terça-feira, 2 de junho de 2020

Uma moeda romana encontrada durante o confinamento

A moeda romana achada debaixo do louceiro
Com já aqui escrevi, aproveitei o confinamento para fazer umas limpezas monumentais na minha casa. Tirei tudo o que estava dentro dos móveis, encerei-os, arrastei-os e passei cera também no chão. A coisa foi de tal ordem, que por vezes fiquei encerrado numa divisão e tinha que pular para ter acesso à cozinha ou à casa de banho.

Enquanto retirava os móveis do sítio, encontrei umas quantas moedas, de cêntimos ou de um ou dois euros, mas debaixo do louceiro apareceu nada menos nada mais do que uma moeda romana!
 
Um aspecto das minhas limpezas: a moeda encontrava-se perdida debaixo deste louceiro
 
Embora a minha casa se situe dentro da antiga muralha fernandina do século XIV, numa zona urbanizada ainda antes do grande terramoto de 1755, a sua construção deve datar do último quartel do século XIX e depois disso já sofreu variadíssimas obras e assim sendo, esta moeda não podia ter feito parte de tesouro escondido por um mercador romano, pouco antes da cidade de Olisipo ter sido tomada pelos bárbaros no séc. V depois de Cristo. Na verdade, acabei por me lembrar, que esta moeda era minha e estava numa prateleira do louceiro e deve ter resvalado para o chão, enquanto tentava arranjar espaço para mais uma chávena e ali ficou perdida uns seis ou 7 anos. Quando liguei ao Manel ao contar-lhe este episódio, ele recordou-se que tinha sido ele próprio a dar-me esta moeda já há uns quantos anos.

Resolvi então olhar esta pequena moeda com mais atenção mas pensei com horror, que já não me lembrava nada de numismática, apesar de ter tido essa cadeira na faculdade de existir uma tradição de coleccionismo de moedas na minha família. O meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio fez uma belíssima colecção de moedas, que José Leite de Vasconcelos mencionou quando visitou o Solar de Outeiro Seco. Ainda para mais esta pequena moeda encontra-se muito desgastada pelo uso e pelo tempo, tornando muito difícil a leitura das suas inscrições. No entanto, achei desde logo, que esta pequena moeda tinha um talhe um pouco rústico e não podia ser uma daquelas moedas do tempo do Imperador Augusto. Faltava-lhe a qualidade e a precisão das moedas da época em que Roma estava no seu maior apogeu. Imaginei por isso, que fosse uma moeda já cunhada no chamado Baixo Império, isto é, o período que vai entre 284 e a queda do Império em 476.

Como não conseguia ler a inscrição do anverso ou da cara, resolvi percorrer nos manuais de numismáticas as moedas dos vários imperadores do Baixo Império, o que é um mundo, pois corresponde a alguns períodos de grande instabilidade política, em que os imperadores se sucediam vertiginosamente uns aos outros, com muitos assassinatos à mistura e a certa altura, existiam mesmo dois imperadores um a Ocidente, em Roma e outro a Oriente, com capital em Constantinopla. Fui fazendo este trabalho por amostragem e por comparação acabei por me convencer que esta moeda foi mandada cunhar pelo Imperador Valentiniano II entre os anos de 375-385 da nossa era, mas não estou absolutamente certo, pois o reinado deste imperador é uma verdadeira trapalhada. Até 383 partilha a púrpura imperial com o seu meio irmão, Graciano, assassinado nesse ano e depois dessa data, com um usurpador Magnus Maximus, em Tréves e ainda com Teodósio I, em Constantinopla e as respectivas moedas não são assim tão diferentes.
 
Um asse, cunhado no tempo de Valentiniano II. Imagem reproduzida de Coins ancient, mediaeval, modern / R.A.G. Carson. - London : Hutchinson of London, 1962
 

Um asse, cunhado no tempo de Valentiniano II. Moeda à venda no site de https://www.vcoins.com/
 
A minha moeda. O busto do Imperador Valentiniano II
 
Na cara, consigo ler o nome de Valentianius e ver o seu busto com a coroa imperial. No reverso, lê-se a expressão latina Reparatio Reipub, típica das moedas desta época, que aludia a pretensão destes imperadores de restaurar a República, isto é ordem política e social, que naqueles tempos andava muitíssimo conturbada. As figuras que aqui se vêem, uma mulher de joelhos diante do imperador são precisamente uma alegoria a essa ideia da vitória da ordem imperial sobre a anarquia. No topo inferior, BSISC, indica o local da cunhagem, Siscia, antiga cidade romana, que se localizava em território que é hoje a Croácia e na época era um centro importante de cunhagem de moeda.
 
O reverso da minha moeda, onde se lê Reparatio Reipub e BSISC
 
Mas como é que uma moeda cunhada no território que é hoje a Croácia, veio parar até as terras que são hoje Portugal, perguntarão os leitores menos familiarizados com a história de Roma. Apesar de o Império Romano já se encontrar em fase de decadência por volta de 375-385, o comércio ainda era activo e ao longo da costa da Lusitânia, desde Lisboa até ao Algarve existia uma florescente indústria de pasta de peixe, o Garum, que era exportada por barco directamente para Óstia, o grande porto, que servia a cidade de Roma. Nesse entreposto, os mercadores e os tripulantes receberiam moedas de todos os cantos do Império e regressavam a sua Lusitânia natal, onde as gastariam e assim as moedas cunhadas na longínqua Siscia poderiam aparecer por todo o território que é hoje Portugal.

Quanto ao tipo, esta moeda é muito provavelmente um asse ou ás, uma pequena espécie de bronze ou cobre. Neste período encontraram-se umas quantas variedades de asses, para os quais não se conhecem as denominações originas e por esta razão os numismatas convencionaram uma subdivisão com nomes codificados, baseada no diâmetro. Esta tem 20 mm de diâmetro, portanto será um Æs3.

Este achado arqueológico, que encontrei na minha casa durante as limpezas do período confinamento não tem grande valor no mercado. Encontrei uma à venda por 40 euros. No entanto evoca, todo um período conturbado do baixo império ainda o meu desmazelo de acumulador de velharias, que deixou esta moeda tantos anos perdida debaixo de um armário.
 
Um asse do tempo do imperador Valentiniano II (371-392 )
 
Alguma bibliografia e links consultados:
 
 
 
 
Coins ancient, mediaeval, modern / R.A.G. Carson. - London : Hutchinson of London, 1962

6 comentários:

  1. Esta moeda não foi encontrada em Portugal, pois ela, juntamente com outras da mesma proveniência, foi-me dada por um amigo que tive na Holanda.
    Foi ele que me enviou uma série destas moedas, pois dedicava-se à numismática.
    Confesso que não presto a menor atenção às moedas, nem tão pouco me interesso pelo assunto, e, como na altura possuía uma quantidade de moedas soltas, algumas de Moçambique, outras de Angola, de Macau e até da ex-Índia portuguesa, da época das colónias, ou mesmo do reino de Portugal, e que já tinham saído de circulação há muitas décadas, e outras que me vieram parar às mãos sem eu saber muito bem como, decidi enviá-las todas a esse meu amigo holandês, que, de forma muito cortês, me enviou uma série de moedas que ele tinha a mais.
    Mais uma vez me vi na posse de moedas, e acabei por dá-las igualmente, e uma delas foi parar a tua casa.
    Assim, ela veio da Holanda, e vinha acondicionada dentro de uma pequena embalagem que julgo que todos os colecionadores devem possuir para guardar moedas, pois estava devidamente catalogada.
    Só que, esta moeda caiu da sua embalagem, e eu, vendo-a solta devo tê-la arrumado algures, mas tão bem arrumada que nunca mais a encontrei. Entretanto mudei de casa e nunca mais vi essa pequena embalagem que se extraviou definitivamente, e, essa sim, estava devidamente catalogada.
    Tenho pena de a ter perdido, pois ter-te-ia evitado todo este trabalho.
    Tinha outra moeda, igualmente romana, que dei a um amigo grego, que, de imediato, a mandou instalar numa "monture" em ouro, para a usar numa pulseira ou cordão, não sei. Achei a ideia peregrina, e até de gosto duvidoso, no entanto, devo dizer que ainda bem que o fez, pois passou a ter uma função prática.
    Espero que te dê prazer a sua posse, pois doutra forma não faz sentido.
    Manel

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    1. Manel

      Foi pena não ter conservado contigo melhor sobre a moeda. Estava plenamente convencido que moeda teria sido achada na região da Redinha, mas pelo vistos veio da Holanda e sabe-se-lá por que caminhos andou antes de chegar aquele País. Em todo o caso, esta moeda poderia muito bem ter sido encontrada em Portugal. Num fórum de numismática ou num site de vendas on-line vi uma, que tinha sido encontrada em Espanha. Uma das coisas fascinantes das moedas é imaginar as centenas ou milhares de mãos por onde andaram. Em todo o caso, seja lá onde foi encontrada originalmente, o que afirmei para no blog para o activo comércio do mundo romano, mesmo em decadência, continua válido.

      As moedas em si não são objectos que façam grande vista, como uma terrina em faiança ou uma cadeira antiga. Mas as histórias que contam são sempre fascinantes e a redescoberta desta moedinha no chão da minha casa, merecia um post neste blog.

      Um abraço

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    1. Caro homem do Norte, muito obrigado pelo seu comentário e um abraço!!

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  3. Olá, Luis.
    De quando em vez, venho visitar o teu blog. Tens sempre novidades que gosto :-)
    Agora estava a ouvir uma rádio dinamarquesa, lembrei-me de ti e vi ler as tuas novidades.
    Levo um pouco de ti e deixo um pouco de mim.
    Se tiveres curiosidade, experimenta ouvir esta rádio: https://www.radio.pt/s/arcticoutpost
    Um beijo,
    Leonor

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    1. Leonor

      Que bom ver-te por aqui. Já que os acasos da vida nos distanciaram tanto, ao menos encontramo-nos aqui. Este blog é sempre muito pessoal e talvez quem me conheceu bem como tu, encontre aqui muitos dos meus interesses, tiques ou formas de viver o mundo.

      Tenho que experimentar essa rádio. Quase que deixei de ouvir rádio e sinto falta da música.

      Bjos e bons feriados

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