Neste
blogue dedicado a velharias não poderia deixar de mencionar, uma das
antiqualhas que desde pequeno me marcou. Creio que ouvir falar o meu pai e a minha avó tantas vezes daquela casa, durante a minha meninice, foi determinante na apetência, que cedo manifestei para as coisas do passado, para a história e as coisas velhas em geral. Ao contrário de Vinhais, poucas vezes dormi lá. Terei lá passado uma ou outra semana nas férias muito pequeno e já tenho poucas recordações do interior da casa. Posteriormente, visitei-a mais vezes, quase sempre a correr, e já a casa estava sem vida, na sua última e derradeira fase, sendo que as minhas lembranças são pouco
significativas.
Claro, lembro-me muito bem de alguns pormenores, como por exemplo, os tectos dos quartos. Quando se é criança, uma das coisas que com mais nitidez se fixa numa casa são os tectos. As crianças são obrigadas a fazer a sesta e enquanto não adormecem, olham fixamente para cima e vão observando os pormenores todos. As rachas tomam formas de animais e pessoas. Tudo é visto e revisto, até que o sono finalmente chega.
Um dos tectos de masseira da casa. O quarto do "Lili"
Por essa mesma razão tenho bem presente na minha memória os tectos de Outeiro seco, que eram tão diferentes das casas que eu conhecia. Formavam pirâmides truncadas, vistas por dentro. Na verdade, como vim a saber mais tarde, tratavam-se dos chamados tectos de masseira, tão comuns na arquitectura solarenga portuguesa.
Apesar dessas memórias, o que foi construindo de Outeiro Seco na cabeça foi um processo à posteriori. O meu pai encheu-me a cabeça com histórias antigas daquela casa, no tempo em que era habitada, em que era a cabeça de uma grande propriedade agrícola, em que ali vivia uma família fidalga respeitada na região, em que existia uma bonita capela cheia de talha dourada, uma vasta biblioteca, e até um museu, cheio de curiosidades reunidas pelo meu trisavó. Também não faltavam pormenores pitorescos às histórias que o meu pai me contava da casa, um quarto secreto em que o meu trisavó se escondeu logo após as incursões do Paiva Couceiro por volta de 1911 ou 1912, ou até uma aldraba, que noutros tempos, quem pegasse nela, ficava ao alcance da justiça.
A capela
Para uma criança como eu, que vivia num bairro banal e triste como Benfica, todas estas histórias soavam fascinantes e encheram-me a cabeça com imagens do passado, que foram determinante nas minhas opções profissionais e nas minhas inclinações culturais. Claro, descender de uma família fidalga, também me tornava diferente dos colegas da escola, pois o ser humano, como toda a gente sabe é dado à vaidade.
Agora, em adulto, tento forçar a minha memória, rebuscando o poucochinho que me lembro do solar. Vejo vezes sem conta dois filmes, que o meu pai fez nos 60, com o recheio da casa completo, móveis, espelhos, sofás, a biblioteca, o museu, e pátio de honra, No primeiro, aparece o meu bisavó e no segundo, a minha bisavó e os meus avós paternos, todos eles hoje já falecidos. Consegui até identificar no filme uma mesa bufete, que hoje me pertence e um conjunto de cadeiras “balonné”, que calharam ao meu irmão., Leio e releio também um livro que o meu pai compilou com as suas recordações da casa, na sua tentativa de preservar um mundo, que já morreu definitivamente.
Um fogão de sala
Há uns tempos, com o meu amigo Manel, fomos até Outeiro Seco, e a partir de uma planta
esquematizada feita pelo meu Pai, este meu amigo arquitecto realizou uma planta muito mais exacta da casa, um documento lindíssimo com alçados e tudo. Foi um processo muito giro, obrigar-me a mim próprio a extrair da memória as poucas recordações, que ainda tinha de Outeiro Seco, para responder as perguntas que o Manel me fazia a toda a hora e a todo o momento sobre a casa e as funções de cada divisão. Foi um pouco, como ser um antigo passageiro do Titanic e 100 anos depois, mergulhar num escafandro, visitar o navio e tentar reconstituir as salas, salões e os quartos á partir dos despojos e das ruínas.
Esse grande solar, casa da minha família paterna, foi vendido nos anos 80 e hoje está completamente abandonado, invadido pelas silvas, esventrado e arruinado. E no entanto, que dignidade e que beleza aquelas ruínas ainda tem.
Porta da sala do Museu no pátio de honra. Aqui desembocaria a segunda escadaria que nunca chegou a ser construída
O Solar dos Montalvões desenvolveu-se em basicamente 4 corpos, que foram sendo construídos ao longo do tempo, em torno de um pátio central, o chamado pátio de honra. No fundo, nos séculos XVII e XVIII, período em que supostamente data a sua construção, as pessoas continuavam inconscientemente com o modelo da domus romana no seu espírito e tendiam a adoptar com frequência esta solução da casa construída em torno de um átrio central.
A casa tem dois pisos, o piso térreo que é o das lojas e o andar superior, que era destinado a habitação e à cozinha. Na parte mais nobre da casa, existiam ainda uns terceiros, que no tempo em que o meu pai os conheceu, já só serviam para arrumos.
Imagem de uma das manjedouras em granito
Para quem não saiba, “Lojas” é a designação tradicional para divisões destinadas a guardar alfaias agrícolas, adegas, gado, cavalos, etc. No andar térreo desta casa, abundam manjedouras em pedra, pois um dos principais construtores da casa, era capitão de cavalos e enfim, queria ter os seus equídeos bem tratados. Apesar da ruína em que está a casa estas manjedouras, ainda hoje são bem visíveis. Esta divisão entre lojas e habitação também é bem característica das casas rurais portuguesas e um dos seus objectivos principais era proporcionar aquecimento às habitações. A minha Tia Chica lembra-se perfeitamente da casa de umas primas algures no Concelho de Vinhais, que se mantinha quente em pena invernia transmontana, graças aos animais que eram conservados nas lojas. Segundo a minha tia, parece é que o cheiro era insuportável, mas naquela época as pessoas estariam certamente habituadas.
Na parte de cima da casa, existia um primeiro corpo com a zona da cozinha, muito grande (Alçado Sul). Depois no segundo corpo (Alçado Nascente), existia a sala de jantar, uma sala polivalente e dois quartos, ambos, com tectos de masseira. O terceiro corpo (alçado Norte) era constituído basicamente por quartos e finalmente existia a parte mais nobre da casa(alçado Poente), com os 3 salões de aparato, a biblioteca, a sala de visitas, o museu e ainda capela. A fachada deste corpo era caiada, e tinha um tratamento arquitectónico mais elegante que os restantes corpos do edifício. Aqui se abria a entrada mais nobre da casa, encimada com pedra de armas. em cuja porta que esteve colocada uma aldraba, que dava direito de asilo, a quem se agarrasse a ela. Sem duvida uma prática do antigo regime, cuja existência terá passado de boca em boca, até aos nossos dias. Segundo o meu pai, seria uma peça bonita, com a forma de um leão (talvez um mascarão) e no tempo do dele, já estaria colocada no "museu"
A fachada nobre do solar dos Montalvões
Na padieira da porta, que se encontra em frente à escada que dá acesso ao segundo corpo, pelo pátio de honra, está gravada uma data, “1782”, o que levou Firmino Aires, no artigo Solar dos Montalvões, publicado na p. 21 da Revista Outeiro Seco, Nov. de 1990, a afirmar que o corpo nobre do Solar (alçado Poente) era o mais antigo, sendo que os restantes corpos seriam de construção mais recente, coeva com aquela data.
Pessoalmente, discordo dessa opinião, embora não tenha documentos ou estudos arqueológicos para suportar este meu palpite. Julgo antes que essa data foi gravada quando da construção da parte mais nobre do solar. Quando ergueram este corpo, foi necessário tratar do acesso aos salões nobres, pois esta alea não tinha nenhuma escadaria interior, bem como ao corpo da sala de Jantar. Doutra forma, os convidados mais distintos teriam que entrar pela cozinha ou pela zona dos quartos e atravessar toda a parte privada da casa para chegar aos salões nobres.
Para esse efeito foi projectada uma dupla escadaria no pátio central, uma das escadarias daria acesso à zona da sala de Jantar, no alto da qual está gravada a referida data, bem como à cozinha, e outra daria acesso directo à sala do Museu e aos salões nobres. Acontece é que e segunda escadaria nunca foi concluída, muito embora tivessem chegado a encomendar a cantaria, pois há uma fotografia do meu avô no pátio com as pedras bem talhadas amontoadas a um canto e o meu pai também ainda se lembra delas. Ainda hoje existe na sala do museu, uma porta virada para o pátio, sem qualquer gradeamento, que seria o local onde a segunda escada desembocaria. Em suma "1782" será antes uma data próxima da construção da ala nobre do solar. Em favor desta minha opinião, está também o estilo arquitectónico desta ala, nomeadamente da capela, cujo barroco já acusa a nova tendência para o classicismo, típica dos finais do século XVIII