Comprei esta bonita gravura do século XVIII, aguarelada à mão, representando S. Manuel mártir, envolto numa moldura em estilo rococó muito bonita. Ofereci-a de prenda de anos ao meu amigo Manel, uma vez que é uma representação do seu santo homónimo e além disso o meu amigo demonstra uma paciência notável nos restauros, que faz de mobiliário e de outras velharias. É sem dúvida São Manuel que o acode, quando o meu amigo decide por exemplo empalhar uma cadeira antiga.
S. Manoel martyr, embaixador da Persia e adevogado da Paciência |
Quanto ao S. Manuel não há muitas informações sobre este santo e tudo o que a ele diz respeito está envolto numa lenda tão densa, que o seu nome nem consta do actual Martirológio romano. É aliás muitas vezes confundido com outro Santo Manuel, martirizado na Anatólia e cujo dia se comemora a 26 de Março. São Manuel da Pérsia é pois um santo esquecido, riscado da lista oficial de Santos da Igreja, o que me leva a simpatizar com ele, pois tudo o que está irremediavelmente fora de moda me atrai.
A obra de Louis Réau Iconographie de l'art chrétien, que é a bíblia fundamental para quem quer ter uma perspectiva científica sobre os temas religiosos na arte, ignora completamente o nosso obscuro S. Manuel.
No entanto tempos houve em que esta figura tinha um culto significativo, pelo menos em Portugal. No Inventário da colecção de registos de santos, Ernesto Soares refere pelo menos quatro estampas diferentes com representações deste santo.
A estampa vendia-se na loja de José da Fonseca ao Arsenal |
No site http://www.es.catholic.net consegui encontrar alguma informação mais séria sobre o Manuel da Pérsia.
A principal fonte para o relato da vida deste santo, são as Acta Sanctorum, compiladas pelo jesuíta, Jean Bolland (1596- 1665) e todos os autores que vieram a seguir limitaram-se a repetir o seu conteúdo.
Resumindo este relato tradicional, Manuel e os seus irmãos, Sabel e Ismael eram cristãos persas e teriam sido enviados no ano de 362 pelo seu rei, Baltano, à corte do Imperador Juliano (331-363) para negociar uma paz entre a Pérsia e Roma. Numa época em que o Império romano já era maioritariamente cristão e desde Constantino, os seus soberanos eram praticantes da fé de Cristo, este Imperador Juliano decide fazer marcha atrás e voltar ao antigo paganismo. Por essa razão, tornou-se conhecido na história por Juliano, o Apóstata, termo que designa aquele que renuncia ou muda de religião. Juliano obrigou os embaixadores da Pérsia a participar em sacrifícios pagãos. Como estes se recusaram, foram objecto de martírios terríveis. Manuel foi condenado a ter um cravo de ferro espetado em cada lado do peito e um cravo atravessando-lhe a cabeça de ouvido a ouvido, castigos por não ouvir a voz do imperador e ter o peito endurecido às prédicas imperiais. Enfim, os pobres embaixadores acabaram por morrer no dia 17 de Junho de 362. Contudo, a história vingou-os muito rapidamente e Juliano foi morto numa batalha contra os Persas no ano seguinte, não sem antes ter gritado, venceste Galileu!
Toda esta história é pouco credível. Se é certo que o Imperador Juliano manteve uma terrível guerra contra os Persas ou melhor contra o reino Sassânida, nunca existiu nenhum rei Persa chamado Baltano. Por outro lado, apesar de o Imperador Juliano ter abandonado o Cristianismo para regressar ao paganismo, não moveu perseguições aos cristãos. Exilou um ou outro bispo mais crítico da sua nova política religiosa, mas era um homem culto, um filósofo, a quem lhe repugnavam os banhos de sangue.
Um autor russo, o senhor Alex Vladimirirovich Muraiev num estudo publicado na Studia Patristica, defende que Manuel, Ismael e Sabel são nomes semitas e que provavelmente seriam embaixadores de um dos reinos árabes, que por vezes se aliavam aos os romanos na luta contra os Persas e que provavelmente esta história traduz um rompimento abrupto nas negociações entre árabes e romanos.
Na minha opinião, esta lenda do martírio de Manuel, Sabel e Ismael é também um eco de toda a literatura cristã, que vilipendiou o Imperador Juliano após a sua morte, transformando-o num apóstata preverso. Só a partir do século XVI, com o desenvolvimento do pensamento laico, a figura de Juliano começou a ser reabilitada pela história. No século XVIII, Voltaire transformou este imperador num campião das luzes contra o obscurantismo cristão. Pessoalmente, Juliano agrada-me particularmente por ser o herói falhado de uma causa perdida.
S. Manoel martyr, embaixador da Persia e adevogado da Paciência |
Algumas obras e links consultados:
Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955