sábado, 23 de junho de 2012

Um Menino Jesus em traje mundano


Na feira de velharias de Estremoz fiz mais uma pequena loucura e tomei-me de amores por um Menino Jesus, em barro, muito pequeno, com cerca de 13 cm de altura e vestido com uma delicada fatiota mundana, como se fosse uma criança criada numa qualquer corte europeia do século XVIII. O menino levanta também a sua túnica num gesto quase atrevido mostrando os seus dessous.
Confesso que desde o momento que o comprei me recordei logo dos meninos jesus pintados pela Josefa de Óbidos, no século XVII, com vestidinhos transparentes e laçarotes.  

Menino Jesus de Josefa de Óbidos, pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga

E fiquei tão fascinado com este meu Menino quase feminino que procurei informar-me alguma coisa sobre esta representação, que aos nossos olhos contemporâneos quase nos parece travestida.

As imagens individuais do Menino Jesus começaram a aparecer em Portugal no século XVI. Contudo, foi nos séculos XVII e XVIII que o culto destas imagens atingiu no nosso País o seu apogeu, sobretudo nos conventos femininos. Nestas grandes casas religiosas estavam encerradas mulheres das melhores famílias do reino, ociosas, impedidas de casar e sem poderem dar largas aos seus instintos maternais. As pequenas imagens tornaram-se nos filhos que que lhes foram proibidos e os meninos Jesus foram então acarinhados, vestidos com as melhores roupas e para eles foram encomendadas poltronas e pequenas camas, perfeitas cópias em miniatura das melhores mobílias em voga nos séculos XVII e XVIII.

barro

As imagens do Menino Jesus proliferavam por todos os locais dos conventos, desde a Igreja aos lugares de recreação, passando pelo Coro. Algumas irmãs formaram verdadeiras colecções particulares nas suas celas. Outras encomendaram pinturas de meninos Jesus em vestes delicadas e rodeadas de flores, assentes em almofadas de brocado e veludo a artistas como Josefa de Óbidos, e outras ainda compuseram-lhe versos, que são no fundo a sublimação de sentimentos maternais ou sexuais frustrados.
Menino Jesus, Salvador do Mundo. Josefa de Óbidos

Outra característica deste culto era o luxo das fatiotas encomendas para vestir os meninos. Os bonecos talhados em madeira ou moldados a barro eram vestidos como pastores galantes, com trajes de corte ou de caça ainda. Os tecidos escolhidos eram luxuosos e nestes enxovais não faltam roupas de dentro, sapatinhos, meias, espadas, chapéus de tricórnio e lençóis bordados de rendas para aconchegar os meninos nos seus leitos.

Estas estravagâncias femininas foram denunciadas pelos teólogos e houve até constituições sinodais, como as do bispado de Elvas, que proibiram as imagens do Menino Jesus trajando vestidos profanos. Porém ninguém lhes ligou nada, os rechonchudos meninos mereceram todos os mimos das irmãs e o culto difundiu-se rapidamente dos conventos para dentro das grandes casas fidalgas, onde se fizeram maquinetas talhadas em pau-santo para albergar os Meninos Jesus.

Este culto caiu rapidamente no século XIX com a extinção das ordens religiosas, mas sobreviveu aqui e acolá, em algumas igrejas, onde a devoção se enraizou com força na população, como na Sé de Miranda, onde se continua a venerar o Menino Jesus da Cartolinha, que possui um notável enxoval.

Que irmã terá acarinhado este meu Menino Jesus que levanta de forma atrevida a sua túnica azul?

Para quem quiser sabes mais sobre este culto tão curioso, recomendo O vestuário mundano de algumas imagens do Menino Jesus / Flávio Gonçalves. Porto, 1967

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Uma Verónica preciosa


Já aqui apresentei alguns registos de santos preciosamente encaixilhados, a que antigamente se davam o nome de verónicas. Desta vez apresento, mais uma dessas peças, particularmente rica e trabalhada. Não irei aqui descreve-la, porque as imagens falam por si e mostram bem o virtuosismo e o bom gosto da Senhora, que fabricou este objecto de devoção com restos de passamanaria, que sobrou da confecção de alguma paramentaria religiosa ou quem sabe de um vestido luxuoso. A Senhora, que recortou pedacinhos de lata dourada, que formam uma ornamentação complicada no centro da Verónica, certamente foi educada numa casa religiosa e seria proveniente de uma família burguesa abastada ou fidalga.


No centro da Verónica há uma imagem em pano de Nossa Senhora do Carmo toda bordada a prata. Não é muito antiga. Talvez dos últimos anos do Século XIX ou mais provavelmente do início do Século XX. Neste período vulgarizaram-se os registos em pano, que serviam de base à construção destas verónicas. Eram comercializados em folhas com vinte ou trintas imagens e depois vendidos à unidade em retrosarias ou casas de artigos religiosos e comprados por senhoras devotas, como aquela que fez esta bela Verónica pertencente ao meu amigo Manel.


O meu amigo Humberto fez o favor de me oferecer umas quantas dessas folhas, que nunca se chegaram a vender, cheias destes santinhos, fabricados por uma sociedade francesa, que os Senhores Ouvry e Beraudy criaram em 1908, na cidade de Ambert. Esta firma que ainda hoje existe e continua a dedicar-se ao comércio de artigos religiosos, confeccionava estes registos com legendas em italiano, neerlandês, francês e espanhol, destinados a serem vendidos em todo o mundo católico, inclusive Portugal.

Era um tempo em que estes objectos não eram só decorativos, mas pequenos símbolos, cuja presença assegurava às pessoas devotas, como à Senhora que executou esta Verónica, a existência de seres poderosos no céu, que protegiam a sua existência e lhe garantiam que depois da morte não havia um eterno nada. Aliás, esta senhora nem conceberia a ideia de um nada depois da morte e enfim não a podemos condenar por isso.


domingo, 10 de junho de 2012

O velho cerco de Vinhais: algumas fotografias


Pesquisar gavetas de antigas cómodas é sempre um trabalho gratificante, sobretudo quando encontramos os álbuns fotográficos, que antigamente as famílias compilavam com tanto cuidado. Estas imagens são importantes para a memória dos descendentes, mas muitas delas vão mais além dessa dimensão pessoal e constituem fontes importantes para a história da comunidade, porque de uma forma quase involuntária, quando tentavam retratar os seus familiares, os fotógrafos amadores gravaram instantâneos de edifícios, que caíram há muito ou aspectos de burgos medievais, ainda intocados pelo desenvolvimento selvagem dos últimos 40 anos.

Será o caso destas fotografias de Vinhais tiradas nos anos 40, que capturaram um pouco do que era o velho burgo medieval, ainda bastante visível neste período.

A fotografia que abre o blog é o de uma velha torre do castelo de Vinhais, que ruiu pouco tempo depois de esta fotografia ser tirada. Aliás já se vê uma grande racha, que preanuncia a queda iminente de parte da torre.

A mesma torre nos dias de hoje. Foto copiada de http://fotosvinhais-raulcoelho.blogspot.pt/


O Castelo de Vinhais é uma criação da primeira dinastia, destinada a assegurar um ponto de defesa e refúgio de várias povoações disseminadas pelo amplo vale de Vinhais. Na época, talvez nem se chamasse Vinhais, mas Póvoa Rica ou Crespos, mas o cerco amuralhado, destinado a albergar quer as populações em caso de ataque, quer uma autoridade administrativa tomou o nome de todo o território, que estava coberto de vinhas. Aliás, segundo o Abade Baçal, os montes do concelho ainda estariam cobertos de vinhas até à epidemia da Filoxera, que partir de 1865, atacou os vinhedos portugueses e alterou radicalmente o mapa da cultura vinícola na Europa.

Seja como for Vinhais teve foral com Afonso III a 20 de Maio de 1253 e por essa época já devia ter as suas muralhas mais ou menos definidas, até porque era um ponto importante de defesa da fronteira Norte do reino de Portugal, pois a Galiza e Leão estavam a uns escassos km acima. A antiga estrada romana que ligava Braga, Chaves e Astorga passava pelo Concelho e era ainda usada na Idade Média e havia que a proteger com um reduto fortificado no caso de uma invasão. Esse casco urbano era dominado por uma igreja paroquial, dedicada a Santa Maria, como quase todos os burgos medievais.

O velho burgo medieval de Vinhais com a igreja matriz, de Sta. Maria, dominando o conjunto. Julgo que a fotografia terá sido tirada antes de 1949, ano em que o meu avô materno morreu. É o senhor que segura o guarda-chuva e já estaria bastante debilitado.

Durante as guerras da Restauração, o castelo voltou a ser usado para defender uma invasão espanhola comandada pelo general Pantoja, um tipo particularmente feroz, que queimou todas as casas fora do cerco.


Na última fotografia, do lado esquerdo do velho cerco medieval, podemos ver chamada rua nova, que sai da praça do arrabalde e onde se perfilam as casas mais nobres do burgo, como o imponente solar dos condes de Vinhais. Será já um eixo urbano de criação seiscentista ou setecentista. Talvez esta fotografia seja do início dos anos 30, pois não vejo do lado direito, Souto Covo, a casa da família materna construída em 1934.

Creio que os habitantes de Vinhais encontrarão algum interesse nestas velhas fotos e se alguém quiser cópias de melhor qualidade, enviá-las-ei com muito gosto.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Ó senhor barqueiro, deixai-me passar


A Linda falua é uma cantilena infantil, que toda a gente conhece, mas ao mesmo tempo é uma reminiscência de um ancestral culto dos mortos da antiga Grécia e Roma. Recordei-me dela e do seu significado numa destas últimas noites quando acompanhava a agonia da minha mãe. Nas suas derradeiras horas, na cama do hospital, quando a minha mãe já dormia aquele sono, que anuncia a terra do nada, lembrei-me que os antigos romanos colocavam uma moeda na boca do falecido, para que este pudesse pagar a Caronte, o barqueiro do Hades, o transporte através do rio dos infernos para o reino dos mortos. Eu que não tenho qualquer crença, encontrei algum consolo neste pensamento, imaginando a minha mãe deslizando numa barca em direcção ao repouso do eterno nada.


Ó senhor Barqueiro
deixai-me passar,
tenho filhos pequeninos
não os posso sustentar. 


Passará, passará ,
mas algum deixará,
se não for a mãe da frente
é o filho lá de trás.