Apresento hoje mais um Menino Jesus, cuja imagem me foi enviada por um amigo do Norte, que é seguidor deste blog. Tal como as esculturas de Malines, os Meninos Jesus em marfim são das peças mais procuradas pelos coleccionadores portugueses e tem toda a razão para faze-lo, pois a delicadeza destas esculturas indo-portuguesas e o seu simbolismo resumem nuns quantos centímetros de altura toda uma parte da expansão portuguesa.
O chamado indo-português é um fenómeno dos séculos XVI, XVII e XVIII. Artistas e artificies da Índia produziram peças ao gosto europeu, de exportação para o mercado ocidental ou então destinadas aos próprios indianos, já que muitos deles se converteram ao Cristianismo e queriam Virgens, Cristos ou estantes de Missal paras suas igrejas ou altares privados. Contudo, essa arte não foi uma cópia dos modelos europeus. Usaram-se as técnicas e os materiais requintados do Oriente. Elementos simbólicos do budismo ou hinduísmo foram aplicados aos temas cristãos. O resultado foi uma arte original e exótica, que se manifesta com particular sucesso nas esculturas em marfim, mas também no mobiliário.
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Nossas Senhoras indo-portuguesas. Col. do Museu Histórico e Nacional do Rio de Janeiro |
O marfim de elefante era o mais usado para esculpir estas estatuetas, da qual este Menino Jesus bom pastor é um bom exemplo. Apesar de serem feitas na costa Ocidental da Índia, os seus artistas preferiam usar dentes de elefante africano, em vez dos elefantes indianos. Os dentes dos paquidermes africanos são maiores que os indianos. Dentro dos africanos, davam-se preferência aos dentes dos elefantes de regiões húmidas, como do Gabão e do Congo pois apresentam um marfim com poucos veios e de cor muito mais branca que aqueles criados nas savanas mais secas.
Estas esculturas indo-portuguesas representavam temas cristãos e constituíam meios eficazes usados pelas Ordens religiosas para ensinar ou converter ao catolicismo homens e mulheres nascidos budistas, muçulmanos ou hindus. Os temas mais típicos eram o Paraíso, a Árvore de Jessé, as Santas Mães, A Virgem, O Presépio, a Sagrada Família, o Menino Jesus deitado, vários santos, mas sobretudo Cristos crucificados e o Menino Jesus bom Pastor.
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Menino Jesus Bom Pastor. Col. do Museu Nacional Machado de Castro |
Como o nome indica, esta escultura apresenta o Menino Jesus como pastor, com um cordeiro ao ombro e rodeado de outras ovelhas, que representam obviamente os seres humanos. É uma iconografia que remonta aos primeiros tempos do Cristianismo, ao período em que a nova religião se praticava em segredo nas catacumbas romanas e ilustra a parábola Eu vos digo que do mesmo modo, haverá mais alegria no céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão (São Lucas, 15,4-7).
Esta parábola retratada pelo menino que recuperou a ovelha perdida fala-nos da importância de cada indivíduo, de um único individuo entre milhões. Cada um pode rever-se na ovelha resgatada e esperar ser salvo por um Deus superior.
O doce Bom pastor desapareceu durante a Idade Média e só ressurgiu na arte europeia durante a Contra-reforma e com um particular vigor na Índia, nos séculos XVII e XVIII, onde as ordens religiosas procuravam mostrar com estas imagens aos hindus ou budistas que todos eram ovelhas importantes para a Igreja, mesmo os mais intocáveis.
Por outro lado, houve um fenómeno muito curioso, pois a iconografia do Bom Pastor foi reinterpretada por artesãos nascidos hindus ou budistas, segundo as suas tradições religiosas tornando-os casos excepcionais de sincretismo artístico.
No hinduísmo, uma das encarnações de Vishnu é Krischna, também chamada Govinda, que significa Pastor. Este Krischna foi perseguido na infância por um tio que o queria matar e a sua mãe fê-lo criar no campo, no meio de uma família pobre, como pastor entre os pastores. Esta figura do menino ameaçado, deus e pastor é das mais populares na Índia e é natural que os novos católicos de Cochim ou Goa se sentissem mais confortáveis se pensassem em Jesus como uma figurinha próxima de Krischna.
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A atitude budista: o desligamento das coisas terrenas. Escultura do nosso amigo do Norte |
Do Budismo, estes meninos Jesus, recolheram a atitude de êxtase, caracterizada pela expressão ausente, os olhos fechados, os dedos apoiados na têmpora e a face inclinada contra a mão direita. Foi com esta que Buda atingiu a iluminação ao fim de 49 dias de meditação, sentado à sombra de uma figueira.
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Peanha de Menino Jesus Bom Pastor. Museu Nacional Machado de Castro. |
Estes Meninos Bons Pastores indianos estão sentados em peanhas, cheios de figurinhas e com uma significação que pode ser complexa. A obra do nosso seguidor do Norte é das mais simples e está muito danificada. Podem-se ver cordeirinhos aqui e acolá e talvez as folhas de uma palmeira, mas muitos destes Bons Pastores estão sentados em montes, cheios de figurinhas, como santos, representações da natividade, pássaros bebendo em fontes sagradas, ou uma gruta com uma Maria Madalena arrependida, deitada à moda indiana, que foi a posição adoptada por Buda para morrer. A simbologia destes montes é naturalmente cristã, pois alude ao Calvários e ao Presépio, mas a distribuição em andares das figuras sugere as torres dos templos indianos.
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Col. de Bons Pastores do Museu Histórico e Nacional do Rio de Janeiro |
Enfim, a simbologia destes montes é tão complicada, como é fino o lavor destes trabalhos em marfim.
Além de admirar o trabalho artístico deste Menino Jesus, gosto também do seu significado histórico. Mostra os descobrimentos Portugueses não só como a façanha heróica dos portugueses, que nos ensinaram nos livros da quarta classe, à força de muita reguada, mas também como um fenómeno artístico onde se cruzaram o cristianismo, o budismo e o hinduísmo.
Alguma bibliografia:
A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991
Arte do marfim / Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses ; coord. Mafalda Soares da Cunha. Porto : C.N.D.C., 1998