quarta-feira, 22 de maio de 2019

Os pais de Bento Roma: um herói da Primeira Guerra Mundial e governador de Angola


Continuo nos meus trabalhos de exploração do álbum de fotografias formado pelo meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, que é um verdadeiro fresco da sociedade flaviense no último quartel do século XIX. Talvez por essa mesma razão insisto em partilhar publicamente as fotografias do álbum aqui no Blog, pois sinto que não são só pertença da família. Estas imagens são a memória de uma comunidade, da cidade e do Concelho de Chaves e nalguns casos do próprio País.
 
António Gonçalves Roma
Durante o trabalho de inventariação das fotografias, encontrei o retrato de um cavalheiro respeitável, identificado pelo meu trisavô na sua caligrafia miudinha, como António Gonçalves Roma. Na página ao lado desta fotografia estava um retrato de uma família, um senhor sentado, com um bebé sobre os joelhos, visivelmente orgulhoso da sua cria e em pé, a mãe, que posa com a sua melhor toilette, enquanto segura um leque. É engraçado observar como estes fotógrafos do XIX reproduziram a encenação e as convenções do retrato da pintura dos séculos anteriores, em que as grandes damas posavam sempre com um leque na mão, símbolo de riqueza e realeza. O Manuel, meu ajudante precioso neste trabalho de inventariação do álbum do meu trisavô, chamou-me a atenção para o facto, de que o orgulhoso pai da fotografia de conjunto é o mesmo indivíduo, que é representado com umas suíças e um bigode. Portanto, o retrato de grupo representava a família de António Gonçalves Roma.
 
António Gonçalves Roma e o filho
 

Segundo o jornal O Flaviense, nº1, 13 de Junho de 1876, António Gonçalves Bento Roma era um comerciante de algodões, lãs e fazendas em Chaves, com um estabelecimento acabado de inaugurar na Rua Direita. A 18 de Julho, anunciava-se no nº 6 do mesmo jornal, que António Gonçalves Bento Roma e outros comerciantes de Chaves organizaram um bazar de prendas, cujo produto destinava-se a ser aplicado, na compra de uma túnica para a imagem do Senhor dos Passos e um vestido para a devota imagem de Nossa Senhora das Lágrimas (*1). A julgar pela por estas informações e pela toilette complicada da sua mulher, terá sido um comerciante próspero, até porque na época a fotografia ainda era cara.
 
Verso da foto de António Gonçalves Bento Roma. Fotografia União, do fotografo António Correia da Fonseca,  Praça de Sta. Teresa, no Porto 

O retrato de António Gonçalves Roma foi tirado depois de 1876 na Fotografia União, do fotografo António Correia da Fonseca, que tinha sede na Praça de Sta. Teresa, no Porto, que era um dos estúdios mais chiques do Porto. A fotografia da família foi executada no estúdio de António José de Barros, activo desde 1874 na Póvoa de Varzim.
 
Verso da fotografia de grupo. António José de Barros, Póvoa de Varzim, Photographo
 
É certo que esta família burguesa era certamente próspera e talvez pudesse ir a banhos à Povoa de Varzim ou deslocar-se ao Porto em negócios, mas tenho sempre a mesma interrogação nestes casos. Será que os fotógrafos destas casas do Porto e terras circundantes não se deslocariam periodicamente às cidades e vilas do interior Norte, nos dias de festa dos respectivos santos padroeiros, para retratarem os burgueses abastados e a fidalguia locais?
 

Fiz mais umas pesquisas pelo nome deste senhor na internet e acabei por descobrir que António Gonçalves Roma e a sua mulher são nada mais, nada menos, que os pais do Coronel Bento Roma (1884-1953), um herói da primeira guerra mundial e das campanhas em Angola e que chegou a ser governador em Angola. Muitas ruas em diferentes localidades portuguesas ostentam o seu nome. Consultei o registo de baptismo de Bento Roma, nascido a de 2 de Janeiro de 1884, onde encontrei mais algumas informações sobre esta família. António Gonçalves Roma era natural de Chaves, negociante e a sua mulher era Josefina Augusta Esteves natural de Bobadela, Barroso, Concelho de Boticas e moravam na Rua Direita de Chaves. Curiosamente na sua antiga casa situa-se hoje a sede do Grupo Cultural Aquae Flaviae.
O Cornonel Bento Roma
Bento Roma em 1904. Foto retirada de O coronel Bento Roma (1884-1952): homenagens e consagrações em 1954 e 1955.  Lisboa: Of. gráficas da Gazeta dos Caminhos de Ferro, imp. 1955

Embora tenha consultado mais alguns livros de baptismo da então Vila de Chaves, não encontrei informação sobre mais nenhum filho deste casal. Portanto, a fotografia da família poderá muito bem ser o primeiro retrato de Bento Roma e ter sido tirada por volta de 1885 ou 1886.
 
Esta poderá ser a primeira fotografia de Bento Roma.
Não sei exactamente as relações que a família Gonçalves Roma estabeleceu com a minha família, mas Chaves, nos últimos 25 anos do século XIX era um meio pequeno e todos se conheciam. António Gonçalves Roma era um homem devoto, que organizou um bazar para comprar vestes para imagens da Virgem e de Cristo e certamente escutou muitas vezes os sermões do Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, um pregador muito conhecido e era muito natural, que os dois tivessem trocado as respectivas carte-de-visite. Também é possível que a minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão, que era nesta época uma mulher elegante se abastecesse no estabelecimento de tecidos família Roma, para mandar fazer as suas toilettes sofisticadas e a Sra. D. Josefina lhe tivesse oferecido um retrato da família.

Em todo o caso, anos mais tarde, por volta de 1911, os destinos da família Roma poderão ter-se cruzado novamente com os de Liberal Sampaio e da família Montalvão. Pouco depois da República, o meu trisavô, que era monárquico, esteve escondido algum tempo num quarto secreto do Solar dos Montalvões e posteriormente fugiu para Espanha: Nesse mesmo período, o jovem oficial, Bento Roma, um republicano convicto, foi incumbido de ir à Galiza tentar dissuadir os portugueses que ali se haviam concentrado com o fim de virem atacar a República. Quem sabe se os dois não se encontraram em Verín ou Fezes de Abajo, localidades galegas vizinhas de Chaves.
 
Bento Roma em 1907. Foto retirada de O coronel Bento Roma (1884-1952): homenagens e consagrações em 1954 e 1955.  Lisboa: Of. gráficas da Gazeta dos Caminhos de Ferro, imp. 1955
 
Alguma bibliografia:
(¨*1). História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012, p. 89 e e 92

O coronel Bento Roma (1884-1952): homenagens e consagrações em 1954 e 1955 / pref. Do General Ferreira Martins. Lisboa: Of. gráficas da Gazeta dos Caminhos de Ferro, imp. 1955

Arquivo Distrital de Vila Real. Livro de Baptismo de 1884, assento, nº 7, Paróquia de Santa Maior de Chaves . PT-ADVRL-PRQ-PCHV50-RU-001-001-102
 
 

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Ancient Greece: um prato de faiança inglesa Ralph Stevenson


Hoje apresento-vos um prato de faiança inglesa datado entre 1825–1827, com um padrão que não aparece muito no mercado, o Ancient Greece, o que em português quer dizer Grécia Antiga.

O prato está marcado, com nome do padrão e as iniciais do fabricante, RS estampados no verso, bem como a marca incisa Stevenson. A decoração é típica da faiança inglesa desta época, três personagens no meio de uma paisagem campestre, com ruínas clássicas, tendo por fundo um rio onde se vislumbra uma cidade antiga com uma ponte romana e um edifício com uma cúpula. Toda a cena está envolta por uma bordadura floral.
 
Terrina Ancient Greece

Este prato fez parte de um serviço jantar, onde se incluíam terrinas, travessas e todo o tipo de pratos e naturalmente entre essas peças existiam variantes decorativas.
 

No site do Transferware Collectors Club, encontrei um texto muito bem feito onde se explica qual foi a fonte usada para conceber a variante do padrão que decora a travessa da terrina do Ancient Greece. Os artistas da Stevenson usaram como inspiração o quadro O regresso de Ulisses, do pintor francês, Claude Lorrain (1600-1682), e que se encontra hoje no Museu do Louvre. Claro, não é uma adaptação fiel, pois ceramistas ingleses tiveram que adaptar um quadro que mede 1,10 x 1.5 m a uma travessa de terrina com cerca de 30 cm e claro está simplificaram a pintura.
Pormenor da travessa da terrina do Ancient Greece
 
O regresso de Ulisses, Claude Lorrain (1600-1682), Museu do Louvre
Este Claude Lorrain foi um pintor francês do século XVII que viveu grande parte da sua vida em Itália e se especializou em paisagens com ruínas da antiguidade.

A rigor os temas das suas pinturas eram episódios da mitologia clássica, história clássica, da bíblia ou da vida dos santos, mas as personagens eram sempre muito pequeninas e quem protagonizava verdadeiramente as suas telas era a paisagem com as suas ruínas, arvoredo e a luz de um entardecer.
 
Uma mulher com uma criança nos braços, ajoelhada perante um cavalheiro indiferente
 
 Aliás, este prato, do Ancient Greece, onde no centro da composição está uma mulher com uma criança nos braços, ajoelhada perante um cavalheiro indiferente, provavelmente representa um desses temas bíblicos, que Claude Lorrain tanto gostava de pintar com ruínas clássicas por pano de fundo. Creio tratar-se da expulsão de Hagar, que Claude Lorrain pintou numa obra de 1688, que se encontra hoje na Alte Pinakothek de Munique. Agar ou Hagar era uma concubina de Abraão, da qual teve um filho, Ismael. Por razões que não interessa muito explicar aqui, Abraão acabou por expulsar Hagar e Ismael para o deserto.
 A expulsão de Hagar, Claude Lorrain, 1688, Alte Pinakothek de Munique

No fundo, o que é curioso deste padrão do Ancient Greece, é que os ceramistas ingleses foram buscar inspiração num género de pinturas que estiveram muito em voga no século XVII e sobretudo no século XVIII, os chamados Capriccios, representações de paisagens imaginárias com ruínas da antiguidade clássica e que nesses tempos faziam as delícias dos aristocratas europeus, com os quais decoravam as paredes dos seus palácios. Na primeira metade do século XIX, os fabricantes de faiança inglesa reproduziram nas suas loiças esses temas tão em voga na pintura dos séculos anteriores e colocaram-nos ao alcance da bolsa de um médio burguês, que podia agora ter um Capriccio na mesa da sua sala de jantar.
 
Links consultados:
 
 
 

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Vistas do Reno: terrina inglesa da Davenport


Ao longo dos anos o meu amigo Manel foi coleccionando muita faiança inglesa do século XIX, que ainda se encontra a bom preço no mercado das velharias em Portugal. Umas das minhas peças preferidas desta pequena colecção é esta terrina e travessa da fábrica inglesa da Davenport, com o padrão conhecido Reno, Rhine Pattern ou Rhenish views, o que em Português quer dizer, vistas do Reno. Em tempos fez parte de um serviço que apresentava várias paisagens daquele grande rio europeu, que nasce na Suíça, onde serve de fronteira entre aquele País, a Áustria e o Liechtenstein, atravessa a Alemanha, a França e desagua na Holanda A leiloeira inglesa Bonhams teve um serviço destes à venda em 2005, com 13 vistas diferentes do Reno, embora até essa data estivessem documentadas apenas 10.

Na informação que se encontra on-line normalmente indica-se que estas vistas do Reno serão aparentemente imaginárias. Contudo, no caso desta terrina, segundo alguma pesquisa que fiz, as paisagens representadas serão um pouco mais reais do que se pensava. Em primeiro lugar representarão aspectos do chamado médio Reno, uma região onde o rio corre por gargantas profundas e no alto dos montes, se alcandoram castelos medievais. É uma zona muito turística, em cujas encostas crescem extensos vinhedos e que é património mundial da UNESCO, desde 2002.
 


Em segundo lugar, pelo menos a travessa da terrina representa seguramente a vista de Ehrenbreitstein, em frente a Coblença, que na altura era um subúrbio do outro lado do Reno e que hoje faz parte daquela cidade alemã. Encontrei duas estampas com a representação de Ehrenbreitstein, Coblença e creio uma delas terá servido de fonte aos artistas da Davenport para conceberem o desenho desta travessa ou presentoir, como dizem os franceses.
 
Coblentz e o castelo de Ehrenbreitstein. Estampa com desenho de C G Schutz, gravada por Sutherland, publicada por R. Ackermann, 1820.
Publicada na obra A picturesque tour along the Rhine, from Mentz to Cologne : with illustrations of the scenes of remarkable events, and of popular traditions

 
Coblentz e o castelo de Ehrenbreitstein. Estampa da obra A Tour through Holland, along the right and left banks of the Rhine, to the south of Germany, in/ by Sir John Carr. London : Printed for R. Phillips by T. Gillet,1807

Igualmente a vista da terrina parece-me uma panorâmica da cidade de Coblença, com a sua ponte sobre o Mosela, composta livremente a partir de estampas da época, muito embora aqui não haja uma semelhança tão evidente entre estas imagens e a peça de loiça, como na vista de Ehrenbreitstein.
 
 
 
 
Relativamente à tampa da terrina não consegui identificar a paisagem representada, embora seja uma panorâmica típica do médio Reno, onde o rio corre entre gargantas profundas e nas margens erguem-se povoações históricas com as suas torres de igrejas.
 
 
Andernach. Uma típica paisagem do Médio Reno. Estampa da obra A Tour through Holland, along the right and left banks of the Rhine, to the south of Germany, in/ by Sir John Carr. London : Printed for R. Phillips by T. Gillet,1807

Nas primeiras décadas do século XIX foram publicados uns quantos livros de viagens sobre o Reno, como por exemplo A picturesque tour along the Rhine, from Mentz to Cologne, London : R. Ackermann, 1820, A Tour through Holland, along the right and left banks of the Rhine, to the south of Germany, in/ by Sir John Carr. London : Printed for R. Phillips by T. Gillet, 1807 ou ainda, Tombleson's views of the Rhine, London : W. Tombleson & Co, 1832 e seria muito interessante poder comprar as ilustrações destes livros com as todas peças deste serviço da Davenport para chegar a conclusões mais definitivas.
 

Esta travessa da Davenport, com a marca impressa a azul terá sido produzida em meados do século XIX, numa época em que o movimento romântico descobriu os castelos medievais arruinados do Reno com panorâmicas majestosas e as viagens por aquele rio tornaram-se parte do circuito do Grand Tour. Esta louça da Davenport permitia satisfazer o gosto pela Idade Média e pelas paisagens românticas, trovadores, valquírias e princesas encantadas aquelas pessoas com algum dinheiro para comprarem um serviço de faiança, mas não o suficiente o suficiente para empreenderem uma viajem ao longo do Reno.