quarta-feira, 30 de maio de 2018

São Manuel mártir, embaixador da Pérsia e advogado da Paciência


Comprei esta bonita gravura do século XVIII, aguarelada à mão, representando S. Manuel mártir, envolto numa moldura em estilo rococó muito bonita. Ofereci-a de prenda de anos ao meu amigo Manel, uma vez que é uma representação do seu santo homónimo e além disso o meu amigo demonstra uma paciência notável nos restauros, que faz de mobiliário e de outras velharias. É sem dúvida São Manuel que o acode, quando o meu amigo decide por exemplo empalhar uma cadeira antiga.
S. Manoel martyr, embaixador da Persia e adevogado da Paciência
Quanto ao S. Manuel não há muitas informações sobre este santo e tudo o que a ele diz respeito está envolto numa lenda tão densa, que o seu nome nem consta do actual Martirológio romano. É aliás muitas vezes confundido com outro Santo Manuel, martirizado na Anatólia e cujo dia se comemora a 26 de Março. São Manuel da Pérsia é pois um santo esquecido, riscado da lista oficial de Santos da Igreja, o que me leva a simpatizar com ele, pois tudo o que está irremediavelmente fora de moda me atrai.

A obra de Louis Réau Iconographie de l'art chrétien, que é a bíblia fundamental para quem quer ter uma perspectiva científica sobre os temas religiosos na arte, ignora completamente o nosso obscuro S. Manuel.

No entanto tempos houve em que esta figura tinha um culto significativo, pelo menos em Portugal. No Inventário da colecção de registos de santos, Ernesto Soares refere pelo menos quatro estampas diferentes com representações deste santo.
A estampa vendia-se na loja de José da Fonseca ao Arsenal


No site http://www.es.catholic.net consegui encontrar alguma informação mais séria sobre o Manuel da Pérsia.

A principal fonte para o relato da vida deste santo, são as Acta Sanctorum, compiladas pelo jesuíta, Jean Bolland (1596- 1665) e todos os autores que vieram a seguir limitaram-se a repetir o seu conteúdo.

Resumindo este relato tradicional, Manuel e os seus irmãos, Sabel e Ismael eram cristãos persas e teriam sido enviados no ano de 362 pelo seu rei, Baltano, à corte do Imperador Juliano (331-363) para negociar uma paz entre a Pérsia e Roma. Numa época em que o Império romano já era maioritariamente cristão e desde Constantino, os seus soberanos eram praticantes da fé de Cristo, este Imperador Juliano decide fazer marcha atrás e voltar ao antigo paganismo. Por essa razão, tornou-se conhecido na história por Juliano, o Apóstata, termo que designa aquele que renuncia ou muda de religião. Juliano obrigou os embaixadores da Pérsia a participar em sacrifícios pagãos. Como estes se recusaram, foram objecto de martírios terríveis. Manuel foi condenado a ter um cravo de ferro espetado em cada lado do peito e um cravo atravessando-lhe a cabeça de ouvido a ouvido, castigos por não ouvir a voz do imperador e ter o peito endurecido às prédicas imperiais. Enfim, os pobres embaixadores acabaram por morrer no dia 17 de Junho de 362. Contudo, a história vingou-os muito rapidamente e Juliano foi morto numa batalha contra os Persas no ano seguinte, não sem antes ter gritado, venceste Galileu!


Toda esta história é pouco credível. Se é certo que o Imperador Juliano manteve uma terrível guerra contra os Persas ou melhor contra o reino Sassânida, nunca existiu nenhum rei Persa chamado Baltano. Por outro lado, apesar de o Imperador Juliano ter abandonado o Cristianismo para regressar ao paganismo, não moveu perseguições aos cristãos. Exilou um ou outro bispo mais crítico da sua nova política religiosa, mas era um homem culto, um filósofo, a quem lhe repugnavam os banhos de sangue.

Um autor russo, o senhor Alex Vladimirirovich Muraiev num estudo publicado na Studia Patristica, defende que Manuel, Ismael e Sabel são nomes semitas e que provavelmente seriam embaixadores de um dos reinos árabes, que por vezes se aliavam aos os romanos na luta contra os Persas e que provavelmente esta história traduz um rompimento abrupto nas negociações entre árabes e romanos.

Na minha opinião, esta lenda do martírio de Manuel, Sabel e Ismael é também um eco de toda a literatura cristã, que vilipendiou o Imperador Juliano após a sua morte, transformando-o num apóstata preverso. Só a partir do século XVI, com o desenvolvimento do pensamento laico, a figura de Juliano começou a ser reabilitada pela história. No século XVIII, Voltaire transformou este imperador num campião das luzes contra o obscurantismo cristão. Pessoalmente, Juliano agrada-me particularmente por ser o herói falhado de uma causa perdida.

S. Manoel martyr, embaixador da Persia e adevogado da Paciência

Algumas obras e links consultados:

Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Uma figurinha em biscuit da Volkstedt ou a irresistível atracção pelo Kitsch

Volkstedt bisque figurine
Bem sei que não devia ter comprado esta figurinha em biscuit, representando um menino vestido à moda do século XVIII, brincando com um caniche, pois é terrivelmente kitsch. Mas, o preço era convidativo, a pintura e a modelação da peça eram de excelente qualidade e estava marcado, o que é raro em peças em biscuit. Enfim, suspeitei que era uma peça proveniente de uma qualquer fábrica alemã, produzida ao gosto de Meissen, entre os finais do séc. XIX e o início do XX e deste modo, quando dei por mim tinha a peça dentro de casa.
 
Volkstedt mark
A marca consiste consiste numa espécie de forquilha, com um Sol no meio. Apresenta ainda um número de série, o 16
Apesar de esta figurinha estar marcada e de ser uma coisa tipicamente alemã, tive a maior das dificuldades em identificar a marca, pois enquanto nós em Portugal, tivemos ao longo da história praticamente uma única fábrica de porcelana a laborar continuadamente, a Vista Alegre, muitas regiões alemãs contaram com 10 ou 15 fábricas de porcelana activas ao longo de duzentos anos. Vasculhei todos os dicionários de marcas de cerâmica on-line e não aparecia nada igual a esta marca, que consiste numa espécie de forquilha, com um Sol no meio. Depois de ver milhares de figurinhas em biscuit alemãs, encontrei finalmente no portal americano de antiquários o Rubylane, uma placa em biscuit, estilo arte nova, com marca muito parecida com esta e atribuída à Volkstedt.
 
 
Porém como a marca não era exactamente igual continuei a minha busca e descobri na biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga um livro alemão, Führer für Sammler von Porzellan und Fayence, Steinzeug, Steingut - Braunschweig; Berlin: Klinkhardt & Biermann, [1963] dedicado só ao assunto das marcas germânicas e na página 229 lá estava uma marca igual à minha, da Volkstedt. Enfim, consegui concluir que este biscuit com um menino brincando com um cachorro foi fabricado pela Volkstedt, na Alemanha nos finais do XIX ou nos primeiros anos do XX.
 
Führer für Sammler von Porzellan und Fayence, Steinzeug, Steingut - Braunschweig; Berlin: Klinkhardt & Biermann, [1963]. Na pág. 229 consta uma marca Volkstedt  igual à do meu boneco.
Claro, apesar de ser uma peça Volkstedt, esta figurinha não deixa de ser kitsch, esse termo de origem incerta surgido na segunda metade do século XIX, em plena época da industrialização na Europa, para designar objectos produzidos em larga escala, que imitavam obras de arte, destinados a uma burguesia sem grande gosto, mas com algum bem-estar económico e que ambicionava decorar as suas casas com objectos parecidos aos que encontravam nas residências aristocráticas, ainda que só vagamente. É exactamente o caso, deste meu biscuit, inspirado nas figuras de Meissen e vendido aos burgueses com pretensões a ter seus lares uma salinha do Saxe.
 
Volkstedt bisque figurine

Com o tempo, o kitsch passou não só a designar a imitação barata da obra de arte, mas também tudo aquilo que é demasiado dourado, demasiado cor-de-rosa, demasiado pequeno, demasiado ornamentado e que é supérfluo e que passou irremediavelmente de moda. É também o caso, deste bonequinho em biscuit, pequenino, com decoração sobrecarregada, inútil e absolutamente inaceitável para um decorador de interiores contemporâneo.
Volkstedt bisque figurine

Contudo, acredito que pelo menos uma vez na vida, todos nós temos vontade de sair dos limites do gosto convencional do nosso tempo e usar uma cor berrante, um fato de banho politicamente incorrecto, um boné disparatado ou ainda expor na sala um bibelot ao estilo de Meissen.
Volkstedt bisque figurine
Algumas obras e links consultados:
 
Führer für sammler von porzellan und fayence, steinzeug, steingut - Braunschweig; Berlin: Klinkhardt & Biermann, [1963]
 
https://www.rubylane.com/item/150922-twt3206/13-1-2x22-Antique-Volkstedt-Germany

https://fr.wikipedia.org/wiki/Kitsch

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Mirante em Borba


Por todas as terras que passo, por todas as ruas com casario antigo, que calcorreio, estou sempre a descobrir casas onde me imagino a viver. Não sei exactamente de onde me vem esse desejo. Talvez seja por viver num apartamento muito pequeno e ambicione um espaço maior para enche-lo com antiguidades ou talvez porque na infância e juventude conheci ainda casas de família com história e aprendi com o meu pai e a minha avó a valorizar esse passado, que impregna cada uma dessas casas antigas, mesmo quando já foram abandonadas se encontram em ruínas. Viajo sempre com esse sentimento romântico de querer viver naquele solar abandonado, na grande residência burguesa do século XIX ou naquela casinha com um portal quinhentista, estejam estes edifícios no Alentejo, em Guimarães, Chaves ou no Porto.
 

Desta vez apaixonei-me por uma casa antiga com um mirante, na vila Alentejana de Borba. Em 1863, o proprietário desta casa teve a deliciosa ideia de construir um mirante no telhado e certamente que não foi por razões práticas. Daqui poderia ver os extensos vinhedos, que rodeiam a vila, enquanto tomava um chá sentado numa cadeira de verga e nas noites do terrível verão alentejano, talvez aqui em cima se sentisse uma brisa fresca. No dia da procissão do Senhor dos Aflitos era certo que o Mirante estaria engalanado de colchas e que os vários membros da família se acotovelariam para ver passar os andores. 

Enfim, confesso que também me imaginei neste mirante, até porque sou um homem curioso, que gosta de ver os outros passar na rua sem outro objectivo aparente senão o de observar a humanidade.
 
 

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Um serviço de chá para bonecas


Este pequeno serviço de chá para bonecas foi-me oferecido por uma amiga, a Ema, que o herdou das suas madrinhas, senhoras nascidas por volta de 1895 e que teriam idade para brincar com este servicinho por volta de 1900.

O serviço é composto por um tabuleiro, duas chávenas e respectivos pires, um bule e ainda um açucareiro. É aquilo que os franceses costumam designar por um tête-à-tête.



Não está marcada, o que era comum nestes serviços para bonecas, já que o espaço disponível era muitas vezes insuficiente para colocar uma marca. Mesmo assim, fiz umas quantas pesquisas na net em francês e inglês por antique tea toy set ou ancienne dinette service à thé, mas os resultados foram inconclusivos. Vasculhei os catálogos da fábrica de Sacavém, que tem uma produção vastíssima, mas também não encontrei nada. Inesperadamente, encontrei servicinhos iguais a este, mas em porcelana, fabricados pela Vista Alegre entre 1924-1947, reproduzidos no II leilão da Vista Alegre: Lisboa: Estar Editora, 1998, com as entradas 221 e 228. Nesta última entrada refere-se que a marca não está nas peças, mas sim na caixa original.

II leilão da Vista Alegre: Lisboa: Estar Editora, 1998


Fiquei um bocadinho desconcertado com este resultado, pois que eu tenha conhecimento a Vista Alegre nunca produziu faiança e pensava que o serviço fosse do início do século XX. Em todo o caso o molde dos servicinhos da Vista Alegre e o molde de onde saiu o serviço, que me foi oferecido pela Ema, eram iguais. Sendo a Vista Alegre uma casa conservadora, talvez já fabricasse este modelo no início do século ou então o serviço foi adquirido entre 1924-1947 pela referidas madrinhas, para que com ele brincasse alguma sobrinha ou afilhada, já que as senhoras nunca tiveram filhos. Creio ser mais provável, que seja datado entre 1924-1947, já que o desenho das peças acusa o toque do modernismo e da art deco. A Ana Fernandes, uma prima minha, tem um igual e em tempos terão lhe dito que era de uma fábrica de Águeda, talvez do Outeiro, que empregou artistas saídos da Vista Alegre.
 
II leilão da Vista Alegre: Lisboa: Estar Editora, 1998
Estes serviços para bonecas têm uma história já antiga e nas escavações arqueológicas de quase todo o mundo antigo aparecem utensílios de cozinha e mesa em miniatura, certamente usados como brinquedos. No século XVIII são conhecidos serviços para bonecas em porcelana, prata ou estanho, mas eram objectos muito caros, apenas ao alcance da aristocracia ou de uma burguesia muito abastada. Só a partir de 1850, no apogeu da revolução industrial se começaram a generalizar serviços para bonecas em faiança fina ou stoneware, muitos mais baratos que os de prata ou porcelana. Em todo o caso, estes servicinhos eram objectos frágeis, com as quais as crianças brincavam sobre vigilância dos adultos, para as impedir de partir tudo logo no primeiro dia e tinham sempre a função de educar as meninas, de as familiarizar com a gestão doméstica e de as transformar numas perfeitas senhoras capazes de tomarem chá com elegância.


Alguns links e obras consultadas:


II leilão da Vista Alegre: Lisboa: Estar Editora, 1998