Na família, sabia-se que uma das crianças tinha morrido pequenina, a penúltima, a Natália Maria de Lurdes. A obra que reconstituiu a genealogia familiar, Os Montalvões, de J. T. Montalvão Machado, publicada em 1948, refere que nasceu em 1917 e morreu em 1919. Imaginávamos que que tivesse sido uma perda grande, para a família, pois a criança, que nasceu a seguir, também se foi baptizada com o mesmo nome, Natália, como que para substituir a perda da pequenita.
Contudo, há um ou dois anos o meu pai descobriu um documento, que nos mostrou, bastante impressionante. Trata-se de uma espécie de relato, que a minha bisavô Aninhas escreveu sobre a doença e morte da filhinha, como se fossem as páginas de um diário intimo, destinadas a fixar para sempre num papel, aquilo que não queria esquecer de todo.
Página 1 do documento de 3 de Junho de 1918, escrito pela minha bisavô |
A Natália nasceu no dia 5 de Dezembro de 1916 e era a criança mais nova, a companheira de dia e de noite, sobretudo quando os outros filhos estavam na escola, conforme escreveu a minha bisavó. Segundo o seu relato, no dia 12 de Abril de 1918, numa sexta-feira adoeceu de tarde e esteve toda a noite a gemer e eu toda aflita por a ver doente e cheia de febre. Na segunda-feira, mandei-lhe tirar um retrato que ainda não o tinha coitadinha, sentada na caminha da sua querida mãe, muito sossegadinha, lhe vesti o seu casaquinho de veludo e touquinha e o fotógrafo lho tirou e foi o que me valeu, porque não tinha retrato nenhum da minha querida filhinha. Mas criança piorou, chorando pela mãe e pelo pai para que eu lhe acudisse, mas não lhe pode valer. Assim, me deixou a minha sempre adorada filhinha do meu coração, às cinco e meia da tarde de quarta-feira dia 17 [de Abril] para sempre na mais ardente dor e tristeza (…) No dia 18, às seis da tarde, levaram-me a minha querida filhinha par sempre.
Página 2 do documento de 3 de Junho de 1918, escrito pela minha bisavô |
A minha bisavó, remata esta narrativa da morte da sua filha, da seguinte forma: Só hoje tive coragem para escrever isto, dia 3 de Junho de 1918.
Página 3 do documento de 3 de Junho de 1918, escrito pela minha bisavô |
Quando o meu pai, nos mostrou a transcrição deste documento, interrogámo-nos, acerca do paradeiro da fotografia da pequena Natália, mas o mais natural era estar perdida ou esquecida, algures na casa dos cerca de 100 ou mais descentes dos meus bisavós. Contudo, depois da morte do meu pai, aquando na partilha dos bens, minha irmã identificou o retrato, primorosamente encaixilhado num pequeno pendente em ouro, com vidro biselado, obviamente uma jóia de grande estima, para se trazer pendurada num fio, bem junto ao coração. E com efeito, a descrição que minha bisavó faz do único retrato que mandou tirar à filha, com o casaquinho de veludo e touquinha coincide com esta imagem e acreditamos que seja a fotografia da Natália (5.12.1916-17.4.1918)
O pequeno medalhão em ouro. O retrato encontra-se nas duas faces |
Este relato intimo da minha bisavô Aninhas acerca da morte da pequena Natália é um testemunho tocante de uma época em que a mortalidade infantil era elevada, tendo aumentando ainda mais nos anos da guerra (1914-1918), naturalmente maior entre os pobres, mas que também se fazia sentir entre os mais abastados, como a família Montalvão. Repara-se que neste relato, não se refere a visita de um médico ou nenhum medicamento que a criança tivesse tomado e muito menos a ida a um hospital. Na época, não existia nenhum serviço nacional de saúde e muito menos antibióticos. Também neste período a fotografia ainda era cara e reservada para grandes ocasiões e é muito tocante a necessidade, que a minha bisavó sentiu de chamar o fotógrafo, para tirar o primeiro e último retrato da pequena Natália, para ficar com uma imagem dela, mandada encaixilhar num medalhão, que certamente trouxe junto ao seu coração durante muitos anos.
A pequena Natália (5.12.1916-17.4.1918) |