domingo, 29 de maio de 2022

Albuquerque: um episódio da Guerra da sucessão espanhola


Como já referi muitas vezes no blog, as gravuras antigas compram-se a muito bom preço nos mercados de velharias e para quem gosta de resolver charadas,  são ainda um óptimo e aliciante desafio no sentido de se descobrir a que livro pertenceram no passado.

Esta estampa foi comprada pelo meu amigo Manel na feita de Estremoz e está datada do ano de 1729 e com o nome do impressor gravado, P. Rochefort. Representa três Cavaleiros, P. Carle, , C.de das Galveas e C. de  V.ª Verde, vendo-se ao fundo a vila fortificada de Albuquerque, na província de Badajoz, em Espanha, bem na raia com Portugal.

Para saber um pouco mais sobre esta gravura, fotografei-a, carreguei-a no motor de busca do google imagens e imediatamente encontrei uma igual, na Alma Mater, repositório de imagens da Biblioteca Geral de Coimbra. Aqui encontrei a referência de que esta imagem tinha sido extraída da obra O engenheiro português, da autoria de Manuel Azevedo Fortes, impressa em Lisboa, na oficina de Manuel Fernandes da Costa, entre 1728-1729. Ainda no referido site indicava-se até que a gravura constava da página 4, do volume segundo, impresso em 1729.

O engenheiro português. Imagem da Biblioteca Nacional de Portugal

Fui então confirmar estes dados na Biblioteca Nacional de Portugal, onde a obra está integralmente digitalizada e de facto a estampa encontra-se precisamente na pagina 4, do segundo volume. Numa data qualquer, impossível de determinar, mas certamente num período, em que esta obra sobre a arte das fortificações já estava definitivamente ultrapassada e fora de moda, alguém retalhou o livro para vender as estampas à unidade e fazer mais dinheiro. Folhei um pouco a cópia digital desta obra, para tentar perceber um pouco a história, que parece narrar esta gravura. Mas O engenheiro português não é um manual de história, mas um ensaio sobre a arte a fortificação e no fundo esta estampa ilustra o sistema de fortalezas abaluartadas, que estava voga no início do século XVIII. A estampa foi gravada por Pedro de Rochefort (1673-1740 ), também designado por Pierre de Rochefort ou Pierre de Massart, um impressor e gravador francês, que se fixou em Portugal a partir de 1728.

O conde das Galveias, o Conde de Vila Verde e Peter Carle

Fiz então algumas pesquisas sobre os cavaleiros representados na estampa, o conde das Galveias, o Conde de Vila Verde e o tal P. Carle e descobri que todos eles tem um denominador comum, foram protagonistas na guerra da Sucessão espanhola (1701 – 1714), em particular na tomada da praça forte de Albuquerque, que esteve sobre domínio português entre 1705 e 1716.

O primeiro, o Conde das Galveias, chamava-se Diniz de Melo de Castro, viveu entre 1624 e 1709) e foi um militar e político português. O segundo conde de Vila Verde foi D. Pedro António de Meneses Noronha de Albuquerque (1661-1731) e se distinguiu também como militar. A terceira personagem P. Carle, trata-se de Pedro Carle, também conhecido com Peter Carle, Peter Carless, ou Mylord Carle (1666–1730). Era um protestante francês, que se refugiou em Inglaterra, engenheiro militar e combateu activamente no contingente inglês durante a guerra da sucessão espanhola.
Albuquerque

Para se perceber melhor, o que fazem estes dois aristocratas portugueses juntos a um huguenote a soldo de Inglaterra, em frente à vila de Albuquerque, convém recordar um pouco o que foi a chamada guerra da sucessão espanhola. Em 1700, morria Carlos II, rei de Espanha, da casa de Áustria, sem deixar descendência. Em testamento deixou a coroa a um sobrinho neto seu, Filipe de Anjou, neto de Luís XIV de França. Uma boa parte das potências europeias, sobretudo a Inglaterra, viram com muitos maus olhos este expansionismo francês, que colocava a Espanha debaixo do governo da mesma casa real de França, os Bourbons. Os ingleses trataram de apoiar um pretendente Habsburgo ao trono de Espanha, um tal arquiduque Carlos e mobilizaram outros países para uma guerra em Espanha. Portugal foi aliciado pela Inglaterra para entrar na guerra ao seu lado, em troca de umas quantas praças fortes espanholas na raia, Badajoz, Albuquerque e Alcântara, na Estremadura, bem como Vigo, Tui, La Guardia e Baiona, na Galiza e ainda a colónia do Sacramento, na América do Sul. Ao contrario da maioria das guerras luso-espanholas, em que a estratégia portuguesa era essencialmente defensiva, neste conflito os portugueses, com o apoio de um contingente inglês, penetraram por Espanha adentro e conquistaram Madrid, tendo o nosso Marquês de Minas, entrado triunfalmente naquela capital em 28 de Junho de 1706. 

O cerco a Albuquerque em 1705. Imagem retirada de Curiosidades Genealógicas do Algarve: 2021 (genalg.blogspot.com)

A guerra teve várias peripécias complicadas, que não interessa aqui contar e terminou com o tratado de Utreque, assinado entre 1713-1715. Em Espanha, o duque de Anjou, Filipe V, manteve o seu trono, mas aquele país foi impedido de se unir a França e abdicou de todos os territórios na Europa, os Países Baixos e os reinos do Sul de Itália . Os portugueses renunciaram às praças espanholas da fonteira, devolvendo Albuquerque, mas conseguiram importantes territórios no Brasil, na disputada colónia do Sacramento. Na realidade, quem beneficiou sobretudo desta guerra foi a Inglaterra, que ascendeu a potência de primeira grandeza na Europa.

Em suma, esta estampa é a ilustração de um daqueles muitos conflitos luso-espanhóis e daquelas inúmeras e impressionantes fortalezas abaluartadas levantadas nos dois lados da fronteira, como Elvas, Almeida, Valença do Minho ou Albuquerque. Felizmente, nos dias de hoje, quem atravessa esta fronteira é para fins mais pacíficos, como passear, meter gasolina mais barata ou comprar uns atoalhados.


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