Este bibelot deve ser sido das últimas peças, que comprei antes da pandemia. Como todos os bibelots é um objecto inútil, que não serve para nada a não ser para apanhar pó, mas eu perco-me com estas peças em biscuit do início do século XX. Recordam-me as fotografias antigas dos nossos avôs, em que as crianças envergam bibes cheios de folhos, trajes de marujo e estão tão quietas, com um ar tão comportado, como se nunca se tivessem sujado com cerejas, andado à bulha com os irmãos ou entornado um prato de sopa na toalha de linho bordado durante o jantar de cerimónia.
Nesta peça os dois meninos são tão bem comportados, que imitam as atitudes dos adultos. Envergando um barrete frígio, o menino prepara um cachimbo enquanto observa a menina, que lê atentamente um livro de histórias. Como se usava na época, ela tem dois laços, um ao pescoço e outro na cabeça por cima da touca. Esta cena seria hoje impensável. No presente, as crianças não se portam irrepreensivelmente, vestem fatos de treino, usam o boné ao contrário, jogam nas consolas ou nos telemóveis e sobretudo não fumam. Nos Estados Unidos deve ser até proibido comercializar estatuetas com meninos a preparem-se para fumar e a União Europeia também já deve ter feito qualquer directiva sobre o assunto.
Mas na realidade, não consegui descobrir nada desta peça. Pelas toilettes dos meninos imagino que terá sido fabricada entre 1900 e 1914. Não está marcada, apresentando apenas um número de série atrás, o 2845, que se deve reportar ao molde e não ao centro de fabrico. Os grandes produtores de figuras em biscuit nestes anos eram os alemães, que inundavam o mercado com as suas figurinhas de meninos, destinados aos lares burgueses. Contudo, esta tradição de fazer o biscuit em branco é francesa e começou no século XVIII em França, na fábrica de Sèvres e a ideia era imitar a estatuária em mármore, num material mais barato e susceptível de ser produzido em grande número. Desde essa época e pelos séculos XIX e XX fora, Sèvres e outras fábricas francesas produziram milhares destas figurinhas em biscuit branco, copiando modelos de escultores clássicos ou neoclássicos ou inspirando-se nas cenas galantes à moda de Watteau, com pastoras e cortesãos namoriscando ou então com os inevitáveis putti.
Estas figurinhas ficavam muito bem em cima de cómodas ao estilo Luís XVI, consolas ou a servirem de garniture de uma chaminé ou para decorarem mesas de jantar, os chamados surtouts de table. Também desde o século XVIII, a montagens de peças de biscuit ou porcelana em bases de bronze ricamente trabalhadas era uma característica muito típica dos mestres franceses. Esses trabalhos ficaram conhecidos pelo termo francês montures.
A típica garniture de chaminé ao estilo de Sèvres. Garniture é o termo francês que designa as peças a serem colocadas por cima de um fogão de sala e que devem ser sempre em número ímpar. |
Contudo, esta minha peça de biscuit não representa vitórias aladas, não copia nenhuma escultura do Canova nem representa puttis brincalhões, mas antes dos dois meninos vestidos à moda do período que vai entre 1900 e 1914. A monture é feita sobre uma base de latão dourado, em vez de bronze. Por outro lado, neste período, as activas fábricas inglesas já copiavam há muito as estatuetas de Sèvres e também caminhava-se a passos largos para uma época de globalização e era natural que na província alemã da Turíngia, celebre pelas suas porcelanas e biscuits se fabricassem peças ao gosto francês.
Em suma, esta peça é feita ao gosto francês, mas eventualmente poderá ter sido feita na Alemanha ou até mesmo na Inglaterra.
Em suma, esta peça é feita ao gosto francês, mas eventualmente poderá ter sido feita na Alemanha ou até mesmo na Inglaterra.
Muito, muito interessante este seu texto - como outros que venho lendo. Obrigado pelo prazer de leitura e de aprender com o tanto que sabe, acerca de tanta "velharia", quero dizer: sobre as nossas paixões materiais. Grato, HP
ResponderEliminarBreve Encontro.
EliminarMuito obrigado pelo comentário. Fico sempre contente por saber que o escrevo agrada e é útil, a quem está do outro lado do monitor.
No entanto, este post foi mais acerca da impossibilidade de identificar um fabricante. Com efeito raramente os biscuits aparecem marcados, pois creio que os seus fabricantes tentavam sempre que seus produtos passassem por coisa melhor. A ideia era que o cliente os comprasse pensando que fossem Sèvres, Meissen ou outra grande fábrica europeia.
Um grande abraço
Salve Luis!
ResponderEliminarBem, enquanto escrevo estou observando a coleção que temos de biscuits sobre o guarda louças. Essas peças inúteis são cativantes. Em nossa coleção temos uma representação do outono, provavelmente desfalcado de seus três companheiros que deveriam representar as quatro estações, tema tão em voga no XIX. Está assinada August Moreau famoso por suas alegorias e selada com a marca Capodimonte usada entre 1830-1890.
Lembro das palavras do filósofo recém falecido Sir Roger Scruton: "Todas as coisas mais importantes da vida são inúteis: amor, amizade, devoção, paz – essas são coisas que apreciamos pelo que são e não pelo uso que podemos fazer delas. Sim, nós precisamos de coisas inúteis uma vez que precisamos aprender como encontrar valores intrínsecos. E então o mundo tem um significado para nós e não apenas uma utilidade." Elas lembram que para além da utilidade estéril que temos anseios transcendentes pelo belo, bom e verdadeiro.
Abraços d´além mar da fria Pelotas outonal.
Edwin Fickel
Caro Edwin Fickel
EliminarGosto sempre muito do que escreve. Com efeito, transporta para um plano mais elevado este gosto pelos objectos sentimentais e aparentemente inúteis.
Se de facto não tivéssemos anseios transcendentes pelo belo, bom e verdadeiro não existiriam museus por esse mundo fora, onde se guardam retratos de gente que morreu há muitos séculos, de santos que já ninguém venera, deuses de religiões desaparecidas, ou de belas amantes reais, caída há séculos no esquecimento.
Um abraço de Lisboa, a velha capital
Gosto muito de biscuit e tenho uma pequena peça de uma menina com um gato. Bom dia!
ResponderEliminarMargarida.
EliminarObrigado pelo seu comentário. Bem sei que a Margarida gaz parte deste club dos amantes da cerâmica. Bjos e um boa semana
O encanto de um biscuit, para mim, reside na ausência do brilho que os vidrados dão às peças, e que, por vezes, se tornam quase "enjoativos". Parecem plástico.
ResponderEliminarNão obstante, hoje em dia, há plásticos que quase mimetizam os biscuits. Não seria a primeira vez que pego em peças que me parecem feitas em biscuit, e ... são plásticos moldados.
É evidente que, olhando bem, notam-se as diferenças, além de que o peso e a textura não enganam, mas, ao primeiro relance ...
E a ausência de pintura também lhe confere uma beleza quase pristina, e ela acaba por ser bonita na sua simplicidade.
Claro que algumas destas pequenas peças contam histórias, o facto de teres inventado uma já a tornou especial.
Manel
Manel
EliminarRealmente estes biscuits antigos tem um acabamento muito bonito. No fundo são porcelana por vidrar e que depois era polida para se parecer com as estátuas em mármore.
Também estou convencido que este biscuit representará qualquer história. Talvez as personagens de um conto infantil. Mas é difícil descobrir. Talvez daqui a uns anos por mero acaso consiga perceber quem estes dois meninos representam, como aconteceu com aquela personagem do leque da minha avó, com o menino montando um gafanhoto.
Um abraço