Não há só ninfas a velar pela minha existência. Na mansarda onde vivo há toda uma corte de santos, virgens e
Cristos, que me protegem contra as más sortes
contemporâneas, como o aumento do IVA, a
EMEL, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, a Reforma da Administração Pública e outras coisas fantásticas feitas a pensar no bem-estar do cidadão. Já tentei contar os
cristos na minha casa. Creio que andavam à volta de vinte e tal, mas, entretanto terão entrado outros.
Há quem ache os
Cristos macabros e se pensarmos bem, tem uma certa razão, porque um homem,
ensanguentado, atravessado por pregos numa cruz é uma imagem terrível de se ver. Há uns anos trabalhei na organização de uma grande exposição
retrospectiva de arte portuguesa no Japão e os nipónicos recusaram-se categoricamente a receber
Cristos sofredores, descidas da cruz, martírios e outras coisas terríveis com que o Catolicismo romano se compraz. Só aceitaram e ao engano, um menino Jesus,
gorduchinho, rodeado de flores, pintado pela Josefa de Óbidos.
Mas, embora não tenha fé, fui educado no gosto
eclesiástico dos dourados, da arte sacra, dos azulejos e tenho uma paixão por estes
cristos sofredores, com que vou enchendo a minha casa, aqui e acolá. Qualquer soleira da porta ou espaço disponível serve para pôr mais um.
Este Senhor dos Passos, sem cabeleira, sem cruz e com um manto de seda desbotada, que já foi roxa, faz as minhas delícias. Nos finais do Século XVIII ou mais seguramente em
príncipios do XIX, uma senhora devota
costurou-lhe o manto e executou o bordado a fio de ouro com todo o amor. Depois colocou-o num oratório ou numa maquineta e por um período de mais de 150 anos foi objecto de orações fervorosas. Mas, os tempos mudaram, as senhoras devotas morreram todas e o Cristo foi esquecido num sítio qualquer, deixado ao sol, que lhe desbotou as vestes e entregue à rataria e ao caruncho, que acabaram por lhe destruir a cruz, até acabar no chão da Feira-da-Ladra, onde eu o descobri e lhe
proporcionei uma reforma aceitável à sua longa vida milagreira.
O Senhor dos Passos é uma invocação de Jesus Cristo, que faz referência ao trajecto percorrido por Este desde sua condenação à morte no P
retório até o seu sepultamento, após a
crucificação no Calvário.
A história desta devoção remonta à Idade Média, quando os cruzados visitavam os locais sagrados de Jerusalém por onde andou Jesus a caminho do martírio e quiseram depois reproduzir espiritualmente este caminho, nas suas terras de origem, sob forma de dramas sacros e procissões, ciclos de meditação, ou estabelecendo capelas especiais nas Igrejas.
A reconstituição do trajecto de Cristo é conhecida pelas
Estações ou
Passos da Via Sacra, mas falarei neles com mais pormenor noutra altura, já que são tão importantes na história da arte, pois há um sem número de esculturas, gravuras e pinturas alusivas ao tema, que para nós os descrentes, já se tornam difíceis de interpretar.