Este velho bule apresenta todas as marcas do tempo. Ao longo da sua vida de cerca de um século e meio foi muito usado, quebrado várias vezes, reparado e soldado. O último acidente que sofreu foi quando o tentei limpar e fiquei com pega na mão, partida em três partes. Depois desse acidente escondi-o num canto qualquer da minha casa e ali ficou esquecido durante mais de uma década. Mas há uns tempos, mandei arranjar uns talheres de prata antigos numa oficina muito boa, ali no Bairro das Colónias, Rua de Timor, nº1 e lembrei-me de o levar lá e o Senhor fez um óptimo trabalho, pois além de soldar a pega colocou uma tira de metal por dentro, para lhe dar solidez.
Este bule é muito engraçado, pois tem uma forma muito típica da ourivesaria e da cerâmica do século XVIII, bojudo, com a pega da tampa em forma de uma pequena abóbora em cima de uma folha, mas a decoração gravada é uma coisa indefinida, entre Renascença e o gótico, enfim uma mistura de estilos muito ao gosto do século XIX. O problema é que não apresenta qualquer marca de fabrico, ou talvez a tenha tido, mas com tanta pancada que apanhou, marcas de soldaduras e reparações, ela desapareceu completamente.
Por uma questão de intuição, achei seria uma peça estrangeira, talvez inglesa ou francesa e provavelmente feita em peltre e comecei a fazer umas tantas pesquisas na net em inglês e francês tentando encontrar peças idênticas. E com efeito encontrei umas quantas coisas muito semelhantes e até um estudo muito bem feito, intitulado Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott, publicado na revista Spinning Wheel, vol. 29, nº2 , (Maio, 1973) e que a Nederlandse TinVereniging teve a feliz idéia de digitalizar e colocar on-line.
Este bule será certamente inglês, fabricado em Sheffield ou eventualmente em Birmingham, numa liga de metal desenvolvida na primeira cidade, que ficou conhecida pelo nome Britannia. Para os menos familiarizados com estes assuntos, Sheffield foi um grande centro industrial inglês, que desde meados do século XVIII se tornou famoso pela sua cutelaria e metais para uso doméstico. Nesta cidade desenvolveram-se toda uma série de técnicas e inventos para fabricar utensílios que pareciam prata, mas eram ligas com baixa percentagem daquele metal, casquinhas, galvanoplastias ou simplesmente metal prateado.
Um destes destas técnicas para fabricar utensílios que sugerissem a prata, foi desenvolvida cerca por um certo James Vickers de Sheffield, que começou a produzir um metal branco, cuja fórmula era semelhante ao estanho tradicional, excepto, que em vez de chumbo, se adicionava antimónio e um pouco cobre, permitindo a esta liga boas características para a fundição e uma cor mais próxima da prata. A ausência do chumbo, além de permitir a tal cor mais prateada, era também mais saudável para a saúde humana, já que o esse metal é tóxico. Rapidamente e ao longo dó século XIX, a produção destes utensílios em Britannia cresceu exponencialmente, estendendo-se também a cidade de Birmingham, atingindo o seu apogeu em meados dessa década. As formas usadas eram as das cafeteiras, açucareiros e bules em prata do século anterior e eram vendidas a preços muito mais baratos que a prata, as casquinhas, ou as de metal com baixa percentagem de prata.
Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelas pegas |
As formas usadas nos vários produtores desta liga Britannia foram estudas e estão sistematizadas. Se no início do século as pegas das cafeteiras ou bules eram em madeira, tal como as de prata, a partir de 1840 generalizaram-se as pegas em metal, exactamente como as do meu bule, que são típicas do período entre 1841-1845. Do mesmo modo, a pegazinha da tampa do bule, em forma de abóbora foi sobretudo usada por volta dos anos 40 dessa década. No entanto, o bico do bule é datado de cerca de 1860.
Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelas pegas da tampa |
Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelo bico do bule. |
Em suma este bule foi fabricado em Inglaterra, em Sheffield ou eventualmente em Birmingham, numa liga conhecida pelo nome de Britannia, em meados do século XIX. Foi uma peça muito usada ao logo de mais de 100 anos por uma família, com inúmeras reparações e que agora encontrou uma reforma tranquila na minha casa.
Bibliografia consultada:
Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott
In
Spinning Wheel, vol. 29, nº2 , (Maio, 1973)
Que coisa fantástica, Luís! E essa tipologia de pegas extramente interessante! Porque no séc. XIX é difícil dizer se são os metais qhe imitam a cerâmica ou vice-versa. Estou entusiasmada para miscarunfar esse livro!
ResponderEliminarMaria
EliminarA ourivesaria, a porcelana e a faiança usam muitas vezes as mesmas formas e creio que será difícil saber qual das áreas foi pioneira. No século XIX tudo se mistura, formas e decorações barrocas, neo-góticas, estilo pompeiano, enfim, vale tudo. O artigo de revista que cito neste post está muito bom. Os ingleses têm tudo muito bem estudado.
Bjos
Adoro esses Bules tem ar de alquimia
ResponderEliminarAntónio. É verdade, muitas peças do período romântico têm um sabor de períodos remotos do passado. Um grande abraço
EliminarBoa pesquisa. A pega, no entanto, não me parece tanto um melão, pois a forma é gomada. Talvez mais uma pequena abóbora, pois algumas delas apresentam estas formas em gomos.
ResponderEliminarMas a pesquisa é muito boa, tu lá consegues encontrar estes artigos tão úteis.
Estás de parabéns
Manel
Manel
EliminarOs ingleses têm tudo bem estudado, mesmo peças como estas, que eram destinadas a uma burguesia sem grandes posses. Não são peças que os museus disputem, mas representam bem a revolução industrial inglesa, que colocou no mercado toda uma série de imitações de prata a baixo custo.
Já corrigi o melão!!
Um abraço