sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Tempus fugit


Tenho escrito pouco no blog. Tenho muitas ideias para novos posts, mas tem-me faltado o tempo. O meu pai morreu recentemente e estamos a dividir o recheio da casa, o que dá sempre trabalho. É preciso escolher, embalar, transportar e depois em minha casa, há que limpar, polir e encontrar um lugar para os objectos e acreditem, que isso não é nada fácil, na minha assoalhada e meia pejada de velharias. Uma nossa senhora ou uma caixinha de prata acharam de imediato o seu lugar como que por magia ou talvez, melhor ainda, porque no meu apartamento repliquei aspectos da decoração da casa dos meus pais e estas peças estavam como que em falta. Outras ainda, como gravuras antigas ainda estão à espera de um lugar

Desmanchar a casa de um pai é por vezes um trabalho penoso. Noutro dia abri um roupeiro onde estavam as camisas, as gravatas e as calças do meu pai e senti ali a sua presença, vestido com aqueles casacos fininhos com os quais morria de frio e aquelas roupas tão características da sua personalidade de quem não ligava nada a modas e achava um desperdício gastar dinheiro em trapos. Acabei por me emocionar.

Mas ao mesmo tempo sinto também que estou a dar continuidade ao trabalho de arquivista e compilador da história da família, desenvolvido pelo meu pai depois de se reformar. 

Encontrei a colecção de jornais onde o meu trisavô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio colaborou. São periódicos do segundo quartel do século XIX, publicados em Chaves e que não se encontram digitalizados em nenhuma biblioteca. Mas dessa colecção o meu pai fez uma relação, que até já foi publicada na Aquae Flavie, mais exactamente na adenda ao nº 56, de Junho 2018 dessa revista. Em todo o caso eu nunca li nenhum desses textos do meu antepassado e sinto a maior das curiosidades por conhecer o pensamento desse homem, que foi pregador, numismata, jornalista, coleccionador de objectos arqueológicos e membro do círculo de intelectuais, padres, professores, médicos, que José Leite de Vasconcelos montou por todo o país e que lhe davam notícia de todos os monumentos, ruínas, moedas romanas ou machados neolíticos da sua região.

José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935)


Existem ainda todos os jornais onde a minha avó, Maria Montalvão Cunha, escreveu. Terei que me encher de paciência, recortar o cabeçalho do jornal, o respectivo artigo e colar num caderno e fazer um pequeno catálogo e eliminar o resto do jornal. É certo que a minha avó Mimi não era propriamente uma Yourcenar, mas seria uma pena perder esse trabalho de anos e tenho interesse em ler tudo o escreveu.

Por fim, encontrei uma serie de documentos, que conhecia vagamente a existência, mas que o meu pai nunca me tinha mostrado, a correspondência entre os meus trisavôs, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) e José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), Ela era uma fidalga de uma família conhecida em Chaves e ele, um padre e dois viveram um amor ilícito, do qual conheço apenas os contornos gerais.

Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902)


Estas cartas já tinham sido mais ou menos organizadas por correspondentes pela minha avó Mimi, que fez pequenos maços atados por um cordel. O meu pai estava a dar continuidade a este trabalho, acondicionando cada carta numa pastinha, fazendo o sumário e identificando as datas, mas faltou-lhe o tempo e terá talvez tratado apenas uns 5 por cento daquilo, que calculo serem umas duzentas cartas. Creio que a ideia dele seria mostrar-nos o trabalho só depois de concluído. Agora cabe-me me a mim, prosseguir esse trabalho, que se arrasta há três gerações, de inventariação e leitura das cartas, bem como do seu correcto acondicionamento, o que certamente me levará anos. A inventariação, catalogação de espólios documentais é sempre um processo minucioso e por vezes monótono, que implica decifrar caligrafias antigas, encontrar datas, fazer pastinhas, numerar e arrumar em caixas francesas.

É um desafio fascinante entrar no mundo e nos segredos dos amores ilícitos do padre e da fidalga no segundo quartel do século XIX e conhecer a história da família e oxalá o tempo não me fuja, como aconteceu ao meu pai e à minha avó, antes de concluir catalogação e leitura destas cartas.

"Cartas do avô Dr. Liberal Sampaio para a mãe do papá D. Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão. Fala do nascimento do Papá". Assim identificou este  maço de cartas a minha avó Mimi com a sua bela caligrafia angulosa


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Um Senhor Morto em marfim


Trouxe de casa do meu pai, esta pequena escultura representado o Jesus Cristo morto. Sempre me lembro de ver este Jesus por casa dos meus pais deitado numa almofadinha de seda capitonné, cuidadosamente confeccionada por alguma bisavó ou por outra qualquer antepassada cheia de devoção. Há quem ache esta representação do Senhor Morto macabra, mas eu gosto de beatices e sou sensível ao carinho e à devoção que gerações de pessoas experimentaram perante esta imagem do tamanho do dedo de uma mão.

Quando cheguei a casa com este pequeno objecto, decidi deitar fora a almofadinha, que infelizmente, estava completamente esfarrapada e examinei a imagem com atenção. O Cristo tinha uma cor acinzentada, que eu achava ser uma policromia intencional da madeira, tentando reproduzir o aspecto de um cadáver. Porém quando virei a esculturazinha ao contrário e observei a parte menos exposta ao pó de dezenas de anos, encontrei a cor amarelada inconfundível do marfim. Agarrei então num algodãozinho húmido e num cotonete e limpei aquela a cor acinzentada toda, que afinal era sujidade e apareceu a beleza toda do marfim.


Como era marfim suspeitei que fosse algum trabalho indo-português, tão comum nas casas portuguesas senhoriais. Presumo que este pequeno Cristo tenha vindo do Solar da família Montalvão em Outeiro Seco, pois do lado da minha mãe não tinham pergaminhos para ter marfins em casa.

Andei a consultar alguma bibliografia sobre marfins indo-portugueses e encontrei umas peças semelhantes no catálogo A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991 onde confirmei que de facto este Cristo é um trabalho feito no Oriente, provavelmente em Goa, no Ceilão ou noutra parte da Índia, no século XVIII. 

Imagem retirada de A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991


Estes jesus mortos, que por vezes chegaram aos nossos dias sozinhos, fizeram em tempos parte de conjuntos, isto, é calvários, representando Cristo crucificado em agonia e na base da cruz, S. João Evangelista, Nossa Senhora, Maria Madalena, varias cenas da Paixão e no nicho mais inferior, o Senhor Morto. Estes calvários montados em madeira com as figuras em marfim eram como se fossem um auto, uma representação teatral abrangendo os vários momentos da Paixão de Jesus.

Imagem retirada de A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991


O tempo foi desfazendo estes calvários, que chegaram até nós muitas vezes incompletos. Eu fiquei apenas com a pequenina figura deste Senhor Morto, que evoca o recheio de uma casa senhorial, com belas peças indo-portuguesas, mas também o meu próprio pai. Talvez a razão da extraordinária devoção da paixão de Cristo no Ocidente, e pelos vistos também na Índia, seja precisamente essa ideia de que o corpo de Jesus é afinal o nosso filho, pai ou irmão cuja morte lamentamos e choramos.

Uma caixinha francesa antiga tornou-se a nova morada do Senhor Morto


Alguma bibliografia:

A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991

Marfins d'além-mar no Museu de Arte Antiga = Overseas ivory in the Museu de Arte Antiga. - Lisboa : Crédito Predial Português, [1988]

E ainda um agradecimento especial à Ana Kol