quarta-feira, 19 de março de 2025

Uma paixão no Porto: o sempre jovem Francisco Manuel Morais

No centro encontra-se o Francisco Manuel de Morais


Recentemente, por causa da identificação de um retrato antigo da família materna, os Morais, das terras frias de Vinhais, reabri as caixas com documentos, que trouxe de casa do meu pai, após a sua morte. Alguma delas já as tinha visto com atenção, mas uma caixa de tosca madeira, provavelmente daquelas coisas onde antigamente se vendia o sabão, tinha-me escapado. Nelas estão muitas cartas de família, pagelas, facturas e outras caixinhas mais pequenas de papelão, onde alguém um dia, talvez há 50 ou 60 anos, guardou uns botões, uma fivela, um resto de linha, peças de qualquer coisa que se escangalhou, na esperança de virem a ser úteis novamente.




Dessa caixa de madeira, constam muitas cartas do meu tio-avô, Francisco Manuel Morais, que morreu num acidente de caça a 4 de Outubro de 1916, apenas com 25 anos. Era um jovem bonito e prometedor, que estudava medicina no Porto.




Aos 16 anos, quando eu estava a desabrochar e a deixar de ser um patinho feio, a minha tia Lalai, mostrou-me um retrato do Francisco Manuel, dizendo-me que eu estava a ficar parecido com ele e eu fiquei envaidecido, pois este tio-avô com o seu penteado de risco ao meio parecia um galã do cinema mudo, daqueles que a Ilustração Portuguesa publicava tantas fotografias, de modo que desenvolvi desde dessa altura uma empatia por ele. 

O Francisco Manuel de Morais


Entre as cartas, que escreveu à sua mãe e irmã, encontrei um envelope com uma madeixa de cabelo e um lenço de homem, que presumo, que lhe tenham pertencido e que alguém guardou depois da sua morte.




Mas, antes do fático dia de 4 de Outubro de 1916, dois anos antes, o Jovem Francisco Manuel encontrava-se a estudar no Porto e estava perdidamente apaixonado pela Estela, conforme conta numa carta à sua irmã, a minha avó Adelaide, numa carta datada de 8 de Marco 1914.

É uma carta muito longa (a minha mãe tinha também o hábito de escrever muito nas cartas), em que o Francisco Manuel conta que vai passar uma hora com a Estela todos os serões e que são namorados, mais do que isso, noivos. A felicidade é muita, mas o ambiente em casa da Estela é tenso. A jovem vive com a mãe, a D. Maria e há ainda a Palmira e Augusta, talvez suas irmãs. Presença também da casa é o Silvério, que namorará uma das jovens. Mas, mas há um padrasto que parece ser um homem intratável. O Francisco Manuel conta nesta carta uma cena, em que o homem berrava como um doido e tentou atirar com um grande copo à D. Maria, mas a Estela interpôs-se e o Padrasto acabou por atira-lo a ela, magoando-a no ombro. O homem faz ameaças brutais, há um revolver e as cenas repetem-se todos os dias com mais ou menos variantes.


Depois desta cena, a D. Maria pensa fugir com a filha para Vinhais, terra do Francisco Manuel e só não o faz, para não o atormentar este, na época de exames.

O Francisco Manuel vê a sua Estela definhar. Vejo-a sofrer, vejo-a doente, magríssima, abatida e a isto continuar durante anos, eu vou desposar um cadáver, vou abrir a vala onde pode sumir-se a minha felicidade.

A solução para o terrível problema e para a qual pede a colaboração da irmã, é depois de terminar os exames, levar a Estela para Vinhais, casarem discretamente e depois disso a jovem ficará a viver com os pais e ele regressará ao Porto, para terminar o curso de medicina. Nessa altura a Estela ficará a chorar com minha mãe a minha ausência, acariciando-a, dulcificando-lhe o mais possível os dias da velhice e a desanuviar o espírito do meu pai com a sua abnegação, o seu amor de filha. A Estela será também uma irmã extremosíssima para a Adelaide, aquela que veio a ser a minha avó. Enfim, todos viveriam como Deus e os Anjos.


Francisco Manuel, os seus pais e a irmã, minha avó Adelaide



Mesmo, não conhecendo os pormenores de como esta história se desenvolveu é óbvio que os pais do Francisco Manuel foram contra a ideia. Ter um filho a estudar no Porto era muito caro e com efeito li umas quantas cartas dele na diagonal, em que está sempre a pedir dinheiro à mãe. Certamente que lhe terão dito que a prioridade dele seria terminar o curso e terão também seguramente feito as contas, do que lhes custaria sustentar na sua casa uma nora e a talvez até a mãe na nora, enquanto o filho estudava, sem trabalhar e ganhar dinheiro. Terão também pensado, que enquanto o filho estivesse no Porto, poderia conhecer outra moça e depois que faria eles com aquela nora. Além do mais, o meu bisavô Clemente da Ressurreição teve a ambição de estudar medicina na juventude, mas a mãe, que queria que ele fosse para padre, não autorizou, de modo que filho estaria a realizar aquilo que ele sempre desejou, ser médico.

O que é certo, é que o Francisco Manuel Morais nunca casou com a sua amada Estela e morreu num acidente de caça em 1916, sem se ter conseguido formar. Segundo a tradição familiar esta caçada tinha sido organizada pelos amigos para se despedirem dele, uma vez que tinha sido recrutado para ir combater na Grande Guerra. Se não tivesse sido morto neste estúpido acidente teria talvez perecido dois anos depois em La Lys. Parece que havia uma fatalidade a pesar nos destinos deste rapaz tão bonito.



Por conhecer o desfecho trágico da vida deste tio, confesso que a leitura desta carta me impressionou. Pareceu-me que estava a ler as linhas de um daqueles livros ultrarromânticos do século XIX, em que já sabemos que tudo aquilo vai acabar mal. Fiquei com a ideia que o Francisco Manuel seria um rapaz ingénuo, criado numa vila interior, com a imaginação alimentada pela leitura de demasiados romances, sem um sentido realista da existência. Talvez por essa razão, a sua mãe, a Graça Pires de Morais, depois da morte deste jovem tão bonito e promissor tenha mandado queimar todos os livros do filho, todos aqueles romances, que moldaram este pendor para paixões irrealistas, mas isto são suposições minhas.

Em todo o caso, na tradição familiar era conhecida a existência de uma jovem no Porto, pela qual o Francisco Manuel se teria perdido de amores e esta carta comprova a sua existência. Diz-se também que houve um filho desta ligação, mas para comprovar isso, terei que ler todas as cartas dele e o tempo foge-me a cada instante.




Transcrevo na íntegra a carta, a pensar naqueles que gostam de ler cartas


Porto, 8-3-1914

Querida mana


Hoje vai para ti, mesmo porque quero abordar um assunto muito importante que comuniquei só à mãe e, se quiseres, à tua amiga D. Inês. É bom que esta tenha conhecimento do conteúdo da minha carta porque está em condições de poder apreciar os factos.


Vamos ao caso. Como sabem (as três) eu vou todas as noites passar uma hora com a Estela e, claro, nessa hora, dois namorados, mais do que isso, dois noivos, temos sempre que dizer um ao outro. Terceira pessoa que venha meter-se-lhe de permeio com conversas aborrecidas sem interesse, é um obstáculo que com muito custo se tolera. Esse obstáculo, de mais a mais propositado, é o padrasto da Estela. Porque às vezes não estou para o aturar e me conservo mudo, vendo passar os minutos sem poder trocar com ela duas palavras, ele tem em a aborrecer, em lhe querer mal. A causa verdadeira, porém, de tal atitude é muito outra: é que ele vê que, quer eu quer o Silvério podemos dar um pouco de de felicidade ao futuro das filhas da D. Maria, que não são dele e, alem disso, ver os primores que saem das mãos delas e nada que as dele protejam e aprendem. E não julguem que esta animadversão se limita a palavras ou maus modos.


Não; há dias chegou a vias de facto. Mas eu conto: depois de eu sair de lá, ficaram na sala a Palmira, Estela, D. Maria, Augusta, Silvério e ele. Principiou a gracejar com o Silvério dizendo-lhe que tinha que ajuntar dinheiro para as prendas que havia de oferece-nos. De repente, porém, por qualquer palavra que a Augusta disse, contradizendo-o, ele armou em terrível e perguntou se queriam bater-lhe dizendo que já uma vez o José lhe insinuara não lhe dever obediência. A D. Maria, em face do desproposito e da mentira, porque ele berrava como um doido, desmentiu-o e o homem pegou num grande copo (a primeira coisa que encontrou à mão) e preparou-se para atirar. A Estela, vendo aquilo, correu a cobrir com o copo alcança-la da mão, e o estupido e desalmado, reavivando o ódio que lhe tem, atirou e deu-lhe num ombro. Se o Silvério não o domina atirava mais ferindo-a talvez gravemente visto que o alvo dele era a cabeça.

Imaginem o resto atendendo a ameaças brutais e ao facto de ir procurar um revolver e digam-me com franqueza se isto não é um inferno, que se repete todos os dias com mais ou menos variantes. A D. Maria queria, logo no dia seguinte, fugir com ela para aí, se não o fez, foi por minha causa, para não me atormentar nesta ocasião de exames. A Sra. D. Inês, que conhece bem esta família, pode dizer-te e à mãe se isto não é ódio velho, agora reacendido pela inveja.


Pergunto: como fazer terminar este estado de coisas? Como arrancar a Estela, única mulher de quem eu espero felicidade, única a quem confio a realização das minhas esperanças de ventura porque me compreende e porque lhe conheço o génio, a este martírio que me dá cabo dela?

Só vejo uma solução: leva-la daqui, faze-la minha mulher, dar à minha mãe uma filha que a adora e a ti uma irmã extremosíssima. Ainda hoje, falando com ela cerca do futuro, eu lhe perguntei: se consentirem que nos casemos, sujeitas-te a ficar com minha mãe, velha, doente, a aturar o génio sombrio de meu pai e a ver-me partir para os meus estudos? Chorou a pobrezinha, e respondeu-me com ardor que seria para ela um prazer o ir chorar com minha mãe a minha ausência, acariciando-a, dulcificando-lhe o mais possível os dias da velhice, o ir desanuviar o espírito do meu pai com a sua abnegação, o seu amor de filha; e que vida de aí, da nossa casa, que eu lhe mostrei nitidamente a adoptaria de bom grado pronto em mim a única esperança de melhores dias.

Contigo conta ela como amiga e como irmã como eu conto também. Se o não fizesse, eu, não serias tu a primeira a ter estas palavras

Admitamos agora que estão de acordo comigo. Nesse caso eu mostro o meu projecto que é o seguinte: logo após os meus exames de Julho iríamos para aí e, sem barulho, sem festas, muito humildemente nosso padrinho uníamo-nos para sempre. Passávamos as férias juntos e, em Outubro, ela ficava na sua nova vida e eu viria continuar os meus trabalhos.

Que felicidade se eu pudesse contar contigo! Com que redobrado ardor eu pegaria nos livros para conquistar o consentimento e as boas graças do pai que bem sei ser o principal obstáculo! Por estes dias espero dar-lhe um pouco de alegria com o bom resultado do meu exame que deve ser entre os dias 16 e 20. E digam-me, se no fim do ano eu lhe aparecer com tudo feito não quebrarei o gelo que o envolve, não conseguirei que ele aceite como filha esta que é o meu estímulo? Digam-me alguma coisa, deem-me a sua opinião; mas de manifestarem em desacordo, mostrem-me, pela amizade que lhes tenho, razões fortes a para procederem assim. Não me venham dizer que é melhor esperar o fim da minha formatura porque isso já eu sei Eu bem compreendo que era melhor. Mas Santo Deus, vejo-a sofrer, vejo-a doente, magríssima, abatida e a isto continuar durante anos, eu vou despois um cadáver, vou abrir a vala onde pode sumir-se a minha felicidade. Por tudo isto e confiando muito que me querem, espero que a resposta a esta carta me traga esperanças e não a mais amarga das desilusões. Recomenda-me a todos. Beijos ao Zeferino e à Miquinhas e tu aceita um saudoso abraço do teu irmão muito amigo.

F. Morais


PS. Diz à mãe que recebi o vale e que naturalmente não torno a escrever sem fazer exame porque tenho muitíssimo que estudar.

sábado, 8 de março de 2025

De regresso a Vinhais: o retrato de um casal desconhecido em 1900



Regresso novamente a Vinhais, a terra da minha mãe, essa vila perdida no Nordeste transmontano, mas a um tempo antigo, situado algures entre os fins do século XIX e o início do XX. Desse período, restou um registo escrito, que o meu pai levantou há 30 anos ou 40 anos atrás a partir das memórias dos mais velhos, bem como de documentos da família, entre as quais um caderninho onde o meu bisavô Clemente da Ressurreição Morais (1858-1944) anotou quem foram os seus pais, os irmãos destes, os seus irmãos e o seus amores contrariados com Graça Pires de Morais. Este trabalho de compilação do meu pai ainda foi notável, atendendo a que tratava da família da mulher. Do seu lado, tinha os pergaminhos dos Montalvões, mas o meu pai antes de tudo gostava de história e tinha a mentalidade de arquivista, sabendo que nas famílias tem que haver alguém, que registe com rigor, sistematize as memórias e passe-as à geração seguinte.

O  caderninho onde o meu bisavô Clemente da Ressurreição Morais (1858-1944), anotou de forma sintética a sua biografia


Desses documentos da família Morais Ferreira há também fotografias antigas. Umas fui identificando por conterem dedicatórias, mas outras permanecem ainda no anonimato. Presumo que sejam da família, pois apresentam o tipo claro dos Morais, olhos azuis, verdes, castanhos claros, tez branca e os cabelos também loiros, castanhos claros ou castanhos arruivados. Obviamente, em retratos a sépia ou a preto e branco é difícil determinar com precisão as cores.

Como vou publicando aqui no blog, as histórias e fotografias da família deste lado das terras frias de Vinhais, sou por vezes contactado por primos, ou por descendentes de amigos de então, que aparecem retratados nessas imagens e muitos deles acrescentam elementos às histórias ou identificam mais pessoas. É uma reacção muito gratificante, que me aproxima dessas terras frias, as quais sinto que pertenço.

Umas pessoas que me contactou foi Leonor Gomes, professora, com a suspeita de que existiria um parentesco entre as nossas famílias. Fomos trocando e-mails e informações, até que a Leonor me enviou o retrato de um casal, tirado cerca de 1900, em que o Senhor seria o seu bisavô. Reconheci de imediato a fotografia deste casal, pois há um semelhante no espólio da família, na secção dos desconhecidos, que presumo serem parentes. Apenas há uma diferença, no retrato da prima, consta apenas um casal, enquanto que no meu há um menino, muito provavelmente filho do casal. A partir daqui encontramos o fio, que nos permitiu reconstruir toda uma teia de relações familiares.

O retrato do espólio família da prima Leonor


O retrato do espólio da minha família


A diferença entre os dois retratos é que no segundo aparece o filho do casal José Clemente de Morais e Arminda Felicíssima de Carvalho, o menino Amândio Augusto 


Com efeito, o Senhor da fotografia é José Clemente de Morais (1856-1919), um dos irmãos mais velhos meu do meu bisavô, Clemente da Ressurreição Morais (1858-1944), portanto meu tio-bisavô. Ao lado de José Clemente está a sua mulher, Arminda Felicíssima de Carvalho, professora primária. O casal residia na Mofreita. O menino que posa no meio do casal é certamente o filho, Amândio Augusto de Morais, nascido em 28 de Abril de 1896 e que aqui teria 8 ou 10 anos, o que me permite datar a minha fotografia por volta de 1900. Este menino veio a ser oficial do exército, esteve em África e no tempo do meu pai fez sua compilação da história dos Morais, a família conserva-se ainda a viva sua memória. Ao que parece guiava muito mal e na sua casa, tinha uma garagem com duas portas, para evitar fazer marcha atrás. 

No espólio da minha família conserva-se este retrato que poderá ser de de Amândio Augusto 

Mas regressando ao tempo em que este retrato foi tirado, cerca de 1900, tenho ainda outra fotografia de um menino, também com este tipo clarinho, que me parece ser igualmente o Amândio, mas não sei. Também poderia ser o meu tio avô, o Francisco Manuel, que nasceu em 1891 e tinha uma idade muito próxima do seu primo direito, nado em 1896. Enfim, é uma hipótese, a confirmar.


O meu bisavô, Clemente da Ressurreição Morais (1858-1944) e sua família. Era irmão do José Clemente. O filho mais velho era mais ou menos da mesma idade do primo Amândio


Mas a Arminda Felicíssima de Carvalho morreu em 1913 e o meu tio-bisavó, José Clemente de Morais envolveu-se com outra Senhora, Arminda Pires (20.8.1885 – 23.2.1970), da qual teve dois filhos, Soledade e José Alexandre. Tiveram casamento marcado para o dia 13 de Junho, mas por um desses infortúnios da vida, José Clemente morreu um dia antes, a 12 de Junho de 1919, deixando a Arminda Pires só com dois filhos. Poderá ter sido vítima da pneumónica, pois pandemia ceifou sobretudo os jovens e os mais velhos. Em 1919 José Clemente tinha 63 anos.

De um dos filhos de José Clemente de Morais, a Soledade, nasceu a Túlia, e desta, a minha prima Leonor, que só agora tive o enorme prazer de conhecer, ainda que virtualmente. Curiosamente, o primeiro filho de José Clemente de Morais, o Amândio teve também uma filha chamada Túlia. Será uma simples coincidência ou demonstrará que os dois lados da família se davam?

Toda esta história é muito curiosa e interessante e prova que para quem se interessa por história familiar, vale sempre a pena partilhar o resultado das suas investigações na net, porque um dia, vai aparecer alguém que tem o mesmo velho retrato em casa e que nos fornece a chave de um enigma.

José Clemente de Morais e Arminda Felicíssima de Carvalho, meus tios-bisavós. Casaram na Mofreita a 9 de Abril de 1881


terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

As velharias do Luís em nova casa ou a colecção de biscuits




Na minha antiga casa, em menos de 30 metros quadrados úteis, estive 21 anos a montar uma decoração, onde todos os espaços estavam pejados de velharias. Tectos, soleiras de portas, cozinha, casa de banho, quarto, sala e ainda um esconso foram ocupados com cristos, faianças, estampas, esculturas, apliques, porcelanas, registos de santos e até uma casa de bonecas. O resultado até era interessante, uma mistura de caverna de ali-babá com uma capela barroca e com passamanes em estilo Segundo Império por ali e acolá.

A escadaria da minha antiga casa


Mas era um terceiro andar sem elevador, na meia encosta de uma colina lisboeta. Um prédio com uma escada daquelas antigas, onde o primeiro lance era quase a pique.

Quando o meu pai adoeceu gravemente ficou preso num segundo andar sem elevador, em que para ir uma consulta ou ao Hospital era necessário chamar os bombeiros, esses bravos rapazes, que o carregavam pelas escadas acima ou abaixo come se fosse uma pluma. Nós não podíamos pôr o meu pai numa cadeira de rodas e leva-lo a passear, apanhar Sol ou distrair-se e os seus últimos tempos de existência foram particularmente penosos. Há aliás muitos idosos em Lisboa presos nas suas casas de prédios sem elevador, conforme já me disseram inúmeras vezes profissionais de saúde. Por essas razões, decidi vender esta casa, perdendo uma vista para o Castelo e a Graça e comprei outra mais moderna, no bairro dos Olivais, com 70 m2, um rés-do-chão e onde estaciono o carro à porta. Pelo menos. Se tiver uma doença em que perca a mobilidade, os meus filhos poderão levar-me a passear numa cadeira de rodas.




Mas um apartamento dos anos 70 não tem os recantos e as irregularidades de uma casa antiga e é mais difícil escapar daquela monotonia das divisões rigorosamente rectangulares. Contudo, estes 70 m2 permitem-me agrupar as peças por famílias, faze-las respirar dando-lhes maior visibilidade.

Umas das colecções que andava perdida no meio das loiças ou em móveis aqui e acolá era das figurinhas biscuit. Muitas deles estavam pura e simplesmente escondidas num canto do armário louceiro ou quase tapados por porta-retratos.

O louceiro ou vitrina em cima do meu fiel Rocinante

Aproveitei agora o espaço disponível e comprei no Olx uma vitrina ou um louceiro por um bom preço. Estava em mau estado, comido em algumas zonas pelo caruncho . A pedra de mármore no topo também não era original, terá pertencido a uma cómoda. Mas, o meu amigo Manel restaurou-a toda, limpou as madeiras, arranjou as fechaduras, encerou-a, eletrificou-a e ficou linda. 




Este fim-de-semana fui busca-la a casa do Alentejo do Manel e lá veio ela no tejadilho do automóvel até Lisboa e mal cheguei, comecei a dispor os biscuits e fiquei encantado com efeito. Esta vitrina ou louceiro é uma peça dos finais do XIX, que em tempos terá feito parte de uma mobília de sala de jantar e é no fundo da época das minhas figurinhas de biscuit, de modo que o conjunto fica muito harmonioso. Claro, tive que pôr-lhe em cima o mono da televisão, mas enfim, mas não podemos passar sem aquela maquineta feia que nos liga ao mundo.

O efeito geral é tão bonito, que comecei a experimentar a reconfortante sensação de que o meu apartamento dos anos 70, com aquelas linhas monótonas era afinal uma velha casa de família, daquelas várias, que conheci ao longo da vida e que foram desfeitas entretanto.


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Um prato inglês do primeiro quartel do século XIX: The Villagers da Davenport



Ainda não consegui retomar hábito o de escrever regularmente aqui no blog. Mudei de casa e os trabalhos foram enormes. Além da embalagem, transporte, obras e assuntos burocráticos, a decoração tem sido complicada. Vivia numa casa muito pequena, cheia que nem um ovo e tudo o que tinha era de pequenas dimensões, de modo que não consigo replicar os arranjos, que ali tinham. Se o tento fazer, fica um segmento de parede cheio e o outro ao lado vazio. Aos poucos tento uma disposição mais folgada dos meus tarecos e agrupada por famílias, a colecção dos reis de Portugal, uma parede com cristos, gravuras, faiança portuguesa ainda e desenhos e gravuras de arquitectura ou as minhas réplicas arqueológicas. 

A minha colecção de réplicas arqueológicas


O único espaço onde consegui replicar a decoração da minha anterior casa, foi na casa de banho, que enchi com louça inglesa azul e branca do século XIX. Como esta faiança apresenta sempre paisagens marítimas ou com lagos e rios vai muito bem com a função da divisão.

A decoração da casa de banho com faiança inglesa


Como tenho mais espaço, aproveitei e comprei mais um prato inglês, típico da produção daquele País no primeiro quartel do século XIX, com uma decoração carregada e pintado numa paleta de azuis-escuros. 

A marca da Davenport



Apresenta a marca da Davenport, umas das fábricas com maior produção no Reino Unido e a julgar pela quantidade de peças, que aparecem ainda nas feiras de velharias, deve ter sido a marca inglesa que mais vendeu em Portugal. O padrão é o The Villagers, em português, os aldeões e o tema é bucólico. 



Numa paisagem campestre estão três figuras e um cão, tendo por pano de fundo, um rio e uma aldeia com a torre da igreja a sobressair. Segundo os sites de venda on-line este padrão terá sido executado cerca de 1825, enfim, no primeiro quartel do século XIX. Curiosamente, quando comprei este prato raso, achava que já tinha lido sobre este padrão e pensei até que fosse no blog da Maria Andrade, o Arte, Livros e Velharias. Contudo, descobri que afinal é o meu amigo Manel quem tem uma grande e bonita travessa deste padrão e que eu tinha fotografado há uns tempos, com a ideia de fazer um post sobre aquela peça, mas com as malvadas das mudanças o assunto varreu-se da cabeça. A travessa é deslumbrante e nela pode-se admirar muito melhor o desenho, do que no meu prato, de dimensões pequenas.

A travessa do meu amigo Manel


O prato ficou muito bem na casa de banho, junto da restante faiança inglesa e consegui tornar aquela divisão sem graça, com azulejos setentões, num sítio um pouco mais divertido e pessoal.