sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Um distinto casal de Vilela Seca e a herança do 3º conde de Basto: fotografias de um velho álbum familiar



Após muitas e pacientes pesquisas consegui situar no tempo e no espaço mais duas personagens do velho álbum de fotografias carte-de-visite, formado pelo meu trisavô, o Francisco Firmino Fernandes Alvares de Moura e a Ricardina Leite de Barros. É certo, que o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio identificou os nomes destes senhores no álbum com a sua caligrafia miudinha, mas não sabia nada deles. Fui fazendo umas pesquisas no Google e encontrei uma publicação on-line Tentativa de dedução genealógica da família Caldas da autoria Diogo Paiva e Pona, onde se refere estes dois senhores e percebi que eram casados e viviam em Vilela Seca, uma aldeia vizinha de Outeiro Seco, onde residia a minha família, os Montalvões.



Fiz entretanto mais pesquisas pelos seus nomes na base de dados do Arquivo Distrital de Vila Real e localizei dois documentos de inventário obrigatório, um de 1882, referente a Francisco Firmino Fernandes Alvares de Moura e outro de 1884, relativo a à Sra. Dona Ricardina Leite de Barros. Os inventários obrigatórios eram realizados quando as pessoas faleciam sem deixar testamento e normalmente eram feitos logo a seguir à sua morte. Portanto, a partir dessas datas lancei-me à consulta dos registos de óbitos da Paróquia de Vilela Seca e a partir daí foi como puxar o fio de um novelo, em que foram surgindo histórias e mais histórias sobre estas personalidades.


A casa dos Morgados das Gralhas, Montalegre

Francisco Firmino Fernandes Alvares de Moura morreu em Vilela Seca em 22.12.1881, com 40 anos, segundo indicou o pároco e era natural de Montalegre, de Santa Maria das Gralhas, um nome tão poético, que parece ser o título de um conto de Miguel Torga. Era filho de Domingos Fernandes Moura e de Rosa Álvares Martins, mas não consegui apurar a data de nascimento, pois os registos de baptismos da primeira metade do século XIX dessa localidade desapareceram, mas presumo que tivesse sido à volta do ano de 1841. O seu pai seria o morgado de Gralhas e um dos seus irmãos foi o padre João Álvares Fernandes de Moura (1848-1920), que fundou um seminário na antiga casa senhorial da sua família. O Padre João Álvares Fernandes de Moura era dois anos mais novo que o meu trisavô e é possível que se tenham cruzado no Seminário de Braga.

Quanto à Sra. D. Ricardina Leite de Barros (1845-1884) era natural da freguesia de Santa Senhorinha de Cabeceiras de Basto e descendia de uma belíssima família e muito rica. Era filha de Manuel Filipe Martins Leite de Barros (18.09.1800- 28.07.1870), um senhor que foi Cavaleiro da Ordem de Cristo, Presidente da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto e senhor da Casa da Breia e neta da Sra. D. Maria Josefa Martins Leite de Barros, que na década de 30 do século XIX, foi uma das protagonistas de uma tremenda batalha legal pela disputa da herança do 3º conde de Basto.
Manuel Filipe Martins Leite de Barros, pai da Sra. D. Ricardina, Foto https://geneall.net

Ainda que de uma forma muito sumária, não resisto aqui a contar a história da disputa pela herança do 3º Conde de Basto, relatada por Joaquim Fernandes Figueira, num artigo da revista Prisma de N.º 1, Abril 1941 “O Conde de Basto : epitáfio que se desfaz.

O referido Conde tinha por nome de baptismo, José António de Oliveira Leite de Barros (1749-1833) e foi umas principais figuras do regime miguelista. Foi feito Conde por D. Miguel, chegando mesmo a chefiar o governo daquele monarca absolutista e notabilizou-te tristemente pela forma cruel e violenta como perseguiu os liberais. Era de tal maneira detestado, que depois da sua morte e da vitória dos liberais o seu corpo foi retirado do túmulo, arrastado pelas ruas de Coimbra e dilacerado.



Apesar de ter sido feito conde por D. Miguel, José António de Oliveira Leite de Barros era filho bastardo e para conseguir assenhorar-se da fortuna do pai, casou com a sua prima direita a Sra. D. Leonor Angélica Leite de Barros, filha de um irmão do seu pai e que era uma descendente legítima dos Leite de Barros. Apesar de ter passado a juventude encarcerada num convento, esta D. Leonor Angélica devia ser rapariga fogosa, pois ainda nesse tempo de clausura arranjou uma filha bastarda, a Maria Josefa, que veio a ser avó da nossa Dona Ricardina. Porém, o 3º Conde de Bastos aceitou muito bem a filha da sua mulher e a menina foi criada com o casal. Do casamento da Leonor Angélica e José António de Oliveira Leite de Barros, só resultou um filho que era retardado. Após a morte de Leonor Angélica, o conde voltou a casar com uma viúva rica e de boa fidalguia, Catarina Lusitana Correia de Morais Leite Almeida, filha do Visconde da Azenha, mas que não lhe deu descendentes, apesar de a senhora ter tido filhos do anterior casamento.


Quando o 3º conde de Basto, morreu, deixou um testamento complicado, a segunda mulher ficava tutora do seu filho, mas à morte deste, a fortuna familiar passava para as mãos de D. Eufrásia e de seu filho. Esta D. Eufrásia era uma filha ilegítima do irmão da D. Leonor Angélica, o André António. Começou então uma tremenda disputa legal entre a Dona Josefa, a D. Eufrásia e a viúva, a Dona Catarina Lusitana, que se arrastou durante anos pelos tribunais. Quem acabou por ganhar a causa foi a Dona Josefa e o seu filho, Manuel Filipe Leite de Barros, o pai da D. Ricardina, que lhe coube o Senhorio da Casa da Breia. Para evitar futuras complicações a que ainda poderia dar lugar o testamento do conde, Manuel Filipe, casou com Benedita Rosa Leite de Barros, a filha da tão “decantada” D. Eufrásia.
Os Montalvões não perderiam a ocasião de convidar uma ilustre descendente dos condes de Basto para os seus salões



A fotografia de D. Ricardina foi executada por Ferreira de Melo, no Porto

Em suma, este casal Firmino Fernandes Alvares de Moura e a Ricardina Leite de Barros eram gente da mesma condição social dos Montalvões, que viviam numa aldeia vizinha e era natural que se visitassem e trocassem as carte-de-visite. Os Montalvões não perderiam a ocasião de convidar uma ilustre descendente dos condes de Basto para os seus salões e até imagino a Sra. D. Ricardina sentada muito direita e distinta num canapé D. Maria, que herdei dessa casa. Certamente que conheceriam o Padre Rodrigues Liberal Sampaio, pároco em Outeiro Seco e deslocar-se-iam frequentemente aquela aldeia ouvir missa, pois a fama de pregador do meu trisavô era grande quer na região, quer no País inteiro (em 1873 tinha sido nomeado pregador régio pelo Rei D. Luís). Liberal Sampaio conheceria provavelmente o irmão de Francisco Firmino, o Padre João Álvares Fernandes de Moura, dos tempos do seminário em Braga. Mais, este casal entregou a educação do filho, Filipe Barros de Moura, aos cuidados de José Rodrigues Liberal Sampaio, numa escola que fundou em Outeiro Seco, onde se ministrava uma primeira educação aos jovens, conforme se pode ler na Voz de Chaves, num artigo de homenagem ao meu trisavó, em 23 de Fevereiro de 1961.



A Nova Fotografia Nacional, na Rua do Bomjardim, 362 no Porto fez o retrato de Firmino Fernandes Alvares de Moura, 
No final de todas estas pesquisas a Sra. Dona Ricardina Leite de Barros e o seu marido, Firmino Fernandes Alvares de Moura, que morreram há quase 140 anos tornaram-se como que um casal, que se cumprimenta na rua e conhecemos vagamente a história e de que em pequenos ouvimos falar de uns escândalos familiares antigos.

Leia mais sobre estes retratos no meu post de 14 de Setembro de 2012

Fontes consultadas:


Livros de óbito da paróquia de Vilela Seca, Concelho de Chaves, Arquivo Distrital de Vila Real


Livros de Baptismo da paróquia de Santa Senhorinha de Cabeceiras de Basto, Arquivo Distrital de Braga


Figueira, Joaquim Fernandes - “O Conde de Basto : epitáfio que se desfaz
in  Prisma de N.º 1, Abril 1941.


Tentativa de dedução genealógica da família Caldas / Diogo Paiva e Pona


Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses/  coordenado por Barroso da Fonte



sábado, 8 de dezembro de 2018

Travessa de Estremoz e terrina de fabrico desconhecido

Não há muito tempo, o meu amigo Manel comprou este belo conjunto de terrina e travessa na feira de Estremoz. São faianças decoradas à moda da faiança de Ruão, muito típicas de toda a produção portuguesa dos últimos trinta e cinco anos do século XVIII. Creio eu que quase todas as fábricas portuguesas de Estremoz a Viana do Castelo executaram louças com esta decoração e por essa razão, se as peças não estão marcadas, o que acontece quase sempre, é um sarilho identificar-lhes o fabricante.


Contudo a travessa deste conjunto apresenta uma marca no tardoz. No início, o Manel pensou tratar-se de uma marca da fábrica do Cavaquinho de Vila Nova de Gaia, pois é de facto parecida, com a que aparece reproduzida como o nº 121 no Dicionário de marcas de faiança/ Filomena Simas, Sónia Isidro.
CX. Marca da travessa de faiança do meu amigo Manel
Contudo, algum tempo mais tarde, tive o prazer de conhecer pessoalmente Isabel Maria Fernandes, autora do livro sobre os Meninos Gordos e que tem colaborado com textos seus em catálogos, como A fábrica de Vilar de Mouros, ou A colecção de faiança do Museu de Arte Decorativas de Viana do Castelo e claro, acabámos os dois a ter uma longa cavaqueira sobre faiança e esta especialista em cerâmica alertou-me para o facto de ser saído um artigo muito inovador de Hugo Alexandre Guerreiro, sobre a faiança de Estremoz. Neste texto, publicado no nº 4 da revista de Olaria o autor relaciona uma marca da Fábrica, CX, com um mestre daquela fábrica, Sebastião Lopes Gavixo.

Travessa de Faiança de Estremoz, 1774-1775. Marcada com as iniciais CX. Col. Joaquim Torrinha. Foto reproduzida de Apontamentos sobre a faiança de Estremoz / Hugo Alexandre Guerreiro 

Lembrei-me da marca da travessa do Manel e logo que pude, corri a consultar o artigo da revista de Olaria e com efeito a marca da travessa do Manel é igualzinha, aquela reproduzida na revista, bem como a própria travessa, onde está a dita marca, é em tudo idêntica à do Manel.

O texto de Hugo Alexandre Guerreiro é muito interessante e dá-nos conta de três mestres que trabalharam na fábrica de Estremoz, cruzando as informações obtidas nos livros de passaportes, com outras investigações já feitas por Alexandre Nobre Pais e João Pedro Monteiro, publicadas no nº 5 e 6 (1997-98) da revista Callipole, com o título A Faiança de Estremoz: um contributo para a história do seu fabrico.

O primeiro é Sebastião Lopes Gavixo, mencionado no processo de licenciamento da Fábrica de Miragaia como um mestre que aprendeu a sua arte na Fábrica do Rato, com Tomás Burneto, trabalhou na Fábrica de Massarelos e depois e na Fábrica de Estremoz.



Hugo Alexandre Guerreiro cruza estes dados com os registos de passaporte da Câmara de Estremoz, pois nas sociedades do antigo regime não havia livre circulação de pessoas e bens dentro do País e consegue surpreender os movimentos deste Sebastião Lopes Gavixo, bem como de outros dois mestres, Luís Freme de Rosa e Joaquim Freme de Rosa. A partir dos dados dos passaportes, o autor consegue perceber que os dois últimos senhores, que já se dedicavam à olaria, se deslocaram ao Porto, para aprender a técnica da faiança em Massarelos, onde terão conhecido Sebastião Lopes Gavixo. Certamente o terão convidado para nova fábrica de louça fina que estava a arrancar em Estremoz e doravante os três exercerão a sua actividade como mestres, na fábrica daquela cidade.


Ainda através dos registos de passaporte da Câmara de Estremoz, o autor identifica a área geográfica onde a Fábrica de Estremoz consegue vender os seus produtos, isto é, as feiras do Alentejo, de Setúbal, de Lisboa e ainda das povoações ribatejanas. Por último, estabelece novas datas de laboração da Fábrica de Estremoz, 1774-1806.

Em suma, a travessa do Manel foi fabricada em Estremoz, marcada com as iniciais do mestre Sebastião Lopes Gavixo, cuja actividade decorreu nesta cidade entre 1774-1775.



O problema é a identificação da terrina, que não está marcada. Embora a decoração seja muito semelhante a travessa, não é exactamente igual. A pasta também é mais branca, que a travessa, mas essa diferença, pode-se dever ao facto que nos fornos onde eram cozidas as peças a temperatura não era uniforme em baixo ou em cima e nem de fornada para fornada, conforme já explicou o ceramista Jorge Saraiva no blog da Maria Isabel. No catálogo A colecção de faiança do Museu de Arte Decorativas de Viana do Castelo está reproduzida uma terrina com um formato semelhante, mas a decoração embora seja parecida não é igual. Enfim, é muito complicado saber se a terrina também é de Estremoz ou de uma outra fábrica qualquer, que tivesse laborado na mesma época, até porque como vimos ao longo deste texto, os mestres circulavam de fábrica para fábrica, de Lisboa para Gaia, de Gaia para Estremoz e novamente para Gaia e por consequência, todas as peças com esta decoração ruanesca apresentam o mesmo ar de família.


Bibliografia consultada:

Apontamentos sobre a faiança de Estremoz / Hugo Alexandre Guerreiro
in
Olaria. - Barcelos: Câmara Municipal de Barcelos, nº 4 (2008-2010), p. 68-117

Dicionário de marcas de faiança/ Filomena Simas, Sónia Isidro. – Lisboa: Estar Editora, 1996