quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Réplicas de vidros romanos ou filtros do amor e de veneno

 
Quando visito museus arqueológicos, uma das colecções que me encanta sempre são os vidros romanos. Aqueles pequenos objectos, muitas vezes já fracturados e restaurados encantam-me pela sua delicadeza, mas também pelo que representam, a sofisticação da vida material das cidades do Império Romano, estivessem elas na Lusitânia, no Egipto, na Gália ou na Síria. Não que os romanos tivessem inventado o vidro, cujo fabrico já era conhecido na Grécia e na Fenícia, mas aperfeiçoaram a técnica de sopro e a partir do século I depois de Cristo, conseguiram produzir vidros à escala industrial em diversos pontos do Império e os vidros, de produto de luxo tornaram-se objectos ao alcance de uma bolsa média.
 
Lacrimatórios do Museu de Mérida. Foto de http://www.nationalgeographic.com.es
Os vidros romanos, que mais me encantam são os mais pequenos, que serviam para conter unguentos, óleos ou perfumes, conhecidos no meio coleccionista por lacrimatórios, pois normalmente aparecem nas sepulturas, testemunhando uma crença numa vida além-túmulo.

Claro, os meus frasquinhos de vidro, são meras réplicas de vidros romanos, pois os verdadeiros não aparecem nos mercados de velharias e as peças autênticas custam fortunas nas grandes casas leiloeiras. O pequeno jarro com uma asinha foi comprado em Barcelona e o outro com um gargalo muito estreito e alto na Feira de velharias de Estremoz. São peças feitas actualmente, destinadas aos amantes dos vidros romanos e que tentam reproduzir as tonalidades, que um processo químico de degradação próprio daquele material conferiu ao longo de 18 séculos aos vidros, que hoje admiramos nos museus.
A inesquecível Siân Phillips, no papel de Lívia na série da BBC "Eu, Claudius"  
Ainda que meras réplicas, estes recipientes de vidro dispostos num canto qualquer das nossas casas despertam a nossa imaginação para outros tempos, e parece que conseguimos por momentos visualizar uma jovem escrava a verter um óleo aromático nas mãos da sua “domina” ou a temível mulher do Imperador Augusto, Lívia Drusilla, guardando um poderoso veneno no frasquinho de gargalo alto, enquanto maquinava o assassinato ou exílio de um dos familiares do marido, tudo para colocar o seu filho Tibério no primeiro lugar da lista dos sucessores de César.
 
 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Santa Gertrudes, a Magna


Hoje volto a apresentar mais uma gravura religiosa antiga, representando uma santa, que hoje caiu no esquecimento. Mas desta vez não se trata de uma mártir dos primeiros tempos do Cristianismo, como as santas Bárbara, Felicidade, Inês ou tantas outras. Não lhe cortaram a cabeça, nem lhe amputaram os seios, nem lhe furaram os olhos ou outras torturas arrepiantes. Também não se trata de uma pecadora arrependida, como Santa Maria Madalena ou Maria Egipcíaca. Da mesma forma não teve príncipes aos seus pés implorando-lhe casamento e nem tão pouco fez milagres espalhafatosos, como transformar pães em rosas.

Esta estampa do meu amigo Manel representa Santa Gertrudes a Magna (1256-1302), que passou a toda a sua vida num convento beneditino na Alemanha, dedicada à leitura, à escrita, à meditação e a música religiosa. Não há na vida dela nada de espectacular, talvez apenas o facto de ser uma erudita, autora de obras teológicas, numa época em a maioria da população era analfabeta e raríssimas eram mulheres, que sabiam ler e escrever. Claro, hoje em dia só meia dúzia de investigadores ainda consultam as suas obras de carácter teológico, mas em todo o caso foi a responsável pelo início da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que a partir dos finais do século XVIII conheceu uma grande popularidade e que não parou de crescer até aos dias de hoje. Por essa razão, nesta estampa, que deve datar precisamente nos finais do século XVIII, S. Gertrudes é representada com um sagrado Coração de Jesus no peito. Enverga também o hábito preto de monja beneditina e o báculo de Abadessa, embora nunca tenha ocupado esse cargo. Na verdade, é uma confusão com Gertrudes de Hackeborn, abadessa do mesmo convento de Helfta, na época em Getrudes professou e que também foi uma mística famosa na sua época.

Na obra Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955 encontrei referência a esta estampa, que corresponderá à entrada 05059 daquele livro. Terá sido impressa por um tal José Luís Pinheiro nas casas do Rubim ao Chiado, provavelmente à volta de 1790, conforme datação atribuída pela Biblioteca Nacional.

Esta estampa portuguesa do século XVIII evoca esse mundo feminino da clausura dos conventos, que hoje nos parece tão estranho, não só pela figura representada, Santa Gertrudes, como pelo trabalho delicado e minucioso de florinhas e folhas de fantasia, que a decoram, elaboradas certamente pelas mãos de alguma monja, menina educada em convento ou por senhora recolhida.
 
 
Alguma bibliografia e links consultados:

Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955

Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955

https://fr.wikipedia.org/wiki/Gertrude_de_Helfta

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Um leque com um menino montando um gafanhoto


aqui apresentei este leque, que herdei da minha avó Mimi, uma coisa muito delicada, decorado com um ramo de flores e um medalhão onde está representado um menino montando num gafanhoto. Sempre achei que este rapazinho com um ar maroto em cima de um gafanhoto representaria uma personagem de uma fábula ou de um qualquer conto infantil, mas nunca consegui identificar a história, apesar de ter vasculhado toda a internet.
 

Há uns tempos uma das seguidoras desta página, a Maria Paula, apresentou no seu blog uma peça de louça, representando muito provavelmente Polegarzinha de Hans Christian Andersen, um clássico da literatura infantil e no comentário que fiz a este post mencionei este leque, representando uma espécie de gnomo, montado num gafanhoto, lamentando-me que nunca tinha conseguido identificar a figura que ele representava.

Talvez por ter sido educadora de infância e ser sensível ao tema, a Maria Paula lançou-se numa pesquisa desenfreada na internet sobre esta figura do leque e descobriu um prospecto publicitário, datado de cerca de 1880, com um menino igual à figura do meu leque, um boneco de porcelana alemão dos anos 20, da Rosenthal, e ainda dois botões diferentes, todos eles representando uma criança em cima de um gafanhoto. Percebi que esta figurinha montada num grilo ou gafanhoto foi um tema popular nas artes decorativas dos finais do XIX e da primeira metade do século XX, o que reforçou mais a minha ideia de que se trataria de um herói de um conto infantil ou de uma fábula, mas qual?

Continuei as pesquisas da Maria Paula no Google e descobri mais prospectos publicitários exactamente iguais à figura do meu leque, mas publicados em diferentes países, França, Inglaterra e Estados Unidos. Contudo, encontrava sempre imagens desses prospectos em papel publicados por antigas lojas ou armazéns, em sites de venda on-line ou no pinterest, e a informação acerca deles nessas páginas era escassa ou nula. Até que um belo dia, encontrei uma destas imagens publicitárias num blog americano http://www.papergreat.com/2013/02/victorian-trade-card-for-jose-brown-of.html, escrito por Chris Otto, que aventava a hipótese de se tratar de uma representação de Tom Thumb.
 
O tema do menino montado num gafanhoto foi popular em todas as artes decorativas nos finais do XIX e na primeira metade do Séc. XX. Perfumador. Foto Rubylane.com
 
Este Tom Thumb é uma das histórias mais populares da literatura. Terá tido origem na vida de um menino, que existiu realmente no século XVI e ao longo dos séculos XVII e XVII tornou-se uma história extremamente popular em Inglaterra, contada várias vezes por diferentes autores. No século XIX, as aventuras de Tom Thomb começaram a ser publicadas especificamente para o público infantil e autores como Charlotte Yonge e Dinah Mulock adaptaram a antiga narrativa, expurgando alguns aspectos considerados menos próprios e dando um remate moral aos episódios. A história tem muitos pontos de contacto, com o Pequeno Polegar de Charles Perrault ou a versão dos irmãos Grimm e ainda a Polegarzinha Hans Christian Andersen.
 
Ilustração da edição de Tom Thumb de 1906. Tom Thumb monta um rato, uma borboleta, luta com uma espada contra uma aranha, mas não monta um gafanhoto
Contudo, continuava com as minhas dúvidas acerca da identificação deste menino montado num gafanhoto como o Tom Thumb, pois nem sempre podemos confiar em tudo o que está escrito nos blogs, e de facto nas pesquisas, que fiz acerca das ilustrações das várias versões do conto, via o pequeno Tom Thumb montado num rato, numa borboleta, ou a lutar com uma espada contra uma aranha, mas nunca a montar um gafanhoto, até que um dia encontrei uma edição inglesa desta história, da autoria Václav Tille, ilustrada por O. Stafl e publicada em Praga, na Checoslováquia, pela editora B. Koci, em 1922, onde aparece o nosso Tom Thomb à garupa de um espécie de gafanhoto ou grilo.
 
 


Little Tom, segundo a versão de Václav Tille. Edição on line em https://archive.org/stream/littletom00till/littletom00till#page/n5/mode/2up

Tinha finalmente conseguido confirmar que o Menino do meu leque era uma representação de uma das muitas variantes da velhíssima história de Tom Thumb.