Na feira de velharias de Estremoz fiz mais uma pequena loucura e tomei-me de amores por um Menino Jesus, em barro, muito pequeno, com cerca de 13 cm de altura e vestido com uma delicada fatiota mundana, como se fosse uma criança criada numa qualquer corte europeia do século XVIII. O menino levanta também a sua túnica num gesto quase atrevido mostrando os seus dessous.
Confesso que desde o momento que o comprei me recordei logo dos meninos jesus pintados pela Josefa de Óbidos, no século XVII, com vestidinhos transparentes e laçarotes.
Menino Jesus de Josefa de Óbidos, pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga |
E fiquei tão fascinado com este meu Menino quase feminino que procurei informar-me alguma coisa sobre esta representação, que aos nossos olhos contemporâneos quase nos parece travestida.
As imagens individuais do Menino Jesus começaram a aparecer em Portugal no século XVI. Contudo, foi nos séculos XVII e XVIII que o culto destas imagens atingiu no nosso País o seu apogeu, sobretudo nos conventos femininos. Nestas grandes casas religiosas estavam encerradas mulheres das melhores famílias do reino, ociosas, impedidas de casar e sem poderem dar largas aos seus instintos maternais. As pequenas imagens tornaram-se nos filhos que que lhes foram proibidos e os meninos Jesus foram então acarinhados, vestidos com as melhores roupas e para eles foram encomendadas poltronas e pequenas camas, perfeitas cópias em miniatura das melhores mobílias em voga nos séculos XVII e XVIII.
As imagens do Menino Jesus proliferavam por todos os locais dos conventos, desde a Igreja aos lugares de recreação, passando pelo Coro. Algumas irmãs formaram verdadeiras colecções particulares nas suas celas. Outras encomendaram pinturas de meninos Jesus em vestes delicadas e rodeadas de flores, assentes em almofadas de brocado e veludo a artistas como Josefa de Óbidos, e outras ainda compuseram-lhe versos, que são no fundo a sublimação de sentimentos maternais ou sexuais frustrados.
Menino Jesus, Salvador do Mundo. Josefa de Óbidos |
Outra característica deste culto era o luxo das fatiotas encomendas para vestir os meninos. Os bonecos talhados em madeira ou moldados a barro eram vestidos como pastores galantes, com trajes de corte ou de caça ainda. Os tecidos escolhidos eram luxuosos e nestes enxovais não faltam roupas de dentro, sapatinhos, meias, espadas, chapéus de tricórnio e lençóis bordados de rendas para aconchegar os meninos nos seus leitos.
Estas estravagâncias femininas foram denunciadas pelos teólogos e houve até constituições sinodais, como as do bispado de Elvas, que proibiram as imagens do Menino Jesus trajando vestidos profanos. Porém ninguém lhes ligou nada, os rechonchudos meninos mereceram todos os mimos das irmãs e o culto difundiu-se rapidamente dos conventos para dentro das grandes casas fidalgas, onde se fizeram maquinetas talhadas em pau-santo para albergar os Meninos Jesus.
Este culto caiu rapidamente no século XIX com a extinção das ordens religiosas, mas sobreviveu aqui e acolá, em algumas igrejas, onde a devoção se enraizou com força na população, como na Sé de Miranda, onde se continua a venerar o Menino Jesus da Cartolinha, que possui um notável enxoval.
Que irmã terá acarinhado este meu Menino Jesus que levanta de forma atrevida a sua túnica azul?
Para quem quiser sabes mais sobre este culto tão curioso, recomendo O vestuário mundano de algumas imagens do Menino Jesus / Flávio Gonçalves. Porto, 1967