Para nós que vivemos num universo descristianizado, quando compramos os antigos registos de santos do século XVIII, limitamos-nos a apreciar a sua ingenuidade, as cercaduras barrocas e também um certo lado insólito que eles representam, isto é, imagens de santos, que já ninguém conhece ou que já muito poucos veneram, como a Santa Brígida, uma Santa Úrsula, um São Facundo ou uma Santa Quitéria. Nem nos lembramos que essas estampas reproduziam com maior ou menor fidelidade verdadeiras imagens de pedra ou de madeira, espalhadas em capelas e conventos pelo País fora. Muitas dessas esculturas desapareceram com o terramoto, outras perdeu-se-lhe o rasto depois da extinção das ordens religiosas no século XIX e outras ainda, caíram pura e simplesmente no esquecimento e já ninguém se lembra de rezar a Sta. Maria Egipcíaca, uma prostituta que trocou a cosmopolita Alexandria por uma vida de eremita no deserto.
Por essa razão, estas estampas são uma fonte significativa para a história das mentalidades, como também para própria história da arte, conforme poderão apreciar, na história, que contarei de seguida.
Do lado direito, o peitoral e ao centro a laça, são jóias que ainda hoje existem no Museu Nacional de Soares dos Reis |
O meu amigo Manel comprou recentemente, uma estampa com a Nossa Senhora do Carmo, em Lisboa, que é de dimensões maiores do que é normal, mais ou menos um A4, e sobretudo representa com um detalhe extraordinário um traje riquíssimo. Mas o mais curioso desta estampa é que a Virgem Maria ostenta jóias, uma laça e um peitoral, que representarão peças verdadeiras, que ainda hoje existem e que se encontram no Museu Nacional Soares dos Reis, conforme descobriu uma historiadora de arte, Luisa Penalva, numa investigação publicada na Revista do IHA, N.2 (2006), pp. 219-243, com o título As jóias da Virgem do Carmo.
Peitoral com as insígnias dos Carmelitas. Museu Nacional de Soares dos Reis, inv. 225 our. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/ |
Essa investigação começou precisamente quando essa historiadora de arte viu por acaso uma estampa idêntica a esta e reconheceu de imediato as jóias do Museu Nacional Soares dos Reis. Estas peças passaram pelo Museu Nacional de Arte Antiga, vindas do Palácio das Necessidades, que por sua vez as terá recebido do antigo Convento do Carmo, onde existia uma imagem de Nossa Senhora do Carmo, que a julgar pelos documentos da época, possuiria um enxoval riquíssimo, do qual faziam parte não só mantos e trajes, mas também muitas jóias, oferecidas pela melhor nobreza da época. A mesma investigadora coloca mesmo a hipótese de a preciosa laça ter sido doada por D. Mariana Vitória (1718-1781), mulher do rei D. José I.
Laça ou guarnição de corpete. Museu Nacional de Sares dos Reis. Inv
211 Our MNSR. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/
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A laça começou por ser um simples laço de veludo ou seda que se colocava ao peito, de onde pendia uma cruz e outros ornamentos e que ao longo do século XVII se transformou progressivamente numa jóia.
O artigo da referida autora permitiu-me também identificar como o autor da estampa Gaspar Fróis Machado (1759-1796), coisa que não conseguia fazer até então, pois a estampa do Manel, foi cortada no fundo, na zona onde costumam estar mencionados os impressores, gravadores ou distribuidores.