Este blogue nunca teve a vertente de noticiário cultural. Já fiz durante alguns anos esse tipo de trabalho na página oficial da internet de um organismo da cultura e fartei-me disso. Noticiar só porque é novidade não faz muito sentido. Importam-me mais as coisas que nunca passam de moda e cujo interesse é permanente.
Mas, hoje resolvi quebrar um pouco essa norma e escrever sobre uma exposição que me impressionou pela sua beleza pungente, apresentada no convento do Salvador em Évora, intitulada A cenografia barroca e as imagens de vestir.
Mas, hoje resolvi quebrar um pouco essa norma e escrever sobre uma exposição que me impressionou pela sua beleza pungente, apresentada no convento do Salvador em Évora, intitulada A cenografia barroca e as imagens de vestir.
Imagens de vestir num cenário espectacular |
Organizada pela Direcção Regional de Cultura do Alentejo - Museu de Évora a exposição é pequena, consta de pouco mais de meia dúzia de imagens de roca ou de vestir, não há um catálogo sequer, mas as imagens são lindas e o cenário, a igreja do Convento do Salvador, inteiramente revestida de azulejos do século XVII é fabuloso. Évora surpreende-nos sempre pelo cuidado que põe nos seus monumentos. Mas a exposição não apresenta só as santas de roca ou as imagens de vestir. Mostra também os seus enxovais, como os vestidos de seda bordados a ouro, as saias com estampados sumptuosos, os corseletes, as capas, a roupa interior de linho fino com rendas, os sapatos e as sandálias.
A associação entre as santas de roca e as roupas, apresentada nesta exposição, é essencial para a compreensão do significado destas imagens de arte sacra.
Estas imagens de roca ou de vestir nunca foram muito valorizadas pela arte. O nosso conceito de belo é o das esculturas gregas em pedra, despidas de qualquer pintura ou quanto muito o de uma boa escultura em madeira, onde o escultor mostra todo o virtuosismo da sua arte. Agora estas imagens são meras armações de pau, apenas com um rosto e umas mãos, ou bonecos articulados onde só as partes destinadas a ser vistas são objecto de um tratamento artístico cuidadoso. São feitas para iludir, diríamos nós, que não temos crença em Deus, na Virgem, em Santos, ou em milagres, mas nos séculos XVII e XVIII, no tempo em que foram concebidas, as pessoas ofereciam vestes à Virgem para agradecer as graças concedidas. Ainda que o seu corpo fosse uma mera armação de pau, o poder de uma Virgem media-se pela riqueza do seu enxoval e das suas jóias. Uma Nossa Senhora com um grande guarda roupa, com muitos brincos em ouro e colares de pedras preciosas era uma santa cheia de poder, miraculosa, capaz de curar os crentes das doenças mais temíveis e fazer chover em anos de seca.
Por exemplo, a minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão, para agradecer à Nossa Senhora da Azinheira a graça de a ter feito sobreviver a um parto difícil, desde 1878, emprestava todos os anos à Santa um colar precioso feito em minas novas, que saia ao pescoço da imagem no dia da procissão. Esse costume sobreviveu à sua morte em 1902 e manteve-se por mais de cem anos, até que um padre ou alguém da comissão fabriqueira, resolveu meter o dito colar num cofre e de lá nunca mais saiu, coisa que me aflige sinceramente, eu que não tenho crença alguma, quanto mais aos católicos convictos devotos da Senhora da Azinheira.
Quero eu dizer com isto, que o valor destas imagens é indissociável das suas vestes, dos seus diademas e das suas perucas. Só o conjunto da imagem e do enxoval permite respeitar simultaneamente o valor artístico, antropológico e religioso destas santas de rocas, imagens articuladas ou de vestir.
O valor destas imagens é indissociável das suas vestes, dos seus diademas e das suas perucas |
Aliás, é curioso, que o próprio acto de vestir estas santas, na véspera de um período religioso especial como a Páscoa ou de uma grande procissão tinha um carácter quase ritual. Quem se encarregava disso eram as mulheres mais devotas e faziam-no à porta fechada. Não sentiam que estavam a vestir uma boneca qualquer, mas sim uma verdadeira Senhora. Há muitos anos, em Castelo Branco, nas vésperas da Páscoa, depois do jantar, portanto já fora de horas, entrei com uns amigos numa Igreja e surpreendemos um grupo de senhoras a vestir uma Santa de Roca e elas ficaram embaraçadas, envergonhadas mesmo, porque estranhos viram a Senhora quase sem vestes. Foi como se tivéssemos de algum modo perturbado o pudor da Santa.
Esta pequena mas espectacular exposição permitiu-me também confirmar que a minha Santa de Roca terá sido feita no Século XVIII e é agora o pretexto que precisava para mostrar uma nova fotografia dela, depois duma pequena intervenção de restauro e limpeza, que pôs à vista as lágrimas que lhes escorrem dos olhos, anteriormente encobertas pela sujidade.
Esta pequena mas espectacular exposição permitiu-me também confirmar que a minha Santa de Roca terá sido feita no Século XVIII e é agora o pretexto que precisava para mostrar uma nova fotografia dela, depois duma pequena intervenção de restauro e limpeza, que pôs à vista as lágrimas que lhes escorrem dos olhos, anteriormente encobertas pela sujidade.
O restauro da minha santa de Roca pôs à vista as lágrimas |
Talvez os mais crentes acreditem que as suas lágrimas caiam pela promessa, que Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão fez em 1878 à Nossa Senhora da Azinheira e que foi quebrada de forma insensível pelos responsáveis daquela igreja em Outeiro Seco.
Alguma bibliografia:
Les statues habillés dans de catholicisme: entre histoire de l'art, histoire religieuse et antrophologie / Marlène Albert Lllorca
In
Alguma bibliografia:
Les statues habillés dans de catholicisme: entre histoire de l'art, histoire religieuse et antrophologie / Marlène Albert Lllorca
In
Archives de sciences sociales des religions, 164 (octobre-décembre 2013), p. 11-23