia muito a custo. Quando no final, Cristóvão observou – Quem és tu menino, que me pesaste tanto, que parecia que transportava o mundo inteiro?
O menino respondeu -Tens razão, peso mais que o mundo inteiro, pois sobre os meus ombros carrego com os pecados do mundo. Eu sou Cristo, procuravas-me e encontraste-me. Doravante, chamar-te-ás Cristóvão (em grego, quer dizer o que leva Cristo) e ao ajudares quem cruzar o rio, estarás ajudando-me. Fixa na terra esse árido tronco, que te serve de báculo e pela manhã vê-lo-ás não só em flor, mas também coroado de frutos. De facto no dia, seguinte a estaca seca plantada na terra, tinha-se tornado numa palmeira, carregada de frutos. Depois deste episódio, S. Cristóvão dedicou-se a evangelização de novas comunidades, e o número de novos praticantes, cresceu como o fruto da palmeira do seu bastão.
Há uma simbologia cristã mais ou menos evidente, nesta história, que é aquele que pratica o bem desinteressadamente, no momento da passagem para o outro lado do mundo, garante a sua salvação. Mas esta narrativa assenta também nos velhos mitos pagãos, como o do barqueiro Caronte, que transportava as almas dos que morriam através das águas do rio Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Contudo Caronte, fazia-se pagar pelo seu serviço, pedindo uma moeda, o óbolo, e Cristóvão transportava desinteressadamente os seus passageiros, o que do ponto de vista ético é um lado muito interessante desta lenda.
Alguma Bibliografia:
Iconographie de l’art chrétien / Louis Réau. Paris: Puf, 1958