sábado, 29 de janeiro de 2022

Admirando Zurbarán



Não recordo exactamente quando descobri e me apaixonei pela obra do pintor espanhol Francisco de Zurbarán (1598-1664). Creio que foi por volta de 1989 ou 1990, quando o meu sogro e a sua mulher nos ofereceram um extenso e grosso catálogo da sua obra. Já não recordo sequer que edição era, mas as pinturas de santas impressionaram-me de tal maneira, que decidi começar a fazer uns pastiches à inspirados naquelas virgens mártires e santas mulheres. Copiava uma das suas pinturas a lápis, depois rodeava o desenho com uma cercadura, também copiada de um daqueles registos de santos do século XVIII, passava depois tudo com uma caneta de tinta da china e por vezes dava uma aguarelada aqui e ali. Estes trabalhos eram feitos sobre papel antigo, pois como nas bibliotecas e arquivos por onde passei sempre apareciam folhas soltas dos séculos XVIII ou XIX, usava-as para dar um certo ar antigo.

Fiz vários desses pastiches que dei a amigos e familiares, entre os quais este que mostro hoje, que talvez por ser o mais bem conseguido, o ofereci ao meu pai há cerca de 30 anos.

O Zurbarán pintava as suas santas e virgens mártires com trajes de um luxo fabuloso, de cetim, brocado, veludo ou seda como se fossem entrar numa peça de teatro ou desfilar numa passagem de modelos de um grande costureiro. Os martírios horríveis pelos quais passaram estão discretamente presentes através de pequenos símbolos, como a palma de martírio ou o atributo do seu suplício, a roda, um prato com uns olhos, ou uns seios. No entanto há sempre algo de meditativo e triste no olhar destas santas de Zurbarán, que produz um contraste com o luxo extravagante das suas vestes, como se simbolizassem as contradições dessa Espanha dividida entre o ascetismo e a sensualidade.

Santa Doroteia por Zurbarán. Foto Wikipedia

Esta característica das Santas de Zurbarán atraiu-me muito numa época, onde me interessava ainda bastante por moda. Na juventude ambicionei mesmo tornar-me estilista, desenhava a minha roupa e ainda concebia fatos e vestidos para amigas. Cheguei mesmo a comprar um álbum, uma edição qualquer americana dos anos 50, onde ensinava a representar num desenho o cair do tule, o brilho do cetim, ou através das sombras o drapeado e as pregas de um vestido. E claro, para alguém interessado em moda, as santas do Zurbarán são quase um manual, um compêndio de estudo sobre a forma de representar um veludo ou uma seda.

Neste desenho, consegui de alguma forma dar a ideia do luxo sumptuoso dos trajes das santas daquele pintor espanhol, mas falhei completamente em tentar captar o olhar de meditação e recolhimento da Santa Catarina, pois enfim, os meus talentos artísticos eram limitados.


Quando ofereci este desenho ao meu pai não ligava muito às molduras e foi encaixilhado num simples acrílico. Depois da morte do meu pai decidi trazer este desenho para casa e resolvi emoldurá-lo como deve ser. Escolhi uma moldura antiga, que comprei num adelo e como passe-partout usei um retalho de um velho damasco de seda, que forrava um cadeirão e dois tamboretes herdados da minha avó. Nesta altura, o Manel sugeriu-me recortar o desenho, e cola-lo no tecido, imitando de alguma forma as antigas verónicas, esses trabalhos com que senhoras devotas no passado encaixilhavam os santinhos.

Claro, todo este trabalho, não passa de um conjunto de cópias e reutilização de materiais velhos, mas daqui a vinte anos, com a luz e o pó, ganhará uma patina, que talvez o faça passar por peça antiga.


Bibliografia que serviu de inspiração para este texto:

 O (Des)Caminho para Santiago / de Cees Nooteboom. Lisboa: Edições ASA, 2003. 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

CONVERSAS NO MUSEU: coleccionismo e redes sociais


Quando pensamos num coleccionador imaginamos alguém a inventariar selos ou moedas, numa actividade silenciosa, que partilha com um número restrito de pessoas ou ainda alguém, que colecciona pinturas valiosas e as guarda ciosamente em sua casa.

Actualmente, a internet e as redes sociais permitem aos coleccionadores, sem abrirem as portas de casa mostrarem os seus objectos, as suas investigações sobre as peças, numa experiência de troca de conhecimentos enriquecedora e aberta à comunidade.

A "Conversa" será apresentada pelo bibliotecário do MNAA Dr. Luis Montalvão.

http://velhariasdoluis.blogspot.com/


A Conversa terá lugar:
5ª feira, 27 de Janeiro, às 16h00
Auditório do MNAA

Entrada gratuita :
Número de lugares limitado a 70 (devido às restrições impostas pela DGS)
Inscrições para amigosmnaa@gmail.com

Organização:

GRUPO DOS AMIGOS DO MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA


sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Uma fidalga a banhos na Póvoa de Varzim: 1876-77


Já muitas vezes contei aqui no blog que descendo de uma relação amorosa entre um padre e uma fidalga, os meus trisavós, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) e José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935). Ela era uma mulher bonita de uma antiga família das cercanias de Chaves e ele de Montalegre, de meios relativamente obscuros, que construiu uma carreira sólida de pregador, formou-se já homem maduro em teologia e direito, foi coleccionador de objectos arqueológicos, numismata e ainda colaborador assíduo da imprensa flaviense. Desta relação nasceram dois filhos o José Maria, meu bisavô e o João, que morreu bebé.

Recentemente, depois da morte do meu pai, descobri que o espólio da família se tinha conservado em grande parte e que não tinha desaparecido com a venda da biblioteca do Solar da família Montalvão, aquela casa, que foi um dos cenários desta história amorosa. São centenas de cartas, documentos notariais, recortes de imprensa e manuscritos, que acondicionei em 23 caixas francesas debaixo de uma cama.

Iniciei o inventário da primeira caixa e a leitura das cartas de quem viveu há mais de 100 ou 150 anos, revela e faz renascer um mundo morto. Normalmente, temos uma ideia abstracta dos nossos antepassados mais remotos, formada a partir dos secos assentos paroquiais de baptismo, casamento ou óbito, de recortes de imprensa, de nomeações no boletim oficial do governo, ou ainda de histórias que sobreviveram na tradição familiar. E temos tendência a moldar essa ideia abstracta à nossa própria personalidade, atribuindo a esses antepassados qualidades, que a nossa imaginação romântica aspira para eles. Sempre imaginei que estes meus trisavôs tivessem vivido uma intensa paixão camiliana, desafiando os costumes do seu tempo como o fizeram Ana Plácido e Camilo Castelo Branco.
As caixas francesas

Porém ao iniciar a leitura destas cartas, escritas entre 1876 e 1900, o que me apareceu, foi a verdadeira personalidade destas pessoas, o seu discurso, as suas preocupações quotidianas como se estivessem ainda vivos. É quase como que a sua voz tivesse sobrevivido ao tempo e o esquecimento.

Por enquanto, ainda só localizei a correspondência, que o padre Liberal Sampaio endereçou à minha trisavó, as cartas escritas por ela, ainda não apareceram, mas ainda me encontro a tratar a primeira caixa de um conjunto de 23.

Praia de banhos: Póvoa de Varzim, por Marques de Oliveira, 1888. Colecção do Museu Nacional de Arte Contemporânea


Decidi começar por escrever aqui no blog sobre um conjunto de quatro cartas, escritas por Liberal Sampaio, entre 1876 e 1877, que correspondem a duas temporadas, em que a Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão esteve a banhos na Póvoa de Varzim. Em primeiro lugar é muito curioso observar as datas, as duas primeiras cartas são de Setembro de 1876, respectivamente dos dias 14 e 24 e outras duas de 1877, de 15 e 10 de Outubro. Nesta época, em que a fidalguia e a boa burguesia já faziam a praia, a época mais recomendada eram os meses de Setembro e Outubro. Para nós, nos dias de hoje, que debandamos em massa para o Algarve no mês de Agosto para assarmos ao calor, sentimos um arrepio com a ideia de frequentar uma praia com águas frias como a Póvoa, em Setembro ou Outubro. Mas neste último quartel do século XIX, ir a banhos tem uma função sobretudo terapêutica, que os médicos recomendavam, que se fizesse nos meses mais frescos do Verão. E com efeito, em Setembro e Outubro, a Povoa de Varzim, recebia já entre 20 mil a trinta mil pessoas, a maioria oriunda do Porto, do Minho e de Trás-os-Montes.
A carta de 14 de Setembro de 1876

Como o meu trisavô era um homem informado, que lia os jornais e estava certamente a par do que os médicos preconizavam para os banhistas, na primeira carta dá uma série de conselhos a Maria do Espírito Santo, para melhor aproveitar os banhos. Recomendações essas que são para nós contemporâneos, um retrato vivo do quotidiano dos vilegiadores nesta década de 1870. Aconselha-a a tomar apenas um banho por dia e a seguir descansar e dormir. Devia almoçar uns bons bifes frescos, com um bom caldo de galinha ou vaca e a competente pinga do melhor, em seguida, distrair-se para a praia, procurando estar à sombra, e bem calçada de modos a que os pés não lhe arrefeçam. Depois sugere que se recolha e divirta-se em casa até ao Jantar, que deve ser de comidas substanciais e variadas e pouca ou nenhuma fruta. Acabado o jantar durma, depois merende alguma coisa, vá para o paredão ou outro lugar qualquer onde se divirta, na volta ceie um caldinho de galinha ou carne, e antes de se deitar passei um pouco em casa ou fora
A carta de 14 de Setembro de 1876

Estes horários parecem-nos um pouco estranhos, mas nesta época, pelo menos nos meios mais provincianos, as horas das refeições e os nomes que lhes davam são diferentes dos de hoje. O meu pai ainda se recordava desses horários na casa de Outeiro Seco, onde a Maria do Espírito Santo foi criada e que descreveu da seguinte forma: às 7.30, o mata-bicho; às 10.00 o almoço; às 12.00 o jantar; às 17 a merenda e a ceia às 22/23 horas. Por essa razão, a minha trisavô iria dormir depois do jantar (meio dia), merendar (17.00) e depois sairia para se passear no paredão entre as 17.30 e as 19.30 e às 10 da noite estaria a em casa a comer a ceia.

Embora o meu trisavô fosse padre, não era de todo um beato e escrevia-lhe passei, divirta-se, distraia-se com a praia, com os leilões, com o teatro, com tudo aquilo que julgar honesto e conducente ao aumento da sua saúde. Nesta década de 70 do Século XIX, sobretudo depois de 1875, com o a linha e de caminho de ferro a chegar à vila, a Póvoa de Varzim era uma terra cheia de animação e divertimentos, frequentada pela boa sociedade nortenha. Mas bem entendido, a Maria do Espírito Santo estava acompanhada por uma Senhora, pois uma jovem fidalga nesta época não andava por esse mundo fora sozinha.

A carta de 14 de Setembro de 1876

Também é curioso observar nestas cartas, a intimidade que já existia entre o meu trisavô padre e a Maria do Espírito Santo. Não sei se já seriam amantes nesta época, pois o primeiro filho, destes meus antepassados só viria a nascer a 19 de Maio de 1878, mas sem dúvida já estavam muito próximos. Talvez na segunda temporada de banhos da Maria do Espírito Santo em Outubro de 1877 já estivesse grávida. Em todo o caso, o José Rodrigues Liberal Sampaio trata-a sempre muito respeitosamente por V. Exa. ou minha Senhora. Aliás, até á morte da sua amada em 1902 nunca a tratará por tu nas cartas.

Igualmente, pelas notícias, que Liberal Sampaio dá de Outeiro Seco, percebemos que é intimo da família Montalvão e presença habitual da casa. Descreve ainda como correu bem a festa da Sra. da Azinheira, a padroeira de Outeiro Seco, das pessoas das relações de ambos que colaboram na organização da desta. “De Vila Verde, só veio a Henriquetinha , que está com a Maria Teresa e para adornar a Igreja trabalham muito a Maria Inácia, a Maria Augusta, a Cândida e principalmente a Bárbara”. Embora estes meus trisavôs não fossem beatos, não deixavam de ser devotos e a festa da Senhora da Azinheira, que congregava toda a comunidade, era um assunto relevante numa carta. Aliás, quando mais tarde o filho de ambos nascer, a Nossa Senhora da Azinheira será a madrinha da criança.

Estas cartas não contem revelações espampanantes, mas pela mão dos próprios personagens, proporcionam-nos um retrato detalhado do quotidiano de quem viveu há quase 150 anos. Numa época em que não havia telefone, a carta era o principal meio de comunicação e as pessoas reservavam uma parte importante do seu tempo para actualizarem a correspondência, respondendo a cartas de familiares amigos, narrando o seu quotidiano, dando notícias ou ainda para tratarem de negócios. São documentos que permitem uma ideia mais justa e isenta de preconceitos, dos nossos antepassados e de um tempo que já passou.


Alguma bibliografia consultada:

Contributos para uma história do ir à praia em Portugal / Pedro Alexandre Guerreiro Martins. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2011. https://run.unl.pt/handle/10362/7093