terça-feira, 21 de novembro de 2017

Caixa de jóias francesa dos finais do século XIX

Ormulu Jewelry boxes
Não era suposto um homem só como eu comprar caixas de jóias, já que não tenho um simples anel de ouro ou mesmo de pechisbeque para colocar lá dentro. Mas estas pequenas caixas de latão francesas, com vidros biselados e com um estofo capitonné em seda atraem-me irresistivelmente. São caixinhas relativamente pequenas, pouco práticas, onde cabem 3 ou 4 anéis e um colar. É certo que nem todas as mulheres foram como a antiga Duquesa de Windsor, a Wallis Simpson, que tinha dúzias e dúzias de colares, tiaras, diademas e brincos, encomendadas pelo marido nos melhores joalheiros parisienses. Mas, uma caixinha destas, nos finais do século XIX, período em que presumo que tenha sido executada, não era tão barata como isso e sua proprietária teria posses para pelo menos ter comprado ao longo da sua vida uma colecção considerável de bijutaria ou como diria a minha avó Mimi, jóias de fantasia.
Ormulu Jewelry boxes
 
Creio que estas caixinhas serviriam mais expor qualquer coisa considerada preciosa do ponto de vista sentimental, de outra forma não teriam o tampo em vidro biselado. Imagino que nelas se guardasse um anel de noivado ou o caracol de uma criança falecida. Recordo-me que a minha tia guardava numa caixinha o último lencinho de renda, que a minha avó usou, antes de morrer. Nunca quis lavar o lenço, pois não queria perder as últimas lágrimas da mãe. 

Talvez seja este uso tão sentimental, que pressinto nestas caixinhas, que me leva a gostar tanto delas.
Ormulu Jewelry boxes
 

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O dardo do amor divino: registo de meados do século XIX representando Santa Teresa de Ávila


Sempre tive um certo fascínio por Santa Teresa de Jesus, essa mística espanhola do século XVI, fundadora da Ordem das Carmelitas Descalças. Não só pelas suas qualidades intelectuais, mas também pelas representações que dela se fizeram na arte, nomeadamente o seu êxtase místico, que é profundamente erótico.

Por isso quanto encontrei este registo representando a Transverberação de Santa Teresa de Ávila, preciosamente encaixilhado com restos de tecidos ricos, comprei-o sem hesitar. Decididamente, faltava uma Santa Teresa na corte de santos que decoram as paredes da minha casa.

Procurei saber mais alguma coisa sobre esta estampa, que só apresenta uma simples legenda identificando a Santa e uma frase em latim Divini amoris cuspide/ In vulnus icta concides. A restante legenda foi tapada pela senhora ou menina prendada que executou a preciosa moldura.
Parte da legenda foi tapada pela senhora ou menina prendada que executou a preciosa moldura

Através de uma pesquisa por imagens e encontrei uma estampa igual a esta no site da Casa Martins Sarmento, que tem o resto da legenda, que o caixilho da minha estampa esconde. Nela, indica-se que é dedicada A' MUITO RD.A MADRE/ Maria Gertrudes de S. Ignez/ RELIGIOSA CARMELITA EM S. TERESA/ DE CARNIDE/ F. Jose da Pureza Religioso da mesma ordem. Também na gravura indica-se o nome do gravador, um tal C. Acquisti, elemento que falta na minha gravura.
A Sociedade Martins Sarmento tem uma estampa igual à minha, mas com a legenda completa

Santa Teresa de Carnide foi um convento de Carmelitas descalças fundado no século XVII e cuja existência se prolongou até 1891, ano da morte da última religiosa, em que fechou as suas portas. O edifício ainda hoje existe no bairro com o mesmo nome e é propriedade da Confraria de Santo Vicente de Paula e serve de lar para terceira idade e igualmente de creche. 

Esta Madre Maria Gertrudes de Santa Inês a quem a estampa é dedicada viveu na primeira metade do século XIX e era em 1847 prioresa do convento de Santa Teresa de Carnide, segundo se refere na obra Convento Santa Teresa de Jesus de Carnide: o falar das pedras / coord. Augusto Moutinho - Lisboa : Confraria de São Vicente de Paulo, 2016

Frei José da Pureza é também mencionado nessa obra, como membro dos Carmelitas e que em 1845 conseguiu que o Papa oferecesse ao Convento de Carnide o corpo inteiro da virgem Mártir de Santa Ágata, o qual chegou ao Convento em Setembro. Na Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, Frei José da Pureza consta como alguém ligado ao mundo editorial, que organizou e reviu a edição do 1860 do missal romano, considerada a melhor de todas as edições feita pela imprensa Nacional. 
Estampa de C. Acquisti da colecção da Biblioteca Nacional de Espanha

Quanto ao gravador da estampa, o tal C. Acquisti não há muitos dados sobre ele. Encontrei uma estampa da sua autoria no catálogo da Biblioteca Nacional de Espanha, representando os Mártires de Tonkin, com a legenda em espanhol e impressa com caracteres tipográficos semelhantes aos da estampa de Santa Teresa de Jesus. No Arqueólogo Português, Vol. XIV, 1909 Ernesto Soares refere que terá sido talvez um italiano que trabalhou em Portugal.

Em suma, esta estampa terá sido impressa à volta de 1850 em homenagem à Madre Maria Gertrudes de Santa Inês, prioresa de Santa Teresa de Carnide, que talvez nessa altura já tivesse falecido, porque enfim, como todos nós sabemos as homenagens só chegam depois de as pessoas terem morrido. A gravura é-lhe dedicada por Fr. José da Pureza, homem ligado ao mundo editorial e que terá encomendado a imagem ao tal C. Acquist, um gravador estrangeiro. 
Reverso do registo, manufaturado por mãos devotas.

Todos nós temos a ideia que em 1850, os conventos estariam numa longa agonia, já que a lei que os extinguiu em 1834, previa que estas casas fossem fechando à medida, que morresse à última freira. Mas pelos vistos, algumas dessas casas religiosas estariam ainda activas, pois por volta de 1850, continuava-se a mandar imprimir estampas piedosas relativas a devoções desses mesmos conventos e havia púbico para as comprar.


Quanto à iconografia desta estampa representa umas das visões de Santa Teresa, que a própria Santa descreveu no seu Livro da vida e que não resisto a transcreve-la, pois aos nossos olhos do século XXI pode ser visto como uma sublimação dos prazeres da penetração. Mas, também é verdade, que hoje temos a visão distorcida por demasiadas imagens de sexo na televisão, no cinema e sobretudo na internet.

Via um anjo ao pé de mim, para o lado esquerdo, em forma corporal, o que não costumo ver senão por maravilha [..) Via-lhe nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tira-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e que me deixava toda abrasada em grande amor de Deus.

Teresa de Jesus, obras completas, Livro da Vida, cap. 29, 13, p 237 (citado a partir de Isabel Bastos - Iconografias de Santa Teresa de Ávila como esposa Mística, in Congresso Internacional sobre a Reforma Teresiana em Portugal, Fátima, 2015)