Herdei esta terrina da minha avó paterna, bem como umas quantas peças avulsas de serviços da Vista Alegre. Estavam no Solar de Outeiro Seco e por isso tem um valor sentimental para mim, já que acabei por receber pouca coisa daquela grande casa. Quando olho para elas, ainda consigo ver a sala de jantar daquela casa, com a sua grande mesa cheia de gente, um louceiro em estilo renascença e uma mesa pequenina onde nós os miúdos comiam. Já quase que nem sei se essa recordação da sala cheia de gente é minha ou se um produto do que eu imaginei durante muitos anos a partir das histórias do meu pai. É pena do que nunca ninguém tenha fotografado ou filmado aquela divisão com o seu recheio original.
Estas peças herdadas são todas elas do 3º quartel do século XIX e apresentam uma decoração com delicadas florinhas, muito típica daquela fábrica de Ílhavo. Aliás foi a partir daí que comecei a comprar muitas peças da Vista Alegre deste período.
A forma desta terrina é do chamado estilo neo-rocaille, posto em moda por Jacob Petit, em França, por volta de 1830 e que prolongou até cerca de 1880, altura em que os fabricantes de cerâmicas, influenciados pelas artes do Japão começaram a fabricar peças mais simples e despojadas. Se o rococó ou rocaille do século XVIII já era por si um estilo exagerado, o neo-rocaille do século XIX tornou-se então excessivo, tal era a profusão de dourados pintados sobre formas complicadas, mas este era o gosto de uma época, onde os interiores queriam-se carregados de mobília, bibelots, quadros e pesados reposteiros, cheios de berloques.
Serviço de chá neo-rocaille de Jacob Petit. Imagem retirada de https://www.etsy.com/listing/698653575/reserved-jacob-petit-o-old-paris-rococo?show_sold_out_detail=1&ref=nla_listing_details |
Aliás a moda neorrococó ou neo-rocaille persistiu para lá da simplicidade do japonismo e em pleno século XX, as famílias continuaram a encomendar mobílias em estilo D. José para os quartos de dormir, ou a comprar salvas de prata ao gosto rocaille para exibir na sala de jantar. Aliás, resolvi acompanhar estas fotografias com algumas peças de um faqueiro em estilo D. João V, que a minha avó recebeu como prenda de casamento em 1930, numa época em que já os objectos utilitários modernistas de desenho funcional faziam furor na Europa. Mas, em 1930, as pessoas tradicionais preferiam apostar nos velhos estilos do passado do que comprar cadeiras Barcelona, ou serviços em porcelana desenhadas por artistas da Bauhaus.
Apesar da forma arrebicada neo-rocaille, esta terrina da Vista Alegre consegue ser uma peça sóbria, mediante o uso de uma decoração muito simples, só com umas rosas e umas folhinhas. Creio que conseguir adaptar as várias modas das artes decorativas com uma certa simplicidade e bom gosto foi uma característica da Vista Alegre ao longo dos tempos.
Esta terrina que é obviamente da Vista Alegre apresenta um borrão no lugar do logótipo da marca, mas parece-me que corresponderá à marca nº 20, usada entre 1870-1880. Tenho também três chávenas da mesma decoração que vieram também do Solar de Outeiro Seco e apresentam o mesmo borrão. Será que essa manchinha azul corresponderia a um código interno, indicando que se tratava de peças de segunda escolha? Enfim, quem sabe.
O tardoz |
Também no tardoz apresenta um nº 10 inciso. Ainda pensei tratar-se da medida do diâmetro, mas nem a base nem o bojo apresentam 10 cm de diâmetro, quer à largura, quer ao comprimento. Mas na pág. 100 da obra A Fábrica da Vista Alegre : o livro do seu centenário 1824-1924. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1924 encontrei finalmente uma explicação para esses números incisos. Cada oleiro marcava as suas peças com um número gravado com um cunho de madeira. Igualmente há um número pintado, o nº 7, que no meu post de 30 de Março de 2020, demonstrei que não identifica uma decoração. Pela mesma lógica poderá ser o número próprio de cada pintor?
Sei que não estou a trazer muitas novidades sobre a Vista Alegre, mas nestes tempos de incertezas, partilho com todos vós algumas imagens agradáveis.
Sei que não estou a trazer muitas novidades sobre a Vista Alegre, mas nestes tempos de incertezas, partilho com todos vós algumas imagens agradáveis.
Alguma bibliografia:
A Fábrica da Vista Alegre : o livro do seu centenário 1824-1924. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1924
Le XIXe siècle français / dir. Stéphane Faniel. - Paris : Librairie Hachette, 1957. - (Connaissance des arts ; 2)