sábado, 27 de maio de 2023

Os mistérios do Rosário: uma estampa flamenga dos finais do século XVII, inícios do XVIII



Embora há muito que tenha perdido a fé, gosto muito de registos de santos e tenho as paredes da casa cheias com eles e ainda um grande envelope com uma vintena destas imagens, em fila de espera, aguardando pacientemente um lugar.

Conhecendo este meu gosto por beatices, uma amiga, a Carmo, ofereceu-me uns quantos destes registos, que eram da sua mãe. Encantei-me logo por um deles, impresso em pergaminho e aguarelado à mão, uma coisa ingénua com o seu quê de popular, que são os que sempre me agradam mais.



Esta estampa apresenta o nome do autor abreviado Cor. v. Merlen, isto é, Cornelis van Meirelen (1654-1723), um impressor /gravador muito conhecido, de que já apresentei aqui um S. Sebastião. Nasceu e morreu em Antuérpia, na actual Bélgica e foi um editor prolixo de registos de santos, muitos deles coloridos, mas também de gravuras mais sérias e até de baralhos de cartas. Como era vulgar na época, em que os ofícios passavam de pais para filhos, o seu pai Theodor van Merlen II (1625-1672) foi também impressor e depois da sua morte de Cornelis a viúva e filhas continuaram o negócio. No período em Cornelis van Meirelen viveu, Antuérpia estava entre os principais centros editoriais da Europa e além de livros, exportava para o mundo católico e apostólico romano imagens de santinhos como esta, destinadas a devoções privadas.

No rodapé desta folhinha em pergaminho, há uma legenda em latim, MYSTERIA S. MI ROSARII, que creio quem português se pode traduzir por Mistérios do Santíssimo Rosário

É uma representação de Nossa Senhora do Rosário, mas também a imagem dos mistérios sobre os quais se medita enquanto se reza o Rosário, isto é, os acontecimentos fundamentais da vida de Cristo e Maria. Nesta gravurazinha a os mistérios são em número de 15. Só em 2002, com o Papa João Paulo II é que foram acrescentados mais 5 mistérios.

Em francês, o Rosário traduz-se por Chapelet, cujo termo deriva, de Chapel, isto é, capela. Esta estampa, no fundo representa 15 capelinhas, com imagens da vida de Cristo e de Maria, nas quais as pessoas se deteriam para meditar e fazer umas quantas orações, só que em vez de estarem numa igreja, faziam-no em casa, como que numa peregrinação interior.

Na época em que a estampa foi impressa, os mistérios eram os seguintes:

Os gozosos: 

1- a anunciação;




2- a visitação;



3- o nascimento de Jesus; 



4 -a apresentação ao templo;



5- A perda e encontro do Menino Jesus no Templo;




Os dolorosos: 

1- a agonia de Jesus no horto;



2- a flagelação;



3-  a coroação de espinhos;



4 Jesus carregando a cruz;



5-  a crucificação;




Os gloriosos: 


1- a ressurreição de Jesus;



2 - a ascensão;



3- o Pentecostes;




4 - a assunção;


5- a coroação de Maria.



Como objecto de devoção, o rosário é muito antigo, dos primeiros séculos do Cristianismo, mas o culto à Virgem do Rosário só começou a partir dos séculos XIV e XV por influência dos dominicanos.

Quanto à datação desta estampa em pergaminho e aguarelada à mão, foi impressa em Antuérpia por Cornelis van Meirelen entre 1672, data da morte do pai, ano em o jovem terá assumido o controlo da oficina e 1723, ano em faleceu.

Talvez os católicos praticantes que leiam estas linhas, achem as minhas explicações pueris, mas para mim, que recebi uma educação religiosa deficiente e não tenho fé, a iconografia desta estampa foi um mistério, que resolvi tirar a limpo. Gosto sempre de entender e saber mais sobre as velharias que ponho em casa.



Ligações e bibliografia consultadas:




Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955

domingo, 14 de maio de 2023

Uma caixa de prata com um retrato de uma senhora



Depois da morte do meu pai, escolhi esta caixinha de prata com o retrato de uma senhora. Sempre gostei muito dela e recordo-me de a ver durante décadas em casa dos meus pais em cima da mesma mesinha. É um objecto que me trará sempre à memória o ambiente da casa onde fui criado e os meus próprios pais.

Muito antes de ser minha sempre a namorei à distância e durante uns quantos anos convenci-me de que seria umas dessas caixinhas antigas, com um retrato pintado autêntico em miniatura, que serviam para recordar a memória de um antepassado, guardar rapé, uma jóia, o caracol de cabelo de uma pessoa amada ou como diriam os franceses, un tout petit rien.


Mas ainda antes de ficar com uma ela, resolvi desmonta-la e depressa me apercebi que o retrato da senhora não era uma pintura original, mas sim uma estampa, talvez uma cromolitografia, enfim uma reprodução qualquer recortada de uma revista ou de um álbum e usada por um ourives para decorar a caixinha e proporcionar ao cliente a sensação de estar a comprar uma peça clássica, que ficaria muito bem em cima de uma mesinha ao estilo D. Maria ou Império.

Apesar de saber que a caixinha não era antiga, resolvi ficar com ela na mesma e de facto encontrei-lhe rapidamente um lugar na minha casa atafulhada de velharias.

A caixinha encontrou rapidamente o lugar certo da minha casa

Já na minha casa resolvi saber mais sobre esta pequena caixa e olhar para ela atentamente. Apesar de ser indiscutivelmente de prata não apresenta qualquer marca de ourives ou do punção de um ensaiador, o que lhe diminui de imediato o valor comercial. Quanto à dama vestida à moda Império, tive uma sensação que já tinha visto aquele retrato algures. Pensei tratar-se de Lady Hamilton (1765 -1815), essa demi-mondaine, célebre por ter sido amante de Lord Nelson e fiz algumas pesquisas nesse sentido, mas infelizmente não era. Teria graça em casa o retrato de uma cortesã, até para contrabalançar com as dúzias de santinhos e cristos que decoram o meu apartamento minúsculo. 

Maria Graham por Thomas Lawrence

Coloquei a imagem no google e encontrei um retrato de uma tal Maria Graham, uma senhora inglesa que esteve na corte do Brasil e foi perceptora da menina, que viria a ser a nossa Rainha D. Maria II. O seu retrato pintado por Sir Thomas Lawrence apresentava muitas semelhanças estilísticas com a Senhora da minha caixinha de prata. Pesquisei então no google pelo nome deste artista britânico e rapidamente descobri que a Senhora da minha caixinha é uma reprodução de uma pintura de Sir Thomas Lawrence, retratando Sarah Siddons (1755-1831), uma das actrizes de teatro mais famosas de sempre do Reino Unido. 

Sarah Siddons por Thomas Lawrence. Foto de https://mydailyartdisplay.uk/2014/08/24/sarah-siddons/

Segundo os relatos da época, as suas representações eram brilhantes e dedicou-se ao chamado teatro declamado, interpretando papéis de peças de William Shakespeare, entre outros. Serviu de musa aos melhores pintores britânicos de então, como Joshua Reynolds e Thomas Gainsborough, que a imortalizaram na tela.

Sarah Siddons por Thomas Gainsborough

A reprodução da minha caixinha foi então feita a partir de uma pintura de Sir Thomas Lawrence (1769-1830), executada em 1797, representando Sarah Siddons no papel Mrs Haller, na peça The Stranger, da autoria do dramaturgo alemão August Friedrich Ferdinand von Kotzebue. A pintura original encontra-se hoje na Tate Gallery, em Londres, com o nº de inventário N00785 e a partir dela imprimiram-se ao longo do século XIX e ainda no XX, muitas estampas, como esta fotogravura, que aqui apresento, da Photographische Gesellschaft datada mais ou menos por volta de 1900. Terá sido uma destas estampas mais recentes, que foi usada para decorar a minha caixinha em prata.

Reprodução de c. de 1900 da Photographische Gesellschaft. Foto da National Portrait Gallery


Quanto à época, em que esta caixinha de prata foi executada, é muito difícil encontrar datas. Tenho a ideia que só apareceu lá em casa, quando já estaria no início da adolescência ou da juventude. Os meus pais não compravam pratas, portanto tenho ideia que terá sido herdada da minha avó, ou bisavó, do lado paterno e talvez por isso possa presumir, que será coisa da primeira metade do século XX.

Em suma esta caixinha de prata, com uma reprodução impressa de um retrato de Sarah Siddons tem pouco valor comercial, mas é muito decorativa e sempre que olho para ela, revejo uma imagem da casa dos meus pais e isso é para mim é um valor mais que suficiente.




Ligações consultadas:





domingo, 30 de abril de 2023

Um cavalheiro elegante e umas antigas histórias camilianas



Recentemente, a minha prima Ana Paula fez a gentileza de me oferecer mais uma resma de fotografias antigas. Entre eles, estava o retrato de um homem distinto, tirado há cerca de 110 anos, que me chamou de imediato a atenção. É uma daquelas imagens, que nos faz pensar que a verdadeira elegância é intemporal. Recordou-me até o retrato do Dr. Pozzi, que John Singer Sargent pintou 1881 e serviu de mote para o belíssimo livro de Julian Barnes O Homem do Casaco Vermelho. Mas afinal quem foi este belo homem da fotografia?

Retrato do Dr. Pozzi, John Singer Sargent ,1881 


A indumentária é a de um juiz, mas a dedicatória escrita sobre a fotografia é pouco legível. No lado direito, apercebi-me que o seu apelido era Machado, mas o nome próprio poderia ser João ou Júlio. No lado esquerdo, li que o retrato foi dedicado ao meu amigo Montalvão e que a data terá sido em 1919. Consegui ainda perceber que a fotografia foi tirada na Ilha do Pico, nos Açores. Suspeitei que este homem bonito e distinto fosse um dos membros da família Montalvão Machado e com efeito com meia dúzia de pesquisas no google conclui que só poderia ser Júlio Augusto de Montalvão Machado (1888-1968), formado em Direito e que em 1918 entrou para a carreira judicial como estagiário do Ministério Público em Peniche, exercendo funções como delegado nos Açores e só passando posteriormente para as terras transmontanas. Em suma, este retrato foi tirado no início da sua carreira, quando passou pelos Açores, nomeadamente na Ilha do Pico e dedicado ao meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão.

A fotografia foi dedicada ao meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão


Além da sua carreira judicial, Júlio Augusto de Montalvão Machado dedicou-se à literatura, de feição regionalista, escrevendo algumas obras sobre a história das famílias da zona e foi também um republicano e um democrata activo, que se empenhou na campanha de Humberto Delgado. Em Chaves, Júlio Augusto de Montalvão Machado é ainda recordado pela sua postura de republicano de velha cepa, apesar do seu aspecto aristocrático, realçado pela barba e pela badine. O irmão, José Timóteo Montalvão Machado (1892-1985) licenciado em medicina, foi também um homem de letras e publicou em 1948 a genealogia da família, Os Montalvões.

António Vicente Ferreira Montalvão (1809-1894) 


Numa das suas obras, O capitão de vila Frade: esboço biográfico, 1956, Júlio Augusto de Montalvão Machado contou a história do seu avô, António Vicente Ferreira Montalvão (1809-1894) e dos seus pais. O livro é um retrato dos usos e costumes das famílias fidalgas no século XIX nas terras transmontanas e vai referindo aqui e acolá alguns membros do meu ramo familiar.

Este António Vicente Ferreira Montalvão (1809-1894) era neto de Miguel Álvares Ferreira e de Antónia Maria de Montalvão Morais, esse matrimónio primordial, realizado em 1746, que marca o momento em família Montalvão, de Vila Frade, estende um dos seus ramos a Outeiro Seco. António Vicente era primo direito do meu quarto avô, o João Manuel Ferreira Montalvão (1806-1851) e no tempo dos acontecimentos, que descreverei estes dois ramos familiares eram ainda muito próximos.

Em 1746, Antónia Maria de Montalvão Morais casou com Miguel Álvares Ferreira, e o solar de Outeiro Seco passou a estar ligado ao nome Montalvão

António Vicente foi um absolutista convicto, durante a guerra civil lutou ao lado de D. Miguel e depois do final do conflito, em 1834, naquelas muitas revoltas que houve até 1854, em que reapareciam os miguelistas, este fidalgo esteve quase sempre na linha da frente. Durante esses tempos, exerceu também cargos públicos na gestão do município de Chaves. Mas a partir da Regeneração, já na casa dos 50 anos, este homem conhecido pelo Capitão de Via Frade acalmou-se e dedicou-se ao governo da sua vasta casa agrícola, que se estendia por várias aldeias da Galiza, dos concelhos de Chaves, Valpaços e Mirandela e tornou-se uma figura quase lendária, acerca do qual correm muitas histórias. Não deixava que se cortassem árvores e nas suas terras, fossem galinhas ou cavalos, os animais não eram presos e corriam livremente. Como velho senhor feudal, julgava também pequenas disputas nas suas terras. Claro, as penas dos condenados eram leves, mas significativas no meio aldeão, como por exemplo entregar quatro cruzados e dois pintos à igreja local e saírem com hábitos de penitentes na primeira procissão da Senhora da Expectação

O rústico solar de Vila Frade

Este velho Miguelista era um solteirão inveterado, que entregava o governo doméstico das suas casas a senhoras de boas famílias, ainda eram parentes, mas que tinham permanecido solteiras. Até que por volta de 1860, foi chamada outra senhora, a D. Umbelina Rosa, também de famílias honestas, mas sem dinheiro e qualquer coisa que ultrapassou a amizade aconteceu entre os dois e nasceu em 1860 uma criança, a Maria Umbelina. Cheio de curiosidade, entrei no portal do Arquivo Distrital de Vila Real, para ler o assento de baptismo da pequena Maria Umbelina., do qual transcrevo uma parte.

O assento de Baptismo de Maria Umbelina

A 13 de Junho de 1860 foi baptizada na Igreja Paroquial de S. Vicente de Barreiros, Concelho de Valpaços, Diocese de Bragança, Maria Umbelina, que nasceu às 11 horas da noite de 7 de Junho de 1860, fila ilegítima de Umbelina Rosa. Teve a criança nos Louços, segundo me disse Maria Lomba, casada com Pedro Martinho, deste lugar, a quem a criança foi entregue para ser criada. Foi padrinho, João Rita, casado com Carnulina Rosa e Maria do Carmo, casada com José Lomba.

Nota ao lado, a mãe desta criança é natural de Alpande, freguesia de Erboins, [ Ervões], actualmente do concelho de Valpaços.

Assinada Padre Luís Manuel Pereira.

Portanto a Maria Umbelina era filha natural e foi entregue a alguém de confiança, para ser criada discretamente, para não dar origem a muito falatório, pelo menos nos primeiros tempos, como era costume da época. Mas Júlio Augusto de Montalvão Machado na sua obra, O capitão de vila Frade: esboço biográfico, dá-nos conta que rapidamente o velho António Vicente Ferreira Montalvão foi buscar a sua filha natural e educou-a junto a si, com todos os desvelos, como a morgadinha de Vila Frade. A menina foi educada, aprendeu a ler e escrever em casa com a Dona Teresa Montalvão, uma das tais parentes, que faziam o governo doméstico da casa e deslocava-se até a Chaves, para aprender bordados, culinária e até francês. Muito embora o Capitão de Vila Frade não visse com bons olhos as lições de francês, com receio que pudessem trazer mascarados alguns ensinamentos de tratante Jacobinismo. Quando adolescente, a menina frequentava o Salão da Assembléia Civilizadora, que mais tarde veio a ser a Sociedade flaviense e convivia com as melhores famílias de Chaves.

Tudo corria pelo melhor até que em Vila Frade, pequena aldeia do Concelho de Chaves, na fronteira com a Galiza, onde vivia esta gente, apareceu um jovem oficial, o alferes António Augusto de Sousa Machado, que tinha vindo vigiar a fronteira, em virtude de uma ameaça de peste bubónica, vinda de Espanha. O jovem oficial e a Umbelina enamoram-se, mas o velho miguelista António Vicente Ferreira Montalvão não queria ouvir falar de tal namoro, já que o Alferes Sousa Machado era um liberal. Aconteceu o inevitável e com a cumplicidade da mãe, a Maria Umbelina e o António Augusto de Sousa Machado fugiram para se casarem. Assim a 31 de Janeiro de 1887, na Igreja de São João Baptista de Capeludos, Concelho de Vila Pouca de Aguiar, casaram António Augusto de Sousa Machado e Dona Maria Umbelina Ferreira Montalvão, ele 26 anos, alferes de cavalaria, filho legitimo de António de Sousa Machado e Dona Clementina de Sousa Machado desta freguesia e ela de 26 anos, solteira, natural da freguesia de S. Vicente de Barreiros, Bragança, onde foi baptizada, residente na freguesia de Lamadarcos, filha natural de Umbelina Rosa.

O assento de casamento 


É curioso observar, que a jovem Maria Umbelina usava o nome do pai, Ferreira Montalvão, embora constasse apenas com filha natural de Umbelina Rosa. O pároco usa também o Dona, antes do seu nome, tratamento que nos registos paroquiais é só reservado às senhoras de condição elevada.

O velho Capitão de Vila Frade ficou irremediavelmente zangado com a filha e só se reconciliou com a Maria Umbelina por intervenção dos Morais Sarmento, de Sto. Estevão, depois do nascimento do neto em 1888, precisamente o Júlio, que mais tarde, veio a ser o elegante cavalheiro do retrato apresentado logo no início. É também interessante, ler o assento paroquial Júlio Augusto, que nasceu às seis da tarde, de 27 de Setembro de 1888, filho legítimo António Augusto de Sousa Machado (…) e de Dona Maria Montalvão Sousa Machado, natural de S. Vicente de Barreiros, Valpaços e neto materno de António Vicente Ferreira Montalvão, de Vila Frade, e de Umbelina Rosa, freguesia de Ervões, Valpaços. Quando nasceu o pequeno Júlio, a bastardia da Maria Umbelina foi omitida e o António Vicente Ferreira Montalvão consta inequivocamente como avô materno.


A minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão era afilhada de António Vicente Ferreira Montalvão


O capitão de Vila Frade tinha boas relações com o meu ramo familiar. Era padrinho da minha trisavó, a Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão e deve ter gostado sempre desta afilhada, apesar de ela se ter envolvido com um padre e dele ter tido dois filhos. Em 1888, a Maria do Espírito Santo foi envolvida num caso de contrabando, quando alguém, sem seu conhecimento, depositou num armazém da sua casa uma grande quantidade de tabaco e baralhos de cartas vindos da Galiza. Houve uma denuncia, a minha trisavó foi indiciada e umas das pessoas que veio em seu socorro, movendo influências, foi precisamente o seu padrinho António Vicente Ferreira Montalvão, conforme é relatado na obra O capitão de vila Frade: esboço biográfico.

António Vicente Ferreira Montalvão morreu em 1894 e no seu testamento datado de 1874 legou praticamente todos os seus extensos bens à filha natural, Maria Umbelina, designada neste instrumento legal como afilhada. Mas não esqueceu também a minha trisavó, a quem deixou 400 mil réis em dinheiro ou bens.

Muitos, mas muitos anos mais tarde, em 1961 este Júlio Augusto de Montalvão Machado, publicou uma colectânea 5 contos …em moeda corrente. ., onde narrou com evidente simpatia pelos protagonistas, os amores da minha trisavô, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão e Padre José Rodrigues Sampaio, bem como nascimento do meu bisavô, o seu primeiro filho. Tudo isto me leva a crer que as relações familiares entres estes dois ramos da família tivessem sido muito boas e próximas.

Em suma, este retrato de Júlio Augusto de Montalvão Machado foi o motivo para conhecer a figura do seu avô, o velho fidalgo miguelista, António Vicente Ferreira Montalvão, que mantinha um modo de vida quase feudal e ao mesmo tempo ecológico, como diríamos nos dias de hoje, mas também para saber a história da sua filha natural, a Maria Umbelina, que apresenta um paralelo evidente com os amores dos meus trisavós, a fidalga e o padre. São casos que reforçam a minha ideia de que a bastardia era um componente da estrutura familiar do século XIX.

Igualmente foi interessante observar como este ramo familiar, foi evoluindo politicamente. De miguelistas, estes Montalvões quando se cruzam com os Machados, passam a liberais, depois republicanos e durante a ditadura, a paladinos dos valores democráticos. Fiquei a simpatizar com estes primos, hoje tão afastados.

Júlio Augusto de Montalvão Machado (1888-1968)

Bibliografia e ligações consultadas:

5 contos …em moeda corrente. . / Montalvão Machado - Porto: Livraria Progredior, 1961

Os Montalvões / J. T. Montalvão Machado. - Famalicão: Tip. Minerva, 1948

O capitão de vila Frade: esboço biográfico / Montalvão Machado. Porto: Livraria Lello e Irmão; Chaves: Gutemberg, 1956


Fontes arquivísticas:

Arquivo Distrital de Vila Real:

PT-ADVRL-PRQ-PVLP04-001-003_m0004
PT-ADVRL-PRQ-PVPA05-002-015_m0083_derivada
PT-ADVRL-PRQ-PCHV50-RU-001-001-107_m0087

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Uma base de um tocheiro



Como já aqui referi anteriormente tenho um certo gosto eclesiástico herdado da minha avó Mimi e sempre ambicionei ter um tocheiro, essa peça barroca, tão característica das nossas igrejas. Mas a minha casa é muito pequena para encaixar tocheiros de grandes ou médias dimensões e por outro lado, os que aparecem nos mercados de velharias são muitas vezes más cópias dos anos 50 ou 60 do século XX ou mesmo quando são antigos, foram pintados e repintados com dourados esgaivotados ou demasiado estridentes.

Recentemente comprei esta base de tocheiro, que me pareceu muito boa. A talha é de boa qualidade e o dourado é bonito. Creio que é antigo, do século XVIII, em estilo D. José, com aquelas curvas e contracurvas em CC e SS, mas é sempre complicado datar estas peças. Houve uma certa persistência do gosto barroco em Portugal, mesmo quando este passou de moda, e nos século XIX e XX com os revivalismos, os tocheiros barrocos voltarem a ser produzidos e muitos foram até electrificados.

Foto retirada de Colecção de mobiliário do Museu-Biblioteca Condes Castro de Guimarães / José António Proença. - Cascais : Câmara Municipal de Cascais : Museus Municipais, 2009


Sempre imaginei que estes tocheiros fossem só usados nas igrejas, mas recentemente ao folhear o catálogo da Colecção de mobiliário do Museu-Biblioteca Condes Castro de Guimarães encontrei reproduzido um tocheiro, não muito diferente do meu, onde o autor, José António Proença, na respectiva entrada descritiva explica, que foram também usados na iluminação das casas particulares. Surgiram na segunda metade do século XVII e eram por vezes encomendados conjuntamente, entre outros, com espelhos, credencias, formando mobílias de grande aparato e impacto visual, convertendo-se num excelente indicador da riqueza e opulência do proprietário. Gozaram, de grande aceitação durante a centúria de setecentos, acompanho as alterações formais e decorativas ao longo desse período

Este meu tocheiro é só um fragmento e como tal pouco valor comercial tem. Ultimamente tenho visto muitos programas da série francesa Jour du Brocante sobre compra e venda de velharias e antiguidades em França e com efeito tudo o que está partido, fragmentado, incompleto ou em mau estado vale imediatamente menos dinheiro. Estes programas franceses, que se podem ver no you tube, puseram-me a matutar neste meu hábito de comprar cristos sem braços, meninos jesus com as mãos partidas, restos de serviços de porcelana, pedaços de talha dourada, pratos gatados ou de catar azulejos antigos em tulhas de obras e que tudo isto no futuro, não valerá um caracol. Mas como sou um sentimental, esta caqueirada toda em casa cria um ambiente especial no qual me sinto bem.


Bibliografia consultada:

Colecção de mobiliário do Museu-Biblioteca Condes Castro de Guimarães / José António Proença. - Cascais : Câmara Municipal de Cascais : Museus Municipais, 2009

sábado, 1 de abril de 2023

Ainda a doce Elina ou uma indiscrição com 120 anos

Elina Bravo Borges de Ferreira Montalvão.
Foto de Vidal & Fonseca, na Calçada do Combro 29, Lisboa

Já aqui tinha apresentado este retrato de Elina Bravo Borges de Ferreira Montalvão (1884-1912) e contado alguns fragmentos da história desse ramo familiar.

Esta jovem de ar tão doce era filha de um irmão da minha trisavó, o General António Vicente Ferreira Montalvão (1840-1919), que fez uma carreira brilhante nas armas e casou muito bem, com uma senhora da boa sociedade lisboeta, Mariana das Mercês Bravo Borges (1858-1888). Aliás, este general foi o irmão mais acertado da ninhada. A minha trisavó, Maria do Espírito Santo (1856-1902), envolveu-se com um padre, relação da qual nasceram dois filhos e outro irmão, o Miguel (1838-1890), nunca casou e morreu louco rodeado de livros.

General António Vicente Ferreira Montalvão (1840-1919)

Mas em 1902, à data deste retrato da doce Elina, estes assuntos já eram um pouco águas passadas, a Maria do Espírito Santo tinha morrido em Março deste ano e o General António Vicente Ferreira Montalvão sentiu-se mais à vontade para regressar a Chaves, sem ter que lidar com a situação incómoda de encontrar a irmã a viver em mancebia com um padre. Na época, estas situações não eram raras, mas em todo o caso não eram socialmente as mais desejáveis. Seja como for, a filha do general, que teve uma educação esmerada, com o curso superior de piano, discípula de Viana da Mota, travou conhecimento com o primo, o José Maria Ferreira Montalvão (1878-1965), filho bastardo do padre e da fidalga e entre eles terá nascido uma amizade. Assim em Dezembro desse ano de 1902, a Elina ofereceu o seu retrato ao meu bisavô e numa caligrafia elegante de quem recebeu a melhor das educações, escreveu esta dedicatória: José, envio-te o meu retrato accedendo ao teu pedido e para te provar que te estimo como a um irmão. Tua prima Elina. 19-12-902.


O verso do retrato de Elina. José, envio-te o meu retrato accedendo ao teu pedido e para te provar que te estimo como a um irmão. Tua prima Elina. 19-12-902

Na altura, em que apresentei este retrato, o meu amigo Manel, comentador residente deste blog, achou que o meu bisavô teria tido uma paixoneta pela prima Elina. Mas achei isso um exagero. Contudo, a minha prima Ana Paula Montalvão Vasques ofereceu-me mais uma resma de fotografias antigas e entre elas estava um retrato do meu bisavô, no momento da sua formatura em direito, na Universidade de Coimbra. Tenho outro exemplar dessa fotografia, tirada no estúdio do Pinho Rodrigues de Coimbra, mas esta foi dedicada à prima Elina e o texto é o delicioso: À sua adorada Elina, modelo de virtudes, com a graça das nymphas crystallinas, oferece com juramento de eterno amor, o seu primo e adorado José. Coimbra, 24-6-902.

.José Maria Ferreira Montalvão no momento da sua formatura. Foto de Pinho Rodrigues, Coimbra



O verso do retrato. À sua adorada Elina, modelo de virtudes, com a graça das nymphas crystallinas, oferece com juramento de eterno amor, o seu primo e adorado José. Coimbra, 24-6-902.


Esta dedicatória naquela linguagem arrevesada da época, prova que o meu bisavô sentiu efectivamente uma paixoneta pela prima. Mas, o mais curioso, é que a fotografia nunca foi entregue à suave Elina e ficou nos arquivos da família até aos dias de hoje. Talvez o José Maria Ferreira Montalvão tenha pensado duas vezes e concluído que o namoro com uma prima direita não era o mais adequado ou a própria Elina o tenha desencorajado nalguma carta.

Esta terna afeição entre os primos não teria passado de uma troca de fotografias e talvez de uma ou outra carta e logo no ano seguinte, o José Maria casou em 17 de Julho de 1903 com a Ana da Conceição de Morais Alves e a Elina casou a 14 de Julho de 1910 com Leopoldo de Montalvão de Lima Barreto Pereira Coelho, também primo, mas mais afastado.

Sei que talvez esteja a ser um pouco indiscreto, revelando a intimidade dos meus antepassados, mas quem não perdoará ao meu bisavô ter experimentado uma paixoneta por esta jovem, que ainda hoje, passados 120 anos, nos parece tão doce.

A doce Elina

domingo, 26 de março de 2023

Esgravatando numa velha caixa de papelão com fotografias antigas: o retrato de um herói do ultramar


Entre as coisas que trouxe de casa do meu pai após a sua morte estava uma velha caixa de papelão, daquelas em que antigamente as camisas vinham embaladas, cheia de retratos, datados entre os finais do século XIX e os anos 60 do século XX. Nos últimos tempos lancei-me a ela e este trabalho de identificação de fotografias antigas rapidamente torna-se um vício. Também é verdade, que como sou bibliotecário, tornei-me especialista em resolver as charadas, que os alfarrábios, livros truncados e outras raridades bibliográficas sempre levantam.



Entre estas fotografias, encontrei o retrato de um senhor todo engalanado, num uniforme vistoso, cheio de medalhas, datado de 21-7-1897. O retrato foi feito da Photograhia Luso-Brazileira, de António Maria Serra, que ficava na Rua das Chagas, nº 9, em Lisboa. Fiquei muito intrigado sobre quem seria este personagem e que relação teria com a família. Seria um amigo ou um parente, mas de que ramo familiar? Dos Alves, dos Montalvões ou dos Morais Sarmento?

Photograhia Luso-Brazileira, de António Maria Serra, Rua das Chagas, nº 9, em Lisboa. Data 21-7-1897.


Mas tenho a sorte de ter um irmão, que além de ser um oficial na reforma, sabe muito de história militar e enviei-lhe cópia da fotografia frente e verso para ver se aquele uniforme todo engalanado lhe dizia alguma coisa. A sua resposta foi mais ou menos a seguinte: a farda foi do exército português de um regimento 6 ou 8 (golas da farda), mas o mais importante era a condecoração torre espada (colar), o galardão mais importante das Forças Armadas Portuguesas. Esta Torre Espada seria das campanhas de Moçambique (1875) onde se distinguiram Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Marechal Gomes da Costa (na altura capitão). O meu irmão sublinhou que na época apenas um pequeno grupo de 4 ou 5 oficiais recebera esta condecoração.
A Torre Espada

Tudo isto aumentou mais a minha curiosidade e coloquei a hipótese de se tratar do General José Celestino da Silva, que nasceu em Vilar de Nantes, nas cercanias de Chaves e que casou com Amélia Augusta Coelho Montalvão, uma prima direita da minha trisavó, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão. Enfim, tudo gente de Chaves e arredores. Contudo, se o General Celestino da Silva foi também condecorado com a Torre de Espada em virtude das suas acções em Timor, nos vários retratos que encontrei dele na net, não assemelha em nada com o senhor retratado nesta fotografia

General Celestino da Silva

Comecei então a pesquisar, tentando encontrar a lista dos que foram distinguidos por esta condecoração no último quartel do século XIX, até que no motor de busca da Torre do Tombo, o Digitarq encontrei várias fotografias destas insígnias da Torre e Espada, que pertenceram a Mouzinho de Albuquerque e lembrei-me então de procurar retratos antigos deste homem, que tanto ouvi falar nos tempos da escola primária, o herói da batalha de Chaimite, aquele que prendeu Gungunhana. 

Colar e comenda da Torre e Espada pertencentes a Mousinho de Albuquerque. Foto Arquivo Nacional da Torre do Tombo


Ao fim de umas quantas pesquisas no google, encontrei uns retratos de Mouzinho de Albuquerque num blog memorialista da cidade de Lourenço Marques e percebi que o senhor de uniforme engalanado da velha caixa de papelão é efectivamente Mouzinho de Albuquerque!!

Mouzinho de Albuquerque em Moçambique. Foto Delagoa Bay


Mouzinho de Albuquerque em Moçambique. Foto Delagoa Bay


Confirmei esta identificação no repositório do Arquivo Científico Tropical onde encontrei mais dois retratos daquele herói ultramarino.

Mouzinho de Albuquerque em Moçambique. Foto Arquivo Científico Tropical  


Não vou aqui explicar, quem foi Mouzinho de Albuquerque (1855-1902), quem quiser saber mais abra a Wikipédia, mas foi um homem extraordinário, que se distinguiu na pacificação e governo de Moçambique. Regressou à metrópole em 1897, a data desta fotografia, onde foi acolhido em glória, condecorado e ainda homenageado em todas as partes do País. Tudo isto faz-me pensar como é que a fotografia veio parar à família. Mouzinho de Albuquerque era da Batalha, do Distrito de Leiria e não tinha nada a ver com Chaves. Poderia ser talvez amigo do General Celestino da Silva, que era flaviense e este último o tenha apresentado a alguém da família Montalvão da qual era parente por parte da mulher, mas não tenho nada que prove qualquer relação entre estes dois militares. Em 1897, data da fotografia, Mouzinho de Albuquerque percorreu o país em apoteose e nessa altura, poderia ter oferecido o seu retrato, a alguém da família Montalvão ou dos Alves. Nesta época, já se começavam a comercializar fotografias de pessoas famosas, por exemplo actores de teatro, ou membros da realeza e não é de excluir a hipótese, que algum dos meus antepassados tenha adquirido esta fotografia porque desejava ter em casa o retrato de um herói nacional, que em África, devolveu aos portugueses o orgulho perdido com a afronta do ultimato inglês de 1890.

Como herdei também o espólio documental da família, talvez encontre uma carta da época, esclarecendo melhor este assunto.

Bem sei que este fotografia que apresento de um herói colonial não é um tema politicamente correcto nos dias de hoje. Mas a história não pode ser apagada com uma borracha e transformada de acordo com as modas contemporâneas e este retrato de Mouzinho de Albuquerque, esquecido numa velha caixa de papelão, que sobreviveu mais de 120 anos, está aqui para prova-lo.

Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque


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