Não há muito tempo, o meu amigo Manel comprou este belo conjunto de terrina e travessa na feira de Estremoz. São faianças decoradas à moda da faiança de Ruão, muito típicas de toda a produção portuguesa dos últimos trinta e cinco anos do século XVIII. Creio eu que quase todas as fábricas portuguesas de Estremoz a Viana do Castelo executaram louças com esta decoração e por essa razão, se as peças não estão marcadas, o que acontece quase sempre, é um sarilho identificar-lhes o fabricante.
Contudo a travessa deste conjunto apresenta uma marca no tardoz. No início, o Manel pensou tratar-se de uma marca da fábrica do Cavaquinho de Vila Nova de Gaia, pois é de facto parecida, com a que aparece reproduzida como o nº 121 no Dicionário de marcas de faiança/ Filomena Simas, Sónia Isidro.
CX. Marca da travessa de faiança do meu amigo Manel |
Contudo, algum tempo mais tarde, tive o prazer de conhecer pessoalmente Isabel Maria Fernandes, autora do livro sobre os Meninos Gordos e que tem colaborado com textos seus em catálogos, como A fábrica de Vilar de Mouros, ou A colecção de faiança do Museu de Arte Decorativas de Viana do Castelo e claro, acabámos os dois a ter uma longa cavaqueira sobre faiança e esta especialista em cerâmica alertou-me para o facto de ser saído um artigo muito inovador de Hugo Alexandre Guerreiro, sobre a faiança de Estremoz. Neste texto, publicado no nº 4 da revista de Olaria o autor relaciona uma marca da Fábrica, CX, com um mestre daquela fábrica, Sebastião Lopes Gavixo.
Travessa de Faiança de Estremoz, 1774-1775. Marcada com as iniciais CX. Col. Joaquim Torrinha. Foto reproduzida de Apontamentos sobre a faiança de Estremoz / Hugo Alexandre Guerreiro |
Lembrei-me da marca da travessa do Manel e logo que pude, corri a consultar o artigo da revista de Olaria e com efeito a marca da travessa do Manel é igualzinha, aquela reproduzida na revista, bem como a própria travessa, onde está a dita marca, é em tudo idêntica à do Manel.
O texto de Hugo Alexandre Guerreiro é muito interessante e dá-nos conta de três mestres que trabalharam na fábrica de Estremoz, cruzando as informações obtidas nos livros de passaportes, com outras investigações já feitas por Alexandre Nobre Pais e João Pedro Monteiro, publicadas no nº 5 e 6 (1997-98) da revista Callipole, com o título A Faiança de Estremoz: um contributo para a história do seu fabrico.
O primeiro é Sebastião Lopes Gavixo, mencionado no processo de licenciamento da Fábrica de Miragaia como um mestre que aprendeu a sua arte na Fábrica do Rato, com Tomás Burneto, trabalhou na Fábrica de Massarelos e depois e na Fábrica de Estremoz.
Hugo Alexandre Guerreiro cruza estes dados com os registos de passaporte da Câmara de Estremoz, pois nas sociedades do antigo regime não havia livre circulação de pessoas e bens dentro do País e consegue surpreender os movimentos deste Sebastião Lopes Gavixo, bem como de outros dois mestres, Luís Freme de Rosa e Joaquim Freme de Rosa. A partir dos dados dos passaportes, o autor consegue perceber que os dois últimos senhores, que já se dedicavam à olaria, se deslocaram ao Porto, para aprender a técnica da faiança em Massarelos, onde terão conhecido Sebastião Lopes Gavixo. Certamente o terão convidado para nova fábrica de louça fina que estava a arrancar em Estremoz e doravante os três exercerão a sua actividade como mestres, na fábrica daquela cidade.
Ainda através dos registos de passaporte da Câmara de Estremoz, o autor identifica a área geográfica onde a Fábrica de Estremoz consegue vender os seus produtos, isto é, as feiras do Alentejo, de Setúbal, de Lisboa e ainda das povoações ribatejanas. Por último, estabelece novas datas de laboração da Fábrica de Estremoz, 1774-1806.
Em suma, a travessa do Manel foi fabricada em Estremoz, marcada com as iniciais do mestre Sebastião Lopes Gavixo, cuja actividade decorreu nesta cidade entre 1774-1775.
O problema é a identificação da terrina, que não está marcada. Embora a decoração seja muito semelhante a travessa, não é exactamente igual. A pasta também é mais branca, que a travessa, mas essa diferença, pode-se dever ao facto que nos fornos onde eram cozidas as peças a temperatura não era uniforme em baixo ou em cima e nem de fornada para fornada, conforme já explicou o ceramista Jorge Saraiva no blog da Maria Isabel. No catálogo A colecção de faiança do Museu de Arte Decorativas de Viana do Castelo está reproduzida uma terrina com um formato semelhante, mas a decoração embora seja parecida não é igual. Enfim, é muito complicado saber se a terrina também é de Estremoz ou de uma outra fábrica qualquer, que tivesse laborado na mesma época, até porque como vimos ao longo deste texto, os mestres circulavam de fábrica para fábrica, de Lisboa para Gaia, de Gaia para Estremoz e novamente para Gaia e por consequência, todas as peças com esta decoração ruanesca apresentam o mesmo ar de família.
Bibliografia consultada:
Apontamentos sobre a faiança de Estremoz / Hugo Alexandre Guerreiro
in
Olaria. - Barcelos: Câmara Municipal de Barcelos, nº 4 (2008-2010), p. 68-117
Dicionário de marcas de faiança/ Filomena Simas, Sónia Isidro. – Lisboa: Estar Editora, 1996
Os prazeres da inestigação, os quais apenas quem tem esse tino poderá entender! Segui aqui com excitação seu relato, as dicas, descobertas, confirmações, as peças idênticas, como se fosse eu a investigar! Parabéns Luis pela pesquisa e descobertas, e Manel pelas peças de um encanto ímpar! Estas faianças portugueses mais antigas tem um charme só delas, ao conjugar um desejo por elegância e sofisticação, mas ainda com um certo "quê" de ingenuidade.
ResponderEliminarabraços!
Fábio
EliminarMuito obrigado pelo teu comentário. Aqui o mérito pertence ao Hugo Alexandre Guerreiro, Alexandre Nobre Pais e João Pedro Monteiro, que investigaram estes assuntos nos arquivos. Pela minha parte procuro andar atento ao que se vai publicando sobre a faiança portuguesa, para identificar as peças que o Manel e eu vamos comprando e claro, aproveito para divulgar o resultado das minhas leituras para a comunidade dos colecionadores e para os amantes da cerâmica.
A faiança portuguesa tem esta característica, usa modelos eruditos vindos de França, mas adapta-os livremente com um cunho um bocadinho ingénuo, que a torna muito apelativa e original.
Um abraço lisboeta
Terrina belíssima, o prato parece não ser mesmo dela, mas o formato é perfeito para a terrina. deveria ser dois aparelhos semelhantes.
ResponderEliminarQue beleza essas cerâmicas portuguesas, "grosseiras", pesadonas, mas de uma elegância que não deviam em nada às inglesas.
Não vejo nunca por aqui, infelizmente. Os ricos daqui só compravam a louça inglesa ou francesa. Uma pena, os antiquários estão cheios delas e nada das portuguesas para vender.
Um abraço.
Jorge
EliminarÉ muito provável que a terrina são seja do mesmo fabricante que a travessa. Em tempos, alguém partiu a travessa da terrina e comprou outra parecida para fazer par. Também há a hipótese de o comerciante de velharias ter juntado a terrina e a travessa para tentar obter um preço mais elevado. Enfim, só Deus sabe.
Os modelos que estas peças tomaram foram os da faiança francesa, mas enquanto as faianças de Ruão são muito bem pintadinhas, os ceramistas portuguesas tinham uma pincelada mais rápida e livre, o que lhes dá esta graça ingénua.
Não perca a esperança de encontrar peças deste período no Brasil. Algumas fábricas desta época, como Miragaia ou Viana exportavam muito para o Brasil, conforme se pode comprovar nos registos alfandegários. Ainda recentemente um seguidor brasileiro desta página, o Amarildo Blanc mostrou no seu blog um areeiro de Viana lindíssimo, comprado aí, nas terras de Vera Cruz. Ele nem sabia bem o que tinha, nem o valor da peça.
Um grande abraço da velha cidade de Lisboa
Olá, Luís, quando eu li o livro sobre a fazenda do Brejo Seco, no interior da Bahia, que pertencia à família Canguçu, o autor, que se valeu de dois livros de assentos da fazenda do final do século XVIII e do XIX, faz referências ao papel usado para fazer os livros, papel grosso que vinha de Penedo, Portugal e, depois um mais fino e que tinha marca d'água. Para escrever nesse papel grosseiro usava-se pena de ganso que, moles, corriam bem sobre a superfície rugosa do papel e, depois, passou-se a usar a pena metálica e, para secar a tinta fresca, recorria-se ao areeiro. Nos livros pesquisados ainda continham restos daquela areia "pó escuro de reflexo metálico."
EliminarQuando eu li o livro julguei que a peça, o areeiro, fosse um tubo de vidro com tampa de rosca de metal e com furos onde se colocava a "areia", para que pudesse ser usada sobre as folhas recém escritas.
Fui ao Google e encontrei, o tal areeiro que não sabia, até vc comentar aqui, que fosse feito de cerâmica.
São peças lindas! São bojudos, impossível se confundir com paliteiros e nunca vi os tais areeiros em antiquários daqui da cidade. O que é uma pena, pois tenho tantos assentos para secar...
Adorei os areeiros!
Sendo de cerâmica como eles eram abertos para colocar a areia dentro??? Punha pelos próprios orifícios??
A tal areia deveria ser própria para o tal uso...do que ela poderia ser feita?
Abraços.
Já li o último post seu...o da noviça fogosa kkkkk
Jorge
EliminarBoa pergunta que faz. Também não sei bem a resposta. Sei que os areeiros em faiança costumavam ser vendidos em par com o tinteiro e por vezes com uns recipientes parecidos com a base de um galheteiro, a escrivaninha, onde se encaixavam o areeiro e o tinteiro. Também não sei que areia usavam. Talvez uma areia fininha de rio, formada a partir de xisto e granito, mas estou a especular. Vou pesquisar um pouco sobre esse assunto.~
Um abraço
Obrigado, Luís.
EliminarPois é, quando adquiri as peças sabia que a marca da travessa constava já nos livros do Queiroz, depois copiado para o Dicionário de marcas de faiança/ Filomena Simas, Sónia Isidro, como sendo de fabrico portuense, mais concisamente, da Fábrica do Cavaquinho.
ResponderEliminarApesar do vendedor assegurar que a terrina e travessa faziam conjunto, olhando melhor, a terrina não possuía marca e tinha um desenho ligeiramente diferente do da travessa, e o próprio vidrado tinha uma tonalidade mais azulada.
Mas lembrei-me da explicação do ceramista Jorge Saraiva, e pensei que o facto da tonalidade ser diferente, isso poderia nada significar, no entanto, não fiquei lá muito convencido.
O desenho era diferente, e isso foi razão para que duvidasse das duas peças fazerem conjunto. No entanto, para me consolar, considerei que, apesar disso, as peças se conjugavam muito bem, tinham um recorte absolutamente semelhante, e ficavam bem juntas.
Durante estes dois anos que as peças passaram a estar em minha casa, achei-as sempre uma graça, e faziam sobressair tudo o que estava em volta, até que um dia ... chegaste muito excitado a falar sobre a marca "CX", o que tinha resultado da conversa que tinhas tido com Isabel Maria Fernandes, e sobre a hipótese das peças serem afinal da produção estremocense.
Claro que fiquei igualmente excitado e cheio de curiosidade.
Lido o artigo a que fazes referência, fiquei a admirar a criatividade que é possível na pesquisa, pois nunca me lembraria de analisar os documentos de movimentação das pessoas naquela época, quando as deslocações não eram livres e as pessoas tinham de dar explicações sobre as suas idas e vindas.
Muito bem achado!!!! Nunca me lembraria disso, aliás, nem sabia que existia tal documentação ou limitação ao movimento de populações.
Estaria bem arranjado se hoje isso se aplicasse!!!
E, afinal, este homem é uma figura de primeiro plano na produção cerâmica nacional, pois esteve primeiramente na 1ª fábrica existente, Massarelos, passou para o Rato, sob a direção de Burneto, foi iniciar a produção de louça em Estremoz, e, finalmente, foi com base nas peças que fabricou, como prova de qualidade, que a Fábrica de Miragaia pode ser licenciada!!!!!
Percurso impecável para este Sebastião Lopes Gavixo!
O desenho do "CX"que aparece na obra de Sven Stapf "Faiança Portuguesa Faiança de Estremoz",
bem observado, parece-se com um "G" e um "X", desenhados de uma forma conjunta e simplificada (isto já é uma teoria minha, nada a ver com qualquer facto comprovado).
Parabéns pelo post, que está muito bom, como nos habituas sempre, e também quero agradecer a Isabel Maria Fernandes por te ter dado a conhecer este artigo, fundamental para este conhecimento.
Manel
Manel
EliminarIndependentemente de a travessa e a terrina serem de fabricantes diferentes, as duas fazem um belo conjunto.
O trabalho de investigação de Hugo Alexandre Guerreiro bem como os de Alexandre Nobre Pais e João Pedro Monteiro, demonstram que o estudo da faiança não se pode limitar á análise estilística e que esta deve ser cruzada com os dados obtidos nos arquivos, bem como com o trabalho dos arqueólogos.
Também sou de opinião que este CX poderá ser bem um GX, pintado apressadamente.Faz mais sentido Amanhã vou digitalizar a imagem dessa marca e acrescenta-la no post.
Um abraço
Muito interessante. Ambas as peças são lindas. Bom dia!
ResponderEliminarMargarida
EliminarPeço desculpa só agora agradecer o seu comentário, mas andei embrenhado nas histórias antigas de família. bjos e boa semana de trabalho