sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Liberal Sampaio: 29/10/1935 - 29/10/2010: 75 anos depois da sua morte


Sou péssimo para recordar aniversários. Deixo passar em branco os anos de toda a gente. Talvez seja por não gostar de falar ao telefone, por ser anti-social ou por ter medo de ser rejeitado, enfim, por qualquer dessas razões que o Freud tão bem explica, mas que num blog de velharias não interessam para nada. Mas, hoje decorrem 75 anos da morte do meu trisavô, José Rodrigues Liberal Sampaio e o meu amigo Humberto, que se recorda de aniversários, fez um post sobre o meu trisavô, que sugiro a visita. Já lá deixei o meu comentário.

Deixo-vos com uma fotografia do antigo quarto dele em Outeiro Seco, com os tais tectos em masseira, muito típicos da arquitectura solarenga portuguesa.
Ao meu trisavô, o Lili, como era conhecido pelos netos, dedico-lhe uma frase em latim, que é mais bela e pungente inscrição funerária que conheço e que ele como estudioso de epigrafia latina certamente gostaria, Siti Tibi Terra Leuis (que a terra te seja leve)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Azulejos Miragaia na R. Miguel Bombarda do Porto


Nunca me canso de desfolhar o catálogo da exposição Fábrica de Louça de Miragaia, editado pelo IMC, em 2008. Um dos aspectos mais interessantes de todo este projecto de estudo da antiga companhia de faiança portuense (1775-1850), foi a realização de uma sondagem arqueológica no local da antiga fábrica, em Miragaia.

O trabalho foi executado em 2004 por técnicos da Câmara Municipal do Porto e os resultados revelaram fragmentos de azulejos, certamente desperdícios de peças inutilizadas, mas suficientemente claros, para se neles reconhecer um dos padrões mais vulgar dos prédios do Porto. Isto foi uma coisa extraordinária, porque identificou-se com toda a certeza um padrão de azulejos fabricado por Miragaia. Até esse momento, embora se soubesse que Miragaia tivesse fabricado azulejos e até exportado para o Brasil, não se conhecia nenhuma peça marcada, nem se tinha a certeza acerca de nenhum padrão, que era tradição atribuir-lhe.

O padrão de azulejos em causa é muito bonito, apresenta os azuis incomparáveis com que aquela fábrica se tornou conhecida e ainda um friso encantador, que representa uma roseira trepadora.

Ora no fim-de-semana passado fui à “Imbicta” e como de costume o Manel e eu vagueamos pelas ruas, encantados, a descobrir cantarias em granito, prédios fin-de-siècle cheios de dignidade, janelas com caixilharia fantástica e claro azulejos, que são tão diferentes dos lisboetas.
No meio da Miguel Bombarda, que é aquela rua onde estão todas as galerias de arte do Porto, descobri um padrão exactamente igual ao Miragaia, refrenciado no catálogo da exposição, só que em cores diferentes.

Não só o azulejo base é igual, como a própria cercadura com a roseira trepadeira. Julgo que se poderá atribuir com alguma segurança este padrão a Miragaia.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Na pista de Miguel Álvares Ferreira Montalvão: o bacharel louco


Num dos meus anteriores posts, em que contei os amores da minha trisavô, Maria do Espírito Santo, com um padre, José Rodrigues Liberal Sampaio, mencionei ao de leve, um dos seus irmãos, o Miguel José Álvares Ferreira Montalvão, que é uma personalidade estranha e de que se hoje sabe muito pouco.

Nasceu a 1 de Março de 1838, em Sto. Estevão, aldeia próxima de Chaves, onde os pais residiam na altura. Só mais tarde a família mudou-se para o solar Outeiro Seco. Terá crescido num ambiente onde a instrução tinha alguma importância, o que era raro na fidalguia portuguesa da época, com efeito, o seu pai João Ferreira Montalvão fez estudar todos os seus filhos homens. O Miguel fez Direito, o António Vicente o Curso de Estado-Maior e Engenharia Militar e Civil e um terceiro filho, ilegítimo, também João, foi feito Sacerdote.

O Miguel terminou Direito, em Coimbra, em Junho de 1864, com 26 anos. De regresso a casa, foi administrador do Conselho de Chaves e Juiz de Direito Substituto (segundo o periódico Aurora de Chaves, 11 de Setembro de 1890) e portanto, tudo indicava que iria ser um senhor respeitável, com um grande bigode artisticamente enrolado e uma figura de destaque na vida pública flaviense.

Contudo, este homem era muito diferente dos restantes, conforme ficamos a saber pelas notícias da sua morte, ocorrida a 8 de Setembro de 1890, aos 52 anos, que encheram os jornais flavienses, nomeadamente o Comércio de Chaves e Aurora do Tâmega. Todos eles se lhes referem como o infeliz bacharel em Direito, que há muitos anos estava doido e se encerrava num quarto, passando o tempo a ler todos os livros que podia obter .

Outro Jornal, o Comércio de Chaves, de 10 de Setembro de 1890, refere que o infeliz vivia encerrado num quarto, não consentia que lhe cortassem o cabelo e a barba e quando alguma criada entrava no quarto para fazer a limpeza o desventurado metia-se debaixo da cama.



O acontecimento impressionou não só os jornais da época, como os habitantes da aldeia. Ainda, hoje, passados 110 anos, segundo o nosso amigo Humberto, correm ainda entre os mais velhos histórias do bacharel louco. Nestes relatos da aldeia dizia-se que o Miguel teria endoidecido por causa de amores contrariados por uma prima. Eu até já pensei nele como o construtor do mirante, que dava acesso aos terceiros do solar, que segundo a tradição teria sido construído por um antepassado dos Montalvões para avistar a sua amada, numa povoação vizinha. No entanto, a tradição familiar refere que o Miguel Montalvão não morava no solar, mas numa casa vizinha, com uma fachada austera de pedra, mas uns interiores muito bonitos com tectos de masseira.




Casa de Miguel Montalvão

Por estas sumárias notícias dos jornais flavienses, podemos inferir que o Miguel Montalvão era um homem culto, com grandes hábitos de leitura e podemos sem dúvida atribuir-lhe a uma parte da formação da grande biblioteca do Solar de Outeiro Seco, que posteriormente o Liberal Sampaio, amante da sua irmã, terá completado e enriquecido. Também podemos adiantar que o facto de ser um grande leitor não o terá ajudado a integrar-se na sociedade de um vila, em que 80 % da população era analfabeta e a restante fracamente instruída. E este número não é uma estatística referente à então vila de Chaves, mas ao País inteiro, em 1900.

Fascinado por este indivíduo, de que sabia tão pouco fui à procura de mais elementos e tentei contactar os descendentes dos parentes mais próximos, do Miguel Álvares e da Maria do Espírito e concentrei-me num terceiro irmão, que ao contrário deles fez uma vida mais convencional, o António Vicente Ferreira Montalvão (18-12-1840/19-09-1919).

Fiz umas pesquisas aqui e acolá e acabei conseguir contactar uma bisneta do General António Vicente de Montalvão, uma Senhora distinta e simpática que me abriu as portas da sua casa familiar no Porto. Infelizmente não tinha muitos elementos, pois as famílias, preocupadas com os obstáculos da vida quotidiana acabam por deixar partir os mais velhos sem os interrogar acerca dos acontecimentos mais remotos ou pedir-lhes, que antes de morrerem identifiquem fotografias antigas. Apesar disso e de não ter conseguido obter uma fotografia do Miguel Montalvão, levantei mais um pouco do véu, que cobre estas histórias ocorridas há mais de 100 anos.



A minha prima autorizou-me a fotografar um retrato a óleo representando o seu bisavô em uniforme de gala e onde descobri os mesmos olhos claros da irmã, a Maria do Espírito Santo.

A minha parente também me adiantou, que o General António Vicente ter-se-á afastado da irmã, após o seu envolvimento desta com o padre José Rodrigues Liberal Sampaio, que foi na altura um escândalo muito grande em Chaves. Segundo a minha prima, o António Vicente Ferreira Montalvão terá inclusive prescindindo da herança que lhe cabia no Solar de Outeiro Seco, preferindo provavelmente ficar com outras propriedades da família na região de Chaves, para se manter afastado da relação socialmente condenável, que a irmã mantinha com o padre. A minha prima também desconhecia a existência do irmão louco do seu bisavô, figura que seria também pouco recomendável para os padrões da boa sociedade dos finais do século XIX.

Ao contrário dos irmãos, este António Vicente Ferreira Montalvão teve uma vida convencional. Seguiu a carreira militar, tomando a cavalaria como arma, como era já tradição na família desde pelo menos o seu trisavô, o Capitão de Cavalos, Álvares Ferreira, e fez um belo percurso profissional. Fui nomeado Chefe do Estado-maior da Arma de Artilharia, Grande Oficial da Real Ordem Militar de S. Bento de Aviz, Comandante da Escola do Exército, Vogal do Supremo Conselho de Defesa Nacional e chegou a general de Divisão. Casou também muito bem, com Mariana Mercês Bravo Borges, uma menina da boa sociedade Lisboeta e virtuose de piano. Quando se reformou, regressou a Chaves, mas já os irmãos haviam morrido há muito, o Miguel em 1890 e a Maria do Espírito Santo em 1902.

Ainda não foi desta que consegui discernir ao que precipitou a loucura do Miguel Ferreira Montalvão, mas algumas figuras e cenários do drama começam a ganhar contornos aqui e ali.
As fotografias da casa de Miguel Montalvão e do treslasdo da certidão de nascimento devem-se ao nosso amigo Humberto

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A Imaculada Conceição e um dragão simpático

Um dos aspectos mais gratificantes deste blog é o movimento de pessoas que vão aparecendo, enviando imagens de peças suas, umas pedindo ajuda para identifica-las, outras enviando fotografias pelo mero gosto de partilhar informações e interesses comuns. Há uns tempos, o António entrou em contacto comigo, pedindo-me informações sobre quem lhe poderia restaurar uma Imaculada Conceição em madeira. Recomendei-lhe que entrasse em contacto com o antigo Instituto José de Figueiredo, que está agora integrado no Instituto dos Museus e da Conservação, pois a partir de lá, podiam-no reencaminhar para profissionais credenciados.

O trabalho acabou por ser realizado no próprio Instituto dos Museus e da Conservação e no final, o António mandou-me um e-mail com as fotografias da Imaculada Conceição toda restauradinha e muito simpaticamente autorizou-me a reproduzi-la no blog.
Para perceber o que é esta imagem, convém explicar que ela representa a Imaculada Conceição, um dos dogmas mais estranhos da Igreja Católica, para a nossa sensibilidade contemporânea e descrente. Em termos muito simplistas, o dogma da Imaculada quer dizer que não só Maria concebeu Jesus sem pecado, como ela própria foi concebida sem pecado. Este “arranjo” sobre a pureza de Maria tem a ver com a Divindade de Cristo. Ora, se Cristo tivesse nascido no ventre de uma campónia qualquer da Judeia, então Jesus seria um mero profeta, menos divino e provavelmente não estaria ao nível do Deus Pai e do Espírito Santo. Portanto, os teólogos católicos, que apesar de tudo, gostavam de arranjos racionais à moda da filosofia grega, compuseram a coisa de forma a Maria ser inteiramente imaculada e divinizaram-na também. Este assunto, juntamente com a Santíssima Trindade provocou discussões tremendas entre os cristãos do Oriente e do Ocidente. Ao longo da Idade Média, muitos concílios de altos dignitários eclesiásticos acabaram em cenas de pugilato e o irremediável acabou por acontecer, a separação entre as igrejas do Oriente e do Ocidente e numerosos conflitos políticos e militares surgirão desse cisma. Mais tarde, a Santíssima Trindade e o dogma da Imaculada Conceição de Maria dividirão novamente católicos e protestantes, que se defrontarão em lutas fratricidas, em França e na Alemanha, nos século XVI e XVII. As guerras civis na Irlanda do Norte e na ex-Jugoslávia, terminadas há bem pouco tempo foram os últimos conflitos entre Cristãos divididos por causa de dogmas deste calibre.

Voltando à Imaculada Conceição esta devoção foi extremamente popular em Espanha, Portugal e Itália. Terá sido graças a sua intercessão, que em 1571 espanhóis, italianos e austríacos venceram os turcos na batalha naval do Lepanto, que travou de vez o avanço do Islão no Mediterrâneo. Em 1646, o nosso D. João IV, perfeitamente em pânico com a perspectiva de defrontar a Espanha, uma das maiores potências militares da época, fez aclamar nas cortes a Imaculada Conceição Rainha de Portugal e desde essa altura, os reis portugueses nunca mais foram coroados. Durante a cerimónia de entronização do novo rei português, a Coroa permanecia numa almofada ao lado.
Em termos iconográficos, esta é a imagem da Virgem Maria, antes do nascimento de Cristo, representada como a nova Eva, aquela que resgatará os pecados da anterior Eva do antigo Testamento, esmagando o mal, aqui representado pelo Dragão. A serpente é mais vulgar na iconografia da Imaculada Conceição para representação do mal, mas em Portugal, preferiu-se muitas vezes usar o dragão, correspondendo a uma visão do Apocalipse: Depois, apareceu um grande sinal Céu: Uma mulher revestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e una coroa de duas estrelas sobre a cabeça, Eslava grávida, com dores de parto, e gritava com ânsias de dar ti luz. Apareceu então outro sinal no Céu: Um grande dragão vermelho com sete cabeças, dez chifres, e, sobre as cabeças sete diademas, A sua cauda varreu a terça parte das estrelas e lançou-as sobre a terra: deteve-se diante da mulher que estava para dar à luz. Preparando-se para lhe devorar filho logo que ele nascesse, Ela deu à luz um Filho, um Varão, que há-de reger todas as nações com ceptro de ferro; e o Filho foi arrebatado para junto de Deus e do Seu trono.

A imagem não apresenta o crescente lunar, elemento típico da iconografia da Imaculada.

Pessoalmente fiquei encantado com o dragão da imagem, que antes do restauro nem se via. Parece um dragão brincalhão, daqueles que aparecem nos filmes da Walt Disney, o que só vem reforçar uma ideia que já foi várias vezes abordada neste blog. Até ao século XIX, a arte portuguesa, mesmo quando representa temas que se prestam ao soturno e ao terrível, raramente é macabra. Apresenta sempre um ar intimista, familiar e até jocoso, como este dragãozinho de brincar.
Ao contrário de mim, o António está fascinado com o movimento das vestes, que parecem sopradas por um vento barroco e cheio de caprichos.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Machado neolítico ou uma peça sobrevivente do Antigo Museu do Solar de Outeiro Seco



Não me recordo se tinha prometido à Maria Isabel escrever sobre instrumentos do Neolítico ou se sido a nossa seguidora a pedir-me para falar nestas pedras polidas. Em todo o caso, como sei que a Maria Isabel gosta de pedras, este post é-lhe dedicado, um pouco à maneira, daquele célebre programa de rádio em que se telefonava a pedir discos.

O que vemos aqui nestas fotografias é pois um machado neolítico, um instrumento produzido, mais ou menos à volta de seis ou quatro mil anos antes de Cristo, na região de Chaves.

Neolítico quer dizer, nova pedra, isto é, o período em que há uma nova técnica de trabalhar a pedra, o polimento, em oposição ao período anterior, o Paleolítico (Pedra Antiga), em que a pedra era lascada.

De facto, neste machado podemos observar um perfeitíssimo trabalho de polimento característico do Neolítico, em que os artificies conseguiram um gume, que apesar de não ser usado há seis mil anos, continua afiado. Nota-se também uma pequena depressão de lado, que correspondia ao local onde era fixo o cabo. Machados Neolíticos no Museu Carlos Reis, em Torres Novas

Para os menos entendidos de história, o Neolítico caracteriza-se pela descoberta da agricultura e da pastorícia. O Homem deixa de ser apenas caçador e recolector e passa a produtor. No fundo, o ser humano descobre como se processa sexualidade dos animais e a reprodução das plantas e passa a intervir, manipular e a alterar esses processos.

A sala do museu do Solar de Outeiro Seco. Na Chaminé observam-se dúzias de pequenos artefactos pré-históricos em pedra

Este machado, que sobreviveu seis mil anos às agressões do tempo, tem uma história recente curiosa. Fez parte do chamado museu do Solar de Outeiro Seco. José Rodrigues Liberal Sampaio, o meu trisavô recolhia, sem grande critério e um pouco por toda a parte peças arqueológicas. Tinha o espírito coleccionista da época, que consistia em recolher peças dum passado remoto, sem assinalar a sua proveniência, ou localização na jazida. Enfim, fazia o que podia numa época em que os seus conterrâneos ignoravam completamente o valor da pré-história. E é curioso, porque se tornou conhecido na região por esse seu estranho amor a pedras e moedas velhas. Já apanhei umas quantas cartas dirigidas a ele, em que um lhe promete enviar uma moeda do tempo de D. Miguel ou uma outra, como esta que reproduzo parcialmente, que lhe envia pelo Manel, “essa pedrinha, por me lembrar, que lhe darão algum apreço para o Museu”. Exemplificativa do coleccionismo do meu trisavô, esta carta foi escrita em 13 de Abril de 1924, por uma tal Senhora Custódia Florinda Fidalgo.



Depois disso, o machado foi-me dado pela minha avó Mimi e usei-o muito, na juventude, quando dei aulas no secundário, para exemplificar aos miúdos o Neolítico. Depois do meu divórcio, ficou em casa da minha ex-mulher, mas fui busca-lo há uns dias. Sentia-lhe a falta.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

S. Bento de Núrsia


Como todos os seguidores deste blog já sabem tenho uma paixão por registos de santos do século XVII, essas imagens piedosas, que antigamente as pessoas guardavam nos livros de orações ou então emolduravam com restos de passsamaneria, aproveitada de vestidos ou de trajes eclesiáticos.

Esta gravura de S. Bento de Núrsia de pequenas dimensões foi muito bem executada. Mas, não é só o seu desenho muito preciso, que me interessa, é também a figura, porque uma boa parte do que é hoje o nosso continente e a nossa cultura, deve-se a este Santo, que a Igreja católica transformou muito justamente em Santo Padroeiro da Europa.

S. Bento de Núrsia (480- c. 547) é o fundador da regra e ordem de S. Bento e o pai do Monaquismo ocidental.

Antes de S. Bento o monaquismo era uma prática mais ou menos desorganizada e sobretudo individual. As últimas décadas do Império romano e os tempos que se lhe seguiram foram de intensa fé e havia muitos homens e mulheres, que abandonavam o conforto das cidades para procurarem uma vida de despojamento, passada a meditar e rezar, em locais ermos e afastados do mundo. Normalmente faziam-no a título individual e depressa houve exageros de fé e devoção, que raiavam quase a loucura. O mais célebre desses eremitas, foi S. Simeão o Estilita, (392 - 459) que viveu no alto duma coluna de 17 metros, durante 39 anos.

Outro caso conhecido é o de Maria Egipcíaca (século V), que deixou para trás uma vida de cortesã de luxo na cidade de Alexandria, para viver no deserto durante 47 anos na mais completa solidão, tendo apenas Deus por companhia. Ao fim desses anos, quando São Zózimo a encontrou no deserto as roupas tinham-se desfeito e apenas os seus longos cabelos lhe cobriam a nudez.
Sta. Maria Egipcíaca do Museu Nacional de Arte Antiga

Outros devotos juntavam-se em comunidades religiosas, mas cada qual vivia um pouco à sua maneira e era muito vulgar os conflitos estalarem entre os seus membros.

Com S. Bento de Núrsia esses excessos e loucuras acabaram. Fundou uma comunidade baseada numa regra. Segundo esta Regula monasteriorum a comunidade passa ser dirigida por um abade (que quer dizer, pai, em grego), que a faz respeitar aos monges quatro princípios essenciais: a moderação, a gravidade, a austeridade e a doçura.

A regra vai servir de inspiração à organização de todas as comunidades monásticas do cristianismo ocidental e sobre ela directamente se edificam duas grandes ordens religiosas, que ajudaram a formar a Europa, Cluny e Cister, que são reformas da primitiva ordem de S. Bento. Os eremitas, anacoretas e outros individualistas deixam de ter lugar neste novo espírito de organização religiosa.


Relativamente à iconografia, S. Bento é aqui representado como Abade, com o respectivo bastão e traz na mão um cálice de onde sai uma serpente, que é alusão aos problemas que teve na organização de um mosteiro em Vicovaro, em que os monges insatisfeitos com as suas tentativas de impor a autoridade na vida da comunidade o tentaram envenenar, Segundo a lenda, quando S. Bento abeirou os lábios do cálice contendo o vinho envenenado, saiu uma serpente e o recipiente desfez-se em pedaços.

A gravura saiu das oficinas de um tal Santos, que segundo o Roteiro da Colecção do Museu Nacional de Soares dos Reis. Lisboa: IPM, 2001, p. 88 é um dos gravadores impressores mais activos da cidade do Porto.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Solar dos Montalvões: alçados, plantas e legendas












Recentemente recebi alguns pedidos de apoio de estudantes de arquitectura do Porto, pedindo elementos sobre o Solar dos Montalvões, para elaborarem um projecto de recuperação. Ainda que se vá tratar de mero exercício académico, como membro da família Montalvão fico muito feliz por saber que alguém fará um projecto de reabilitação e por isso disponibilizo todas as plantas e alçados do edifício, juntamente com as legendas, que revelam a forma como a casa era utilizada. Julgo que esta informação poderá ser também útil às gentes de Outeiro Seco e Chaves, pois o solar há muito que deixou de ser da família e faz parte integrante do património histórico do Concelho, ainda que esteja votado ao mais triste e desolado abandono.

Chamo também à atenção para o facto de que a distribuição das divisões corresponde à utilização que a família Montalvão deu à casa durante Século XX. Nos séculos XVII, XVIII e XIX as funções das divisões eram necessariamente diferentes, que aquelas apresentadas aqui. Por exemplo sabemos que o uso de uma divisão reservada à sala de jantar é um hábito que data dos finais do século XVIII e só se generalizou ao longo do século XIX. Também sabemos que em muitas casas portuguesas persistiu até muito tarde a sala do estrado, uma divisão com uma plataforma em madeira onde as mulheres se sentavam no chão, à maneira oriental.

Os dados que forneço são para usar à vontade, mas peço que refiram que as plantas e os alçados são da autoria do Arquitecto Manuel Sousa Cardoso (excepto a última), a compilação dos dados é de José Manuel Montalvão Cunha, todos disponíveis em http://velhariasdoluis.blogspot.com/ , o blog de Luís Montalvão.

01 - LOJA - Destinada inicialmente a cavalos. Havia baias em pedra e aros de ferro para prender os mesmos. 02 - LOJA - Havia 3 tulhas para cereais. Urna grande, para centeio. Duas mais pequenas, para trigo.
03 – CAPELA
04 - ADEGA
05 - BICA
06 - LOJA - Pequena loja que servia para criar coelhos.
07 - LOJA - Loja inicialmente para acolher cavalos. Era agora preparada para armazenar batata. 08 - ADEGA
08a- LOJA - Destinada a guardar baratas ou galinhas.
09 - LOJA - Destinada a guardar galinhas e patos.
10 - PÁTIO PEQUENO
11 - LOJA - Em destinada a porcos. No meio, havia uma enorme pia de granito, que servia para os porcos comerem, a comida que era deitada do andar de cima, por um alçapão aberto no chão da cozinha.
12 - LOJA - Destinada aos porcos. Tinha também uma pia de granito por baixo de outro alçapão.
13 - LOJA
14 - ADEGA
15 - LOJA - Para esta loja, davam as 2 retretes do andar superior. O chão, estava cheio de palha, que era substituída regularmente.
17 - BICA
18 - JARDIM
19 - BALCÃO
20/21 - CASAS DE BANHO
22 - CORREDOR
23 - QUARTO DA MIMI -
24 - QUARTO DOS AVÓS - Para entrar neste quarto, tinha de se subir um degrau. Na parede que dava para a sala de jantar, havia uma «roda», que talvez tivesse servido para passar comida da sala de jantar para este quarto. Nessa época estava desactivada.
25 - SALA POLlVALENTE
26 - SALA DE JANTAR -
27 - TRÊS DEGRAUS - Para passar à cozinha, tinha de subir-se três degraus.
28 - COZINHA - Era o maior compartimento da casa, dividido em duas partes. Uma parte, com o chão lajeado a granito, a outra parte com o chão a madeira. A parte lajeada tinha a grande lareira, ladeada por dois escanos.
29 - 30 - QUARTOS - Eram quartos das empregadas
31 - ARRUMAÇÃO - Era utilizado como quarto das empregadas e servia ao mesmo tempo de arrecadação. Antes de um grande incêndio, tinha um outro andar que ardeu completamente, nunca mais sendo reconstruído.
32 -CORREDOR - Fazia a ligação com a parte nobre da casa
33 - QUARTO DO LILI
34 - ARMÁRIO NA PAREDE - Mesmo em frente á porta do quarto do Lili,
Este armário, tinha uma característica especial. Dava acesso a um quarto secreto, que pelo menos por uma vez salvou o Liberal Sampaio da prisão.
35 - VARANDA - Esta varanda, tinha vários escanos e bancos encostados à parede. Era também aqui que o feijão era seco ao sol e descascado.
36 - QUARTO -
37 - QUARTO DAS ARMAS
38 - QUARTO PEQUENO -
39 - QUARTO –
40 - QUARTO - com escadas que davam acesso ao andar superior.
41 - BIBLIOTECA
42 - SALA DE VlSITAS. Tinha um grande fogão de sala
43 - SALA D0 MUSEU - Era aqui, que estava previsto ser a entrada principal do Solar, pois, seria ligada ao pátio pequeno por escadaria, nunca terminada. No topo da sala, uma porta com dois degraus, ligava ao coro da capela. Era deste local , que os habitantes do solar assistiam aos Ofícios de Domingo.
44 - MIRANTE - Este acrescento, construído em madeira, foi mandado fazer por um dos Montalvões, para mais facilmente poder avistar os sinais feitos pela sua amada, moradora num solar vizinho
45 - SALA –
46 - SALA
47 - SALA –




ANEXOS
48 - CASA DO LAGAR
( a ) Loja onde eram engordados porcos
(b ) loja onde estava o lagar. Este era construído em granito da região, com grandes lajes maciças. A trave de madeira da prensa, dividia-o em duas partes iguais.
49 - PORTA DE ENTRADA LATERAL -Fazia a ligação do pátio grande com rua principal da aldeia.
49a- PORTA DE ENTRADA - Fazia a ligação do pátio grande com a rua principal da aldeia. Dava passagem a carros de bois carregados. Era protegida por um telheiro de 2 águas.
50 - TELHEIRO - Protegia um grande forno de cozer o pão. Este era feito de barro branco e tinha uma cruz gravada por cima da boca. Havia sempre muita lenha a secar.
51 - CASA DOS CASEIROS - LOJA - Tinha um grande forno de cozer o pão. Servia também para guardar madeira serrada e rachas de pinho para os fogões de ferro.
52 - CASA DOS CASEIROS - LOJA - Era a segunda loja dos coelhos.
53 - CASA DOS CASEIROS - LOJA - Esta loja era aproveitada para engordar porcos.
54 - CASA DOS CASEIROS - ESCADA DE PEDRA - Dava acesso ao primeiro andar.
55 - CASA DOS CASEIROS - ESPIGUEIROS - As paredes eram feitas de ripas de madeira. Depois da colheita do milho, ficavam cheios de espigas a secar.
56 - CASA DOS CASEIROS - SALA - Sala bastante ampla, com lareira para cozinhar e com duas janelas para a rua principal da aldeia. Esta sala, comunicava com dois quartos, cada um uma janela que dava para o pátio grande. Estes aposentos, eram ocupados pelos criados de lavoura.
57 - MIRANTE
58 - GARAGEM - Esta garagem ficava do outro lado da rua principal da Aldeia, em frente da CASA DOS CASEIROS.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Todos iguais e todos diferentes

Recentemente, quando fui visitar o Museu Nacional do Azulejo com os meus filhos, descobri na sua livraria, o catálogo de uma exposição, realizada em 1999, intitulada Formas de devoção. O livrinho é uma selecção de objectos de devoção em cerâmica vidrada, material que no passado era mais barato e portanto a maioria das peças apresentadas são de carácter mais popular. Lá aparecem as pequenas estatuetas do Brioso, que a nossa Isabel tanto gosta, pias de água benta, muitos registos de azulejos, sendo que alguns deles são de alminhas, umas das minhas paixões.


Pia de Água Benta de Coimbra, Museu Nacional de Arqueologia, inv 1148


A maioria das peças tem um ar imperfeito, imperfeição essa que resulta de uma grande produção, pois eram objectos baratos, destinados a devoções de gente pouco endinheirada. Saíam de moldes que eram usados até estarem completamente gastos e eram pintados rapidamente com tintas, cujo tom variava cada vez que se fazia uma nova mistura. Talvez por causa da rapidez com que tinham que executar as peças, os artesãos tinham também uma pincelada mais solta e livre. O resultado, foi que estas peças, que eram produzidas em grande quantidade, tornaram-se involuntariamente em obras únicas.



Alminhas, da colecção António Capucho


Toda esta conversa vem a propósito de ter descoberto no catálogo, umas alminhas que na altura pertenciam à colecção António Capucho, idênticas as que o Manel e eu descobrimos em Óbidos e que mandei reproduzir na oficina da Cristina Pina, aqui na Rua de S. Vicente, em Lisboa.






Alminhas numa rua de Óbidos



De facto, comparando, uma e outra peça, percebemos que terão saído da mesma oficina e da mesma matriz, mas que em consequência duma produção imperfeita ou descuidada são peças únicas e esse é o seu encanto.




Alminhas executadas pela Cristina Pina a partir do original de Óbidos

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Ainda mais variedades de cantão popular: as travessas do Manel

As várias variantes que a faiança portuguesa produziu a partir do willow pattern não deixam de nos surpreender. O meu amigo Manel concordou em mostrar duas travessas suas, que comparadas com uma obra do Museu Abade de Baçal e uma peça minha, evidenciam uma linha de evolução muito precisa do motivo decorativo cantão popular.

1- Primeiro, olhamos bem para a minha travessa e lá vemos o Palácio do Mandarim, com uma árvore, a ponte, por onde os jovens fugiram, bem como os passarinhos, em que se transformaram os dois amantes, que protagonizaram a paixão do willow pattern.


2- Na segunda, travessa, que pertence ao Museu Abade de Baçal, em Bragança, o Palácio do Mandarim, aparece ladeado por duas árvores, com uma folhagem muito diferente do primeiro e ainda duas pontes.

3- Depois, nesta travessa do Manel, o artista da oficina de cerâmica, fartou-se da arquitectura oriental, resolveu adaptar o palácio do mandarim, acrescentou-lhe uns andares, ocidentalizou-o aqui e ali e o resultado é uma espécie de prédio pombalino. Mas as árvores são idênticas à travessa do Museu brigantino.

4- Na quarta travessa, também do meu amigo Manel, o aprendiz que trabalhava para o artista que pintou o prédio pombalino, já foi promovido a operário e resolveu fazer um aggiornamento no motivo central e o prédio pombalino, transformou-se numa verdadeira cidade, com casas, torres, um parque e umas manchinhas, que parecem representar pessoas.

Contudo, de travessa para travessa, mantem-se sempre a mesma cercadura, que é uma abstracção do motivo da corda. A primeira, a terceira e a quarta travessa apresentam também o mesmo formato ovaloide, com um recorte a sugerir vagamente uma folha.


Por mera intuição, presumo que datem do século XIX. Como nenhuma destas peças está marcada, vamos lá nos saber que oficina ou oficinas as produziram ?