sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Um Senhor Morto em marfim


Trouxe de casa do meu pai, esta pequena escultura representado o Jesus Cristo morto. Sempre me lembro de ver este Jesus por casa dos meus pais deitado numa almofadinha de seda capitonné, cuidadosamente confeccionada por alguma bisavó ou por outra qualquer antepassada cheia de devoção. Há quem ache esta representação do Senhor Morto macabra, mas eu gosto de beatices e sou sensível ao carinho e à devoção que gerações de pessoas experimentaram perante esta imagem do tamanho do dedo de uma mão.

Quando cheguei a casa com este pequeno objecto, decidi deitar fora a almofadinha, que infelizmente, estava completamente esfarrapada e examinei a imagem com atenção. O Cristo tinha uma cor acinzentada, que eu achava ser uma policromia intencional da madeira, tentando reproduzir o aspecto de um cadáver. Porém quando virei a esculturazinha ao contrário e observei a parte menos exposta ao pó de dezenas de anos, encontrei a cor amarelada inconfundível do marfim. Agarrei então num algodãozinho húmido e num cotonete e limpei aquela a cor acinzentada toda, que afinal era sujidade e apareceu a beleza toda do marfim.


Como era marfim suspeitei que fosse algum trabalho indo-português, tão comum nas casas portuguesas senhoriais. Presumo que este pequeno Cristo tenha vindo do Solar da família Montalvão em Outeiro Seco, pois do lado da minha mãe não tinham pergaminhos para ter marfins em casa.

Andei a consultar alguma bibliografia sobre marfins indo-portugueses e encontrei umas peças semelhantes no catálogo A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991 onde confirmei que de facto este Cristo é um trabalho feito no Oriente, provavelmente em Goa, no Ceilão ou noutra parte da Índia, no século XVIII. 

Imagem retirada de A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991


Estes jesus mortos, que por vezes chegaram aos nossos dias sozinhos, fizeram em tempos parte de conjuntos, isto, é calvários, representando Cristo crucificado em agonia e na base da cruz, S. João Evangelista, Nossa Senhora, Maria Madalena, varias cenas da Paixão e no nicho mais inferior, o Senhor Morto. Estes calvários montados em madeira com as figuras em marfim eram como se fossem um auto, uma representação teatral abrangendo os vários momentos da Paixão de Jesus.

Imagem retirada de A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991


O tempo foi desfazendo estes calvários, que chegaram até nós muitas vezes incompletos. Eu fiquei apenas com a pequenina figura deste Senhor Morto, que evoca o recheio de uma casa senhorial, com belas peças indo-portuguesas, mas também o meu próprio pai. Talvez a razão da extraordinária devoção da paixão de Cristo no Ocidente, e pelos vistos também na Índia, seja precisamente essa ideia de que o corpo de Jesus é afinal o nosso filho, pai ou irmão cuja morte lamentamos e choramos.

Uma caixinha francesa antiga tornou-se a nova morada do Senhor Morto


Alguma bibliografia:

A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa : Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1991

Marfins d'além-mar no Museu de Arte Antiga = Overseas ivory in the Museu de Arte Antiga. - Lisboa : Crédito Predial Português, [1988]

E ainda um agradecimento especial à Ana Kol

6 comentários:

  1. Já sabes o que penso sobre estes cristos, não irei repisar o assunto.
    No entanto considero importante manter a tradição e a herança cultural que se recebe dos nossos antepassados.
    E isso é importante para poder passá-la para os vindouros. É uma das formas de se manterem vivas as lembranças e as próprias pessoas que desapareceram da nossa vida, mas não da nossa memória.
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Manel

      É verdade, tu ainda não gostas de Cristos.

      Tenho pena de não ter conseguido identificar a proveniência exacta deste Senhor Morto. Imagino que tenha vindo do Solar de Outeiro Seco, onde no inventário dos bens realizado pela minha avó estão mencionados dois Cristos em marfim. Um está na casa de uma prima minha e tem uma base simples. D segundo, desconheço o paradeiro. Mas se existissem esculturas na base destes Cristos, certamente que a minha avó teria feito alguma referência. Na capela do Solar existia outro Cristo em marfim, que está hoje no Museu de Arte Sacra de Chaves, mas não tenho nenhuma fotografia da base. A semana passada tentei visitar esse museu, mas parece estar encerrado por tempo indeterminado. Enfim, só posso especular sobre a proveniência dele.

      Um abraço

      Eliminar
  2. Gosto muito de esculturas em marfim, estas, antigas, claro. Boa tarde!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Margarida.

      O marfim dá origem a esculturas fascinantes, pois é o material que melhor representa a pele humana. Esta pequena escultura é também um produto dessa estranha e fascinante arte luso oriental que resultou dos descobrimentos portugueses.

      Um abraço

      Eliminar
  3. Respostas
    1. Muito obrigado pelo seu comentário e ainda bem que gostou.

      Um abraço

      Eliminar