Num dos meus anteriores posts, em que contei os
amores da minha trisavô, Maria do Espírito Santo, com um padre, José Rodrigues Liberal Sampaio, mencionei ao de leve, um dos seus irmãos, o Miguel José Álvares Ferreira Montalvão, que é uma personalidade estranha e de que se hoje sabe muito pouco.
Nasceu a 1 de Março de 1838, em Sto. Estevão, aldeia próxima de Chaves, onde os pais residiam na altura. Só mais tarde a família mudou-se para o solar Outeiro Seco. Terá crescido num ambiente onde a instrução tinha alguma importância, o que era raro na fidalguia portuguesa da época, com efeito, o seu pai João Ferreira Montalvão fez estudar todos os seus filhos homens. O Miguel fez Direito, o António Vicente o Curso de Estado-Maior e Engenharia Militar e Civil e um terceiro filho, ilegítimo, também João, foi feito Sacerdote.
O Miguel terminou Direito, em Coimbra, em Junho de 1864, com 26 anos. De regresso a casa, foi administrador do Conselho de Chaves e Juiz de Direito Substituto (segundo o periódico
Aurora de Chaves, 11 de Setembro de 1890) e portanto, tudo indicava que iria ser um senhor respeitável, com um grande bigode artisticamente enrolado e uma figura de destaque na vida pública flaviense.
Contudo, este homem era muito diferente dos restantes, conforme ficamos a saber pelas notícias da sua morte, ocorrida a 8 de Setembro de 1890, aos 52 anos, que encheram os jornais flavienses, nomeadamente o
Comércio de Chaves e
Aurora do Tâmega. Todos eles se lhes referem como o infeliz bacharel em Direito, que há muitos anos estava doido e se encerrava num quarto,
passando o tempo a ler todos os livros que podia obter .
Outro Jornal, o Comércio de Chaves, de 10 de Setembro de 1890, refere que o infeliz vivia encerrado num quarto, não consentia que lhe cortassem o cabelo e a barba e quando alguma criada entrava no quarto para fazer a limpeza o desventurado metia-se debaixo da cama.
O acontecimento impressionou não só os jornais da época, como os habitantes da aldeia. Ainda, hoje, passados 110 anos, segundo o nosso amigo Humberto, correm ainda entre os mais velhos histórias do bacharel louco. Nestes relatos da aldeia dizia-se que o Miguel teria endoidecido por causa de amores contrariados por uma prima. Eu até já pensei nele como o construtor do
mirante, que dava acesso aos terceiros do solar, que segundo a tradição teria sido construído por um antepassado dos Montalvões para avistar a sua amada, numa povoação vizinha. No entanto, a tradição familiar refere que o Miguel Montalvão não morava no solar, mas numa casa vizinha, com uma fachada austera de pedra, mas uns interiores muito bonitos com tectos de masseira.
Casa de Miguel Montalvão
Por estas sumárias notícias dos jornais flavienses, podemos inferir que o Miguel Montalvão era um homem culto, com grandes hábitos de leitura e podemos sem dúvida atribuir-lhe a uma parte da formação da grande
biblioteca do Solar de Outeiro Seco, que posteriormente o Liberal Sampaio, amante da sua irmã, terá completado e enriquecido. Também podemos adiantar que o facto de ser um grande leitor não o terá ajudado a integrar-se na sociedade de um vila, em que 80 % da população era analfabeta e a restante fracamente instruída. E este número não é uma estatística referente à então vila de Chaves, mas ao País inteiro, em 1900.
Fascinado por este indivíduo, de que sabia tão pouco fui à procura de mais elementos e tentei contactar os descendentes dos parentes mais próximos, do Miguel Álvares e da Maria do Espírito e concentrei-me num terceiro irmão, que ao contrário deles fez uma vida mais convencional, o António Vicente Ferreira Montalvão (18-12-1840/19-09-1919).
Fiz umas pesquisas aqui e acolá e acabei conseguir contactar uma bisneta do General António Vicente de Montalvão, uma Senhora distinta e simpática que me abriu as portas da sua casa familiar no Porto. Infelizmente não tinha muitos elementos, pois as famílias, preocupadas com os obstáculos da vida quotidiana acabam por deixar partir os mais velhos sem os interrogar acerca dos acontecimentos mais remotos ou pedir-lhes, que antes de morrerem identifiquem fotografias antigas. Apesar disso e de não ter conseguido obter uma fotografia do Miguel Montalvão, levantei mais um pouco do véu, que cobre estas histórias ocorridas há mais de 100 anos.
A minha prima autorizou-me a fotografar um retrato a óleo representando o seu bisavô em uniforme de gala e onde descobri os mesmos olhos claros da irmã, a Maria do Espírito Santo.
A minha parente também me adiantou, que o General António Vicente ter-se-á afastado da irmã, após o seu envolvimento desta com o padre José Rodrigues Liberal Sampaio, que foi na altura um escândalo muito grande em Chaves. Segundo a minha prima, o António Vicente Ferreira Montalvão terá inclusive prescindindo da herança que lhe cabia no Solar de Outeiro Seco, preferindo provavelmente ficar com outras propriedades da família na região de Chaves, para se manter afastado da relação socialmente condenável, que a irmã mantinha com o padre. A minha prima também desconhecia a existência do irmão louco do seu bisavô, figura que seria também pouco recomendável para os padrões da boa sociedade dos finais do século XIX.
Ao contrário dos irmãos, este António Vicente Ferreira Montalvão teve uma vida convencional. Seguiu a carreira militar, tomando a cavalaria como arma, como era já tradição na família desde pelo menos o seu trisavô, o Capitão de Cavalos, Álvares Ferreira, e fez um belo percurso profissional. Fui nomeado Chefe do Estado-maior da Arma de Artilharia, Grande Oficial da Real Ordem Militar de S. Bento de Aviz, Comandante da Escola do Exército, Vogal do Supremo Conselho de Defesa Nacional e chegou a general de Divisão. Casou também muito bem, com Mariana Mercês Bravo Borges, uma menina da boa sociedade Lisboeta e virtuose de piano. Quando se reformou, regressou a Chaves, mas já os irmãos haviam morrido há muito, o Miguel em 1890 e a Maria do Espírito Santo em 1902.
Ainda não foi desta que consegui discernir ao que precipitou a loucura do Miguel Ferreira Montalvão, mas algumas figuras e cenários do drama começam a ganhar contornos aqui e ali.